A pandemia do ponto de vista da América Latina
Nove teses para um balanço provisório
Nueva Sociedad 2021 / Agosto - Setembro 2021
O balanço, embora provisório, do que aconteceu na América Latina em tempos de covid-19 deixa um gosto amargo e uma sensação ambivalente. A pandemia colocou no centro do debate questões antes periféricas, mas as reações são ainda fracas para enfrentar a necessidade de profundas mudanças decorrente da crise socioecológica. Se não quiser continuar sendo falada do ponto de vista do Norte, a América Latina deve fazer parte das grandes discussões globais.
2020 não será um ano para ser esquecido. Disruptivo e devastador como poucos, deixa enormes feridas sem cicatrizar em nossos corpos, em nossas subjetividades e memórias. Embora alguns esperem um 2021 mais tranquilizador, ninguém pode, a rigor, garantir que o que se abriu neste início de década com a pandemia de covid-19 será fechado com uma ou mais vacinas milagrosas. A dinâmica desencadeada adverte sobre os contornos de uma configuração civilizatória cujas características globais, regionais e nacionais ainda não estão completamente definidas, mas cujos eixos e pontos de referência podem ser vislumbrados. Sobre alguns deles eu gostaria de refletir neste artigo, dividido em nove «teses».1. A pandemia colocou no centro aquilo que estava na periferia: visibilizou o vínculo entre desigualdades sociais e senhorio [dueñidad]1, assim como a relação entre zoonoses, pandemia e crise socioecológica.
A pandemia de covid-19 colocou no centro do debate problemáticas que antes estavam na periferia, minimizadas ou invisibilizadas. Por um lado, evidenciou as desigualdades sociais, econômicas, étnicas e regionais e os altos níveis de concentração da riqueza, tornando-os mais insuportáveis do que nunca. Após várias décadas de neoliberalismo, colocou em destaque o retrocesso dos serviços básicos, em relação não apenas à saúde, mas também à educação (a lacuna digital), ao acesso à moradia e à degradação do habitat. A propagação do vírus mostrou o fracasso de um modelo de globalização neoliberal consolidado nos últimos 30 anos no calor da Organização Mundial do Comércio (omc), o que não significa dizer que o neoliberalismo esteja morto ou agônico; longe disso. A crise desatada pela pandemia exacerbou as desigualdades extremas em todos os níveis. Em escala latino-americana, segundo um relatório da Oxfam, as elites econômicas e os super-ricos ampliaram seu patrimônio em 48,2 bilhões de dólares, 17% a mais que antes do aparecimento da covid-19. Já a recessão econômica fez com que 52 milhões de pessoas caíssem na pobreza e mais de 40 milhões perdessem seus empregos, impulsionando um retrocesso de 15 anos para a região2. O vírus mostrou até que ponto estamos frente a um mundo de donos, pois, como afirmava a antropóloga Rita Segato já antes da pandemia, a palavra desigualdade não basta para expressar tamanha obscenidade: «Este é um mundo marcado pela ‘dueñidad’ ou senhorio»3.Em segundo lugar, a pandemia visibilizou o vínculo estreito entre crise socioecológica, modelos de mau desenvolvimento e saúde humana. Até março de 2020, o termo «zoonose» não fazia parte de nossa linguagem e, talvez para alguns, ainda seja um conceito um tanto técnico ou distante, mas é a chave para entender os bastidores da pandemia. Por trás da covid-19 está a problemática do desmatamento, isto é, a destruição dos ecossistemas que expulsa animais silvestres de seus entornos naturais e libera vírus zoonóticos que estiveram isolados durante milênios, colocando-os em contato com outros animais e humanos em entornos urbanizados, possibilitando assim o salto entre espécies. Claro que o novo coronavírus não é o primeiro vírus zoonótico que conhecemos; já houve outros, inclusive mais letais (ebola, sars, gripe suína, gripe aviária, hiv)4. E, embora o vírus tenha se manifestado primeiro na China, isto poderia ter acontecido em qualquer outra região do planeta, porque o que está em sua base é um modelo produtivo global focado na alta produtividade e na maximização dos lucros, construído pelas grandes firmas corporativas, que vem acompanhado de uma degradação de todos os ecossistemas: expansão de monocultivos, que provocam aniquilação da biodiversidade, superexploração dos bens naturais, contaminação por fertilizantes, pesticidas, desmonte e desmatamento; grilagem de terras; expansão de modelos alimentares baseados na criação de animais em grande escala; entre outros. Assim, o elemento revelador é que o avanço do capitalismo sobre os territórios tem a capacidade de liberar grande quantidade de vírus zoonóticos, altamente contagiosos, que mutam com rapidez e para os quais não temos cura. Em suma, a pandemia mostrou até que ponto falar de «Antropoceno» ou «Capitaloceno» não é só uma questão de mudança climática ou aquecimento global, mas também de globalização e modelos de mau desenvolvimento. Evidenciam-se assim outros aspectos da emergência climática, não vinculados exclusivamente com o aumento do uso de combustíveis fósseis, mas também com as mudanças no uso da terra, o desmatamento e a expansão da pecuária intensiva, todas elas fontes de potenciais pandemias.
2. As metáforas e os conceitos que fomos utilizando para tentar captar e analisar a pandemia devem ser entendidos em um sentido dinâmico. Passamos da metáfora do «portal» para a do «colapso», conservando no centro da linguagem política a metáfora bélica.
A ativação do freio de emergência como produto da crítica situação sanitária gerou uma crise extraordinária, de enormes consequências sociais, econômicas e políticas. Desde o início, a metáfora bélica, isto é, a alusão à guerra contra o vírus, esteve presente na linguagem política hegemônica. Do meu ponto de vista, seu uso tende a focar no sintoma e a obscurecer e ocultar as causas estruturais, além do fato de que busca alcançar a coesão social frente ao dano, diante de um inimigo «invisível» e «desconhecido». Não entrarei em detalhes sobre isto, mas vale à pena ressaltar a persistência dessa metáfora, apesar das informações que circulam sobre as causas da pandemia5.Na verdade, interessa-me analisar outras duas metáforas utilizadas: a do portal e a do colapso. Efetivamente, a crise extraordinária provocada pela covid-19 deu lugar a demandas ambivalentes e contraditórias entre si. Por um lado, demandas por transformação, solidariedade e mudança; por outro, demandas por ordem e por um retorno à «normalidade». Assim, a crise extraordinária nos instalou em um «portal», entendido como um limiar de passagem, que produziu a desnaturalização daquilo que tínhamos naturalizado. Como afirmou a poeta indiana Arundhati Roy em um notável artigo, invade-nos o sentimento de que deixamos um mundo para trás, a sensação de que estamos nos abrindo a um mundo outro, diferente e incerto6. Mas a metáfora do portal também aludia a uma encruzilhada: ou a crise abria a possibilidade de abordar todos aqueles debates civilizatórios que até ontem estavam na periferia, tais como o senhorio e a crise socioecológica, ou a humanidade consolidava a rota do capitalismo do caos, acelerando o colapso sistêmico, com mais autoritarismo, mais xenofobia, mais desigualdades, mais devastação ecológica. Em suma, a metáfora do portal não tinha nada a ver com a possibilidade de dar um reset no mundo, tarefa impossível e absurda. Mais propriamente, envolvia uma dupla dimensão. Mas, embora em um primeiro momento abrisse campo a um processo de liberação cognitiva, que impulsionava a necessidade de conceber transformações maiores (a crise como oportunidade), também nos advertia sobre o perigo de clausura cognitiva, por meio da retirada insolidária e da consolidação das desigualdades. Como lembrou a jornalista e escritora Naomi Klein, a crise podia ser uma nova oportunidade para repetir a fórmula do capitalismo do desastre ou da «doutrina do shock», que ela define como
a estratégia política de utilizar as crises em grande escala para impulsionar políticas que sistematicamente aprofundam a desigualdade, enriquecem as elites e debilitam todos os demais. Em momentos de crise, as pessoas tendem a se concentrar nas emergências diárias de sobreviver a essa crise, seja ela qual for, e tendem a confiar muito nos que estão no poder.7Nove meses após declarada a pandemia, a sugestiva e potente metáfora do portal caiu em desuso, e o que se vislumbra sob o nome de «nova normalidade» mais se parece a uma piora e uma exacerbação das condições existentes – sociais e ecológicas –, algo que a figura do «colapso» sintetiza de um modo ao mesmo tempo unívoco e pluridimensional. O colapso não é apenas ecológico, como vêm anunciando tantos estudos científicos sobre a emergência climática; é também sistêmico e global. Seu trânsito envolveria diferentes níveis (ecológico, econômico, social, político), assim como distintos graus (não tem por que ser total) e diferenças geopolíticas, regionais, sociais e étnicas (nem todos sofrerão o colapso da mesma forma)8. Em suma, a entrada na era do colapso incentiva diferentes visões: empiricamente, estamos diante da proliferação de imagens catastrofistas e distópicas sobre o futuro, muitas delas desprovidas de uma linguagem política (ou abertamente antipolíticas), que aludem à extinção e ao caos; por outro lado, em termos teóricos e ensaísticos, parece dar origem a uma nova disciplina científica, hoje em formação, a «colapsologia», criada pelos franceses Pablo Servigne e Raphaël Stevens, que visa refletir sobre o fim do mundo, este que conhecemos, e propõe discutir elementos e políticas a serem postos em marcha para atravessá-lo «da forma mais humana possível»9.
3. A pandemia colocou em questão o multilateralismo e as lideranças mundiais pela via da retirada às agendas nacionais, frente à escassez de estratégias cooperativas e internacionalistas.
Desde março de 2020, costuma-se afirmar que assistimos a um retorno ou a uma nova legitimação de um Estado forte. No entanto, o retorno dos Estados é também a expressão de uma retirada às agendas nacionais. No contexto da pandemia, cada país vem fazendo seu jogo, mostrando com isso a variabilidade das estratégias de saúde e políticas disponíveis. Em escala nacional, a retirada ilustrou uma conjunção paradoxal, que combina o decisionismo hipermoderno (a concentração das decisões no Poder Executivo e a ampliação do controle sobre a população através das tecnologias digitais) com um forte processo de fragmentação local (o fechamento de cidades, províncias e Estados, à maneira do modelo das aldeias medievais).Não houve respostas globais ante a emergência da pandemia, e sim uma maior fragmentação e uma escassa cooperação em escala internacional, algo que afetou inclusive a União Europeia, acentuando – nas palavras de muitos – a perda de confiança na integração. Com Donald Trump, os Estados Unidos renunciaram ao papel de líder mundial sem que isto significasse uma melhor gestão da pandemia em âmbito nacional. Externamente, isto se expressou no aumento da tensão geopolítica com a China e com organismos multilaterais como a Organização Mundial da Saúde (oms); internamente, no enfrentamento de Trump com os governadores dos diferentes estados. Por sua vez, no início da pandemia, a China realizou uma série de voos para prestar assistência sanitária a diferentes países (entre eles, vários latino-americanos). No âmbito interno, quase todos os países do globo sofreram processos de militarização que repercutiram sobretudo nas populações mais vulneráveis, em particular na América Latina (onde os controles são menos de ordem digital e muito mais de ordem física e territorial). Isto teve seu agravante em alguns países emergentes, como a Índia, e até mesmo nos eua foi expressado, internamente, na centralidade assumida pelo racismo como estrutura de dominação de longa duração.Por último, nesta enumeração incompleta, embora tenha se falado muito sobre o regresso de um Estado forte, enfatizando-se precocemente suas ambivalências (o estado de exceção que coexiste com o Estado social), houve pouca reflexão teórica e política sobre a possibilidade de sua transformação para enfrentar a crise econômica e social, considerando os limites impostos por sua evidente colonização por parte das elites (o senhorio). A pandemia acentuou a competição nacionalista no contexto da desordem global. Um reflexo disso é a corrida para conseguir uma vacina eficaz, mas também a corrida para se apropriar dessas mesmas vacinas. Nos últimos meses, os países mais ricos buscaram garantir o abastecimento das diferentes vacinas disponíveis, comprando doses de forma antecipada. Essa política de apropriação faz com que entre 40% e 50% do fornecimento mundial esteja nas mãos dos países mais ricos, o que deixa com menos chances os países mais pobres10. Um dos exemplos mais escandalosos é o Canadá, onde o primeiro-ministro progressista Justin Trudeau, longe de qualquer estratégia cooperativa, assinou contratos com sete empresas farmacêuticas para obter 414 milhões de doses, cinco vezes mais do que será utilizado no país11. Enquanto isso, em diversos países do Sul (sobretudo na América Latina), os governos procuram desesperadamente obter alguma das vacinas, frente à temida segunda onda do vírus.
4. Na América Latina, os Estados apostaram na intervenção através de políticas públicas sanitárias, econômicas e sociais, mas a evolução da pandemia expôs as limitações estruturais e conjunturais.
A pandemia e os horizontes abertos levantam numerosas questões. Em escala global, parece ter chegado a hora de repensar a globalização partindo de outros modelos e lançar as bases de um Estado forte, eficaz e democrático, com vocação para reconstruir o bem comum, articulando a agenda social com a ambiental. Nos âmbitos regional e nacional, contudo, diante dos impactos econômicos, a pregunta é: até que ponto os Estados periféricos têm ombros largos para avançar em políticas de recuperação social?Assim, na América Latina, o vírus acentuou ainda mais as desigualdades sociais e territoriais existentes, exacerbando as falhas estruturais (superlotação e falta de acesso à saúde, insuficiência da estrutura sanitária, informalidade, desigualdade de gênero), o que produziu um coquetel potencialmente explosivo. Após a primeira onda na Europa, a América Latina, com 8% da população mundial, transformou-se no epicentro da pandemia, com mais mortes no mundo, pelo menos até a chegada da segunda onda, que afetaria os países europeus a partir de novembro12.Quase todos os países da região adotaram medidas econômicas e sanitárias para conter a crise social e de saúde. Segundo um recente relatório do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), no total são 26 os programas temporários de transferências monetárias adotados por 18 países da região. Entre eles, destacam-se os casos de Honduras, com a assistência oferecida a trabalhadores independentes, da extensão até dezembro do programa de transferências Renda Solidária da Colômbia, do aumento no valor e na expansão da cobertura da Renda Familiar de Emergência chilena e das novas disposições para a proteção do emprego na Nicarágua (um dos últimos países a implementar esse tipo de resposta)13. No Brasil, Jair Bolsonaro deixou de lado a ortodoxia e implementou uma «renda básica» de 600 reais para 60 milhões de pessoas. No caso da Argentina, o governo implantou até dezembro de 2020 uma Renda Familiar de Emergência (ife) para desempregados e trabalhadores informais e autônomos das categorias mais baixas, que abrange 7.854.316 pessoas; incrementou a ajuda alimentar em cozinhas comunitárias e lançou algumas medidas ligadas ao crédito para conter a crise das pequenas e médias empresas, que são a principal fonte de trabalho no país. Também implementou o Programa de Assistência de Emergência ao Trabalho e à Produção, destinado a pagar 50% dos salários das empresas (pequenas, médias e algumas grandes). Mas, como afirma o economista Rubén Lo Vuolo, «os que mais sofrem com a pandemia são as atividades declaradas como ‘não essenciais’, as pequenas e médias unidades produtivas e a força de trabalho informal e precarizada; o que, além disso, coincide com os grupos que registram maiores déficits habitacionais e menor acesso aos serviços públicos básicos, incluindo os de saúde»14. Este diagnóstico poderia ser aplicado a toda a região, dadas as características do mercado de trabalho (54% dos trabalhadores estão na informalidade, segundo a Organização Internacional do Trabalho, oit). Se somarmos as mudanças ocorridas no mundo do trabalho em relação à expansão do teletrabalho, assim como as chamadas economias de plataformas, o panorama indicaria que a precarização tem aumentado. De qualquer forma, segundo o já citado relatório do Unicef, na América Latina o desemprego aumentou de 5,4% em dezembro de 2019 para 13,5% em dezembro de 2020, afetando um total de 44,1 milhões de pessoas. Em seu Balanço preliminar das economias da América Latina e do Caribe, a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal) prevê uma contração média de 7,7% para 2020 – a maior em 120 anos – e uma recuperação de 3,7% em 202115. Além disso, considera que os impactos da crise econômica não são de curto, mas de médio prazo. Por outro lado, em um contexto de fragmentação, não houve instituições regionais que estivessem à altura do desafio. Em termos políticos, a crise da covid-19 encontrou a América Latina fragmentada, sem hegemonias neoliberais nem tampouco progressistas, muito distante do crescimento econômico vivido durante a explosão das commodities. Nem a experiência de Andrés Manuel López Obrador no México (muito desconectada do ciclo progressista anterior), nem a volta do peronismo na Argentina (como uma espécie de progressismo de baixa intensidade), nem a recente recuperação institucional na Bolívia, com o novo triunfo do Movimento ao Socialismo (mas), podem ser diretamente interpretadas como o advento tout court de uma segunda onda progressista. Uma parte importante dos progressismos está bastante esgotada, após o ciclo hegemônico entre 2000 e 2015 aproximadamente, cujo balanço – desigual, conforme os países – ainda continua sendo debatido na região. Deve-se somar a isso o surgimento de uma extrema direita no Brasil, o que aumenta a reflexão sobre a existência de correntes sociais e políticas fortemente autoritárias e antidireitos, que permeiam outros países da região. Em suma, a novidade na América Latina é que, além da fragilidade do cenário político emergente, há uma crise tripla: sanitária, econômica e social. Como afirma o título de um livro recente, a América Latina passou da «implosão social à emergência sanitária e social pós-covid»16. Nesse contexto, é possível que estejamos em um «tempo extraordinário», no qual a liberação cognitiva das multidões move as placas tectônicas da transição, mas, em um contexto pós-covid caracterizado pelo aumento das desigualdades e pela aceleração do neoextrativismo, não sabemos ao certo a qual transição estamos nos dirigindo. Não apenas os tempos políticos foram acelerados, mas também, em seu caráter vertiginoso, o esgotamento das sociedades ameaça trazer mutações bruscas e violentas do cenário político, à imagem e semelhança da crise climática atual.
5. Embora a covid-19 tenha acionado o freio de emergência, o neoextrativismo não cessou. Mais do que isto: para os países latino-americanos, a aceleração do extrativismo é uma parte essencial da aposta na reativação econômica e na chamada «nova normalidade».
Durante 2020, não foram poucos os que celebraram que a paralisação das diferentes atividades econômicas tenha se traduzido em uma redução de 7% da emissão de gases do efeito estufa. Como aqueles animais que saíram de seus nichos e se atreveram a percorrer as cidades em época de confinamento, sabemos que o fenômeno, por não ser intencional, é simplesmente passageiro; apenas um efeito colateral de curto alcance. Por outro lado, o freio de emergência ativado foi relativo. O extrativismo, por exemplo, não se deteve. Pelo contrário: na América Latina, apesar da importância cada vez maior dos conflitos socioambientais e da amplitude das problemáticas que estes incluem, as políticas públicas dos diferentes governos não visaram fortalecer as demandas ambientais. Diversas atividades extrativistas foram declaradas essenciais (como a mineração), o desmonte e o desmatamento aumentaram, e com isto também os incêndios. Durante a pandemia, continuaram os assassinatos de ativistas ambientais, reafirmando com isso que a América Latina – particularmente países como Colômbia, Brasil e México – continua sendo a região mais perigosa do mundo para os defensores do ambiente. A política neoextrativista ainda está além de qualquer disputa ideológica. Assim, o «lobby do fogo» desatou sua fúria mais do que nunca. Por exemplo, o Pantanal brasileiro, a maior área úmida continental do planeta, que cobre grande parte dos estados de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, registrou 16.000 incêndios em 2020 – que se tornou o ano mais castigado pelo fogo segundo dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe)17. Durante 2020, a Argentina ocupou o segundo lugar no mundo em quantidade de focos de incêndios que afetaram áreas úmidas e florestas nativas. Por trás deles, estão os lobbies da soja, da mineração e dos grandes agentes imobiliários (urbanizações privadas). Os incêndios afetaram 14 províncias e destruíram mais de um milhão de hectares18. Além disso, apesar da queda na demanda de combustíveis fósseis (que fez com que seu preço fosse negativo em certo momento), em países como a Argentina continuaram existindo subsídios às empresas petroleiras. O cúmulo foi a aprovação do imposto às grandes fortunas – uma medida difícil de ser implementada frente à oposição linha-dura da direita –, que se esperava que aliviaria exclusivamente os males da pandemia. Entretanto, o projeto aprovado destina nada menos que 25% do valor arrecadado ao financiamento do gás de fracking (fraturamento hidráulico) extraído na megajazida de Vaca Muerta. No México, em setembro de 2020, Víctor Toledo, uma das grandes referências continentais da ecologia política, precisou renunciar ao seu cargo na Secretaria de Meio Ambiente e Recursos Naturais (Semarnat). Toledo é um defensor da agroecologia e da transição ecossocial. Durante seu mandato, impulsionou a proibição do glifosato e criticou o projeto do Trem Maia, um dos emblemas do «desenvolvimento» do governo de López Obrador, que atropela os direitos das comunidades ancestrais. Sua renúncia expôs, uma vez mais, os limites do progressismo seletivo latino-americano. Por último, enquanto na Colômbia continua a luta contra a prática do fracking, tanto no Equador como na Argentina se aprofundou o embate da mineração, embora esta não conte com licença social e a população mobilizada busque ativar dispositivos institucionais disponíveis (consultas públicas em Cuenca, Equador; iniciativas cidadãs em Chubut, Argentina), os quais são negados e/ou dificilmente oferecidos pelas autoridades. Assim, o avanço da mineração, em aliança com governos provinciais e nacionais, em nome da reativação econômica, mostra a consolidação da nefasta equação: «mais extrativismo, menos democracia»19.Não se deve esquecer de que, nas últimas décadas, os governos latino-americanos tentaram opor os aspectos sociais e econômicos ao ambientais. Por exemplo, os progressismos justificaram o neoextrativismo e a depredação ambiental em nome do desenvolvimento e da redução das desigualdades, o que gerou uma situação paradoxal, a partir da instalação de uma agenda seletiva de direitos, que negava ou desestimava as demandas socioambientais e grande parte das reivindicações indígenas por terra e território.Hoje sabemos que uma porção importante do crescimento econômico registrado na América Latina durante a explosão das commodities foi capturada pelos setores mais ricos da sociedade. Dados da revista Forbes mostram que a riqueza dos bilionários latino-americanos (com fortunas superiores a um bilhão de dólares) cresceu a uma taxa anual de 21% entre 2002 e 2015, um aumento seis vezes superior ao do pib da região (3,5% anual)20. Em 2013-2014, segundo a Oxfam, 10% das pessoas mais ricas da região respondiam por 37% da renda; mas, se fosse considerada a riqueza, esses dados aumentavam sensivelmente: os 10% mais ricos acumulavam 71% da riqueza, enquanto o 1% mais privilegiado ficava com 41%21.Ainda hoje continua-se opondo o social ao ambiental, como se houvesse uma contradição entre ambos os aspectos, ignorando o fato de que os que mais sofrem os danos ambientais em nossas latitudes são os setores mais vulneráveis, porque vivem em zonas expostas a fontes de contaminação e carecem de meios econômicos e humanos para enfrentar as consequências, resistir aos embates do extrativismo e fazer frente aos impactos da mudança climática (inundações, secas, tempestades).Em suma, é incrível que, em plena emergência climática e atravessando uma pandemia de raiz zoonótica, as elites políticas e econômicas latino-americanas continuem negando a importância da crise socioambiental e o indiscutível vínculo existente entre a saúde do planeta e a saúde humana. Prevalecem a cegueira epistêmica e o analfabetismo ambiental, ligados a uma determinada visão do desenvolvimento, do crescimento econômico indefinido e do progresso, responsável pela atual situação de catástrofe ecológica. Certamente, a capacidade da cegueira epistêmica, combinada com interesses econômicos, de impedir a leitura da realidade dependerá do contexto. A conclusão é que, embora os fatos questionem o olhar desenvolvimentista, para a maioria dos governos latino-americanos o extrativismo continua sendo visto como a tábua de salvação em meio à crise.
6. A pandemia possibilitou discussões sobre transição ecossocial, reforma tributária e diferentes formulações sobre a renda básica universal.
Na medida em que a covid-19 colocou no centro aquilo que estava na periferia, possibilitou também os debates sobre a urgência da transição ecossocial. Assim, aquilo que parecia reservado a alguns poucos especialistas e ativistas radicais entrou na agenda política. Propostas integrais elaboradas em anos anteriores foram atualizadas no calor da pandemia. Cientistas e intelectuais do mundo todo promoveram manifestos e propostas que incluíam desde uma agenda verde e uma renda básica até o perdão da dívida dos países mais pobres. Seria impossível fazer um levantamento das diferentes propostas de transição ecossocial difundidas nos últimos meses. Também não é do meu interesse apresentar uma cartografia delas, de modo que me concentrarei em algumas. A primeira, por sua projeção, é a do Green New Deal (Novo Pacto Verde) promovido pela ala esquerda do Partido Democrata dos eua, cujas referências são Bernie Sanders e Alexandria Ocasio-Cortez e apoiada por intelectuais como Naomi Klein22. Essa proposta busca a descarbonização da economia e a criação de empregos verdes, para os quais defende um Estado planejador e democrático. Em 2020, a proposta foi traduzida em um «Plano Estímulo Verde» cujo objetivo é recuperar a economia utilizando recursos públicos para a transição energética (energia, transporte público e moradias verdes, saúde e educação). Em qualquer caso, como afirma a cientista política Thea Riofrancos, uma das autoras de A Planet to Win: Why We Need a Green New Deal23 e uma das mais ativas nessa plataforma, o recente triunfo do democrata Joe Biden abre um cenário de disputa que permite antecipar que «começou a década do Novo Pacto Verde».No plano internacional, constituiu-se a Internacional Progressista, sob o lema «Internacionalismo ou extinção», lançado, entre outros, pelo célebre linguista Noam Chomsky. Esta teve sua primeira reunião virtual entre 18 e 20 de setembro passado, quando o ex-ministro da Economia grego Yanis Varoufakis afirmou que «já estamos entrando em uma etapa pós-capitalista», e o dilema é se sua economia «será autoritária e oligárquica ou democrática e social». Ante o desastre ambiental, Varoufakis propôs um «acordo ecológico internacional» que, com um orçamento de oito trilhões de dólares anuais, poderia realizar a transição das energias fósseis para as renováveis, reduzir o consumo de carne e apostar nos alimentos orgânicos. Do seu ponto de vista, é um desafio análogo ao da reconstrução da Europa após a Segunda Guerra Mundial, embora não se trate apenas de reconstruir, mas de criar novas tecnologias24.No entanto, apesar do chamado global contra o avanço das extremas direitas e dos apelos ao pós-capitalismo, a Internacional Progressista reúne um conglomerado muito heterogêneo de figuras intelectuais e políticas: de ecologistas renomados que promovem a transição ecossocial até a nata do progressismo extrativista latino-americano (Rafael Correa, Álvaro García Linera, entre outros), reconhecidos pela perseguição a setores ambientalistas de seus países. Por isso, não está claro qual seria o papel da transição socioecológica e qual a sua visão sobre a articulação entre justiça social e justiça ambiental. Outras iniciativas, provenientes de intelectuais e reconhecidas organizações ambientalistas, como a Ecologistas em Ação, na Espanha, e a Attac France (Associação pela Tributação das Transações Financeiras para Ajuda aos Cidadãos), na França, promovem propostas integrais que abordam a temática do decrescimento. Por exemplo, a Attac France publicou em maio de 2020 um livro intitulado Ce qui dépend de nous. Manifeste pour une relocalisation écologique et solidaire [O que depende de nós: Manifesto por uma radicalização ecológica e solidária]25, no qual propõe refundar os serviços públicos por e para o cuidado, repensar as necessidades e planejar o decrescimento, inventando um processo democrático de planejamento ecológico para tornar sustentável nosso sistema de produção. Isto implica decrescer para alguns setores e crescer para outros. Antes de uma renda básica, a organização propõe financiar uma «renda de transição ecológica» para sustentar aqueles setores que se envolvam em atividades ecológicas (agroecologia, eficiência energética, eco-mobilidade, low tech, entre outros).
7. Na América Latina, partindo da sociedade civil e, excepcionalmente, de alguns partidos políticos, surgiram propostas de convocatórias para a transição ecossocial, nem todas elas vinculadas a referências ambientais.
São várias as propostas de transição ecossocial elaboradas na América Latina. Entre elas, gostaria de destacar o Pacto Ecossocial e Intercultural do Sul, que me envolve de modo pessoal e coletivo. Trata-se de uma proposta promovida por diferentes ativistas, intelectuais e organizações sociais de países como Argentina, Brasil, Bolívia, Equador, Colômbia, Peru, Venezuela e Chile, vinculados às lutas ecoterritoriais do continente. O Pacto Ecossocial foi lançado em junho de 2020 e teve diferentes inflexões e agendas, segundo os países e as articulações sociais alcançadas. Seus eixos são o paradigma dos cuidados, a articulação entre a justiça social e a justiça ecológica (renda básica, reforma tributária integral e suspensão da dívida externa); a transição socioecológica integral (energética, alimentar e produtiva) e a defesa da democracia e da autonomia (em termos de justiça étnica e de gênero). Trata-se de uma plataforma coletiva que convida a construir imaginários sociais, acordar um rumo compartilhado da transformação e uma base para plataformas de luta nos mais diversos âmbitos de nossas sociedades26.O Pacto Ecossocial dialoga com outras propostas, como o Novo Pacto Verde, o decrescimento e os manifestos de relocalização ecológica e solidária. Mas é uma aposta ecossocial, econômica, intelectual e elaborada do ponto de vista do Sul, que rechaça que este continente continue sendo falado e pensado apenas do ponto de vista do Norte, inclusive quando se trata de propostas de transição, que em geral não colocam no centro a questão da dívida ecológica e, em algumas ocasiões, tampouco vão além da descarbonização das sociedades. O Pacto Ecossocial afirma que os problemas da América Latina são diferentes dos do Norte, que existem fortes assimetrias históricas e geopolíticas; que, no calor da crise socioecológica e do aumento do metabolismo social, a dívida ecológica do Norte aumentou de modo exponencial em relação ao Sul. Nessa linha, adverte também sobre as falsas soluções, sobre a impossibilidade de que embarquemos em qualquer transição, caso esta promova um modelo corporativo e concentrado, não um modelo democrático e popular que garanta uma transição justa para o Sul. Assim, ressalta que é necessário debater o que se entende por transição. Por último, longe de ser uma proposta abstrata, vincula-se às lutas, aos processos de reexistência e aos conceitos-horizontes forjados nas últimas décadas no Sul global e na América Latina em particular. Entre eles, direitos da natureza, bem viver, justiça social e redistributiva, transição justa, paradigma do cuidado, agroecologia, soberania alimentar, pós-extrativismos e autonomias, entre outros. Houve também várias propostas, entre elas «Nossa América Verde», um movimento que se une ao Novo Pacto Verde sob o lema «realismo científico, cooperação internacional e justiça social »27, que contém 14 propostas do Plano de Recuperação Econômica com Justiça Social e Ambiental 2020-2030, com dois capítulos, um internacional e outro social/ambiental. O plano prevê 100% de energias limpas até 2050, além do compromisso da eficiência energética e de mudanças tributárias. E, embora inclua legisladores de partidos progressistas de Brasil, Argentina e Chile, e alguns de seus signatários estejam longe de ser referências em temas ambientais, revela a importância, no contexto atual, da geração de programas integrais ligados à transição ecossocial. Vale à pena acrescentar também que uma das poucas instituições regionais que estiveram presentes no debates foi a Cepal, para a qual não é possível desenvolver uma política de austeridade. Segundo esse organismo, a crise deixou claro que a política fiscal volta a ser a ferramenta para enfrentar choques sociais e macroeconômicos. Para isso, é necessário aumentar a arrecadação tributária, mediante a eliminação de espaços de evasão fiscal que atingem 6,1% do pib. Além disso, é preciso consolidar o imposto de renda para pessoas físicas e corporações, e ampliar o alcance dos impostos sobre o patrimônio e a propriedade à economia digital, além de corretivos, como impostos ambientais e relacionados com a saúde pública28. A proposta da Cepal incluiu a recomendação aos governos latino-americanos de implementar uma renda básica universal de modo gradual, incluindo primeiro os setores mais afetados pela pandemia. A inflexão não é por acaso e mostra, como afirmam Rubén Lo Vuolo, Daniel Raventós e Pablo Yanes, que «hoje o debate sobre a renda básica já não é sobre ‘experimentos’ limitados a grupos selecionados como ‘pilotos’, mas sobre políticas e intervenções de escala nacional»29.Em suma, na América Latina não são os governos, mas as organizações, os ativistas e os intelectuais da sociedade civil que possibilitaram a discussão sobre programas de transição ecossocial. Para os diferentes governos da região, o tema ambiental continua sendo uma saudação à bandeira, algo meramente decorativo, um adjetivo («desenvolvimento sustentável»), mais uma coluna no balanço contábil das empresas, algo que, acredita-se, pode ser resolvido com algumas soluções tecnológicas (a razão arrogante), que certamente não aponta para as causas da crise e que permite continuar com a fuga para frente, sem questionar a visão hegemônica do desenvolvimento.
8. A pandemia colocou na agenda o paradigma dos cuidados e revelou que esta é a pedra angular para a construção de uma sociedade resiliente e democrática.
A pandemia mostrou a necessidade de transformar a relação entre sociedade e natureza, de superar o paradigma dualista e antropocêntrico que concebe a humanidade como independente e externa à natureza, concepção e vínculo que estão na origem dos modelos de mau desenvolvimento que hoje padecemos – e inclusive de uma visão instrumental e objetivista da ciência. Não é por acaso, portanto, que nosso olhar preste cada vez mais atenção a outros paradigmas ou narrativas relacionais, que colocam no centro a interdependência, o cuidado, a complementariedade e a reciprocidade. Nessa linha, uma das grandes contribuições dos ecofeminismos, dos feminismos populares do Sul e da economia feminista, juntamente com os povos originários, é o reconhecimento de outras linguagens de valorização, outros vínculos possíveis entre sociedade e natureza, que colocam o cuidado e a sustentação da vida no centro.A pandemia visibilizou a importância dos cuidados em suas múltiplas dimensões. Por um lado, fez isto no sentido mais geral do cuidado dos territórios, dos ciclos da vida, dos ecossistemas. Assim, em tempos de covid-19, assistimos a uma verdadeira explosão de fóruns e conversas na região latino-americana sobre os cuidados, protagonizados por diferentes lideranças, ativistas e organizações de diversas correntes feministas, territoriais, comunitárias e socioambientais sobre o cuidado e a relação com os corpos e os territórios, as práticas de cuidado, as sementes e a agroecologia, o cuidado e a soberania alimentar, o cuidado e as tarefas de autogestão comunitária. Por outro lado, a pandemia evidenciou a insustentabilidade de sua atual organização, que recai sobre as mulheres, especialmente sobre as mulheres pobres. Na América Latina e no Caribe, desde antes da pandemia, «as mulheres dedicavam o triplo do tempo que os homens ao trabalho de cuidados não remunerado, situação agravada pela crescente demanda de cuidados e pela redução da oferta de serviços causada pelas medidas de confinamento e distanciamento social adotadas para frear a crise sanitária»30. Assim, nos últimos meses se multiplicaram as reflexões sobre os cuidados como um direito, temática impulsionada particularmente do ponto de vista da economia feminista. Há alguns anos, a advogada argentina Laura Pautassi, promotora de um enfoque de direitos em relação ao tema, falava do período 2010-2020 como «a década dos cuidados»31. Hoje isto está mais presente do que nunca. A necessidade de pensar políticas públicas ativas, mediante sistemas integrais de cuidados, que concebam o cuidado como um direito e reduzam as desigualdades de gênero, é fundamental para pensar na recuperação pós-pandemia. Por último, o paradigma dos cuidados, como base de uma transição ecossocial, pretende ser concebido de uma perspectiva multidimensional, incluindo a articulação com as diferentes esferas da vida social: cuidado e saúde, cuidado e educação, cuidado e trabalho, cuidado e acesso à moradia, cuidado e gestão comunitária, entre outros. Em suma, longe de ser uma moda, o paradigma dos cuidados como pedra angular da transição ecossocial revela a potência dos diferentes feminismos hoje mobilizados no cenário social e político, em seu questionamento radical do patriarcado, em sua denúncia do capitalismo como uma máquina de guerra contra a vida e em sua aposta na sustentabilidade da vida digna. 9. A pandemia gerou mudanças importantes na consciência coletiva na América Latina e a expansão de um ambientalismo popular em vários países da região.
Embora os governos latino-americanos tenham aprofundado sua cegueira epistêmica, as mudanças geradas na sociedade civil, em termos de consciência coletiva, são significativas. Por exemplo, o avanço da destruição e dos incêndios da floresta amazônica, que abrange vários países latino-americanos, fez com que, partindo dos diferentes povos da região, fosse realizada a primeira Assembleia Mundial pela Amazônia, «para compartilhar um desejo de mudança, uma postura de unidade, com um chamado global para frear o modelo político extrativista e invasor». Nesse fórum, foram feitas denúncias sobre as queimadas na floresta, a expansão da pecuária e da agroindústria, o desmatamento, a mineração legal e ilegal, a indústria petroleira, as hidrelétricas, a violência dos grupos armados, as ameaças e os assassinatos de líderes sociais, enfim, «a lista de toda a estratégia que os governos e as companhias multinacionais empreenderam, nos últimos cem anos, para se apoderar da floresta amazônica»32.Na Argentina, a questão ambiental voltou a irromper na agenda política, revelando a conexão entre a crise da saúde, o neoextrativismo e a emergência climática. Por um lado, houve numerosas mobilizações que denunciaram os incêndios nas áreas úmidas do Delta e a ação dos lobbies empresariais por trás da recusa em sancionar uma lei de proteção. Por outro, assistimos a uma ampla rejeição ambientalista ao projeto promovido pelo Ministério das Relações Exteriores da Argentina que busca instalar 25 unidades de produção de carne suína para exportação à China33. Como já aconteceu com a soja, a mineração a céu aberto e o fracking, o governo procura avançar sem realizar estudos de impacto ambiental e sanitário, sem abrir a discussão pública nem promover a participação da sociedade. Diversas investigações indicam que as fábricas de carne suína, além de consolidar um modelo cruel de exploração dos animais e envolver riscos ambientais e sanitários, são um terreno fértil para potenciais pandemias. Por último, houve também o rechaço à introdução do trigo transgênico, no qual convergem organizações ambientais e cientistas autoconvocados pela saúde34.Como afirmam as associações juvenis, muito presentes nessas lutas, a crise nos coloca diante de outros «mandatos de desconstrução», não apenas nas relações de gênero, mas também no plano ecológico35. A questão é relevante, pois uma parte importante das ciências sociais e humanas, seja por indiferença, comodidade ou pura negação, vem dando as costas às problemáticas socioambientais, que parecem confinadas a certos «nichos» (ecologia política, economia ambiental, sociologia dos movimentos sociais, geografia crítica, entre outros), quando não reservadas a especialistas das ciências naturais ou das ciências da Terra, como se a esfera ambiental não falasse do planeta, de nossa casa comum, e só remetesse a um aspecto parcial, a mais uma variável, abordável do ponto de vista de uma entre as tantas disciplinas existentes. Como a problemática ambiental incomoda e questiona os credos desenvolvimentistas preexistentes, e significa levantar o véu sobre os modelos de apropriação, de produção, de consumo e de desperdícios que todos reproduzimos, não são poucos os que preferem não abandonar a zona de conforto. Mais ainda, para uma parte importante das ciências sociais latino-americanas, vinculadas ao campo progressista, colocar a atenção no tema ambiental não apenas envolveria um questionamento de seus credos desenvolvimentistas, mas implicaria também se perguntar sobre os alcances de suas adesões políticas. Em tempos de Antropoceno, isto acarreta consequências desastrosas, pois obstaculiza a possibilidade de construção de uma linguagem transdisciplinar, de um enfoque integral que considere a complexidade e a transversalidade da problemática socioecológica.
***O balanço ainda provisório do que ocorreu na América Latina em tempos de covid-19 deixa um gosto amargo e uma sensação ambivalente. Por um lado, os impactos econômicos, sanitários e sociais são tão extensos que ainda é difícil vislumbrar um horizonte de recuperação. Mas é evidente que os governos não se propõem a avançar na transformação da matriz produtiva e apostam, uma vez mais, na reativação da economia com falsas soluções, aprofundando o extrativismo. Também não se avançou em reformas tributárias significativas com o objetivo de financiar políticas públicas de recuperação econômica. Por outro lado, são cada vez mais numerosas as pessoas que aderem a diferentes movimentos e coletivos da sociedade civil em busca de um chamado à transição ecossocial, demonstrando assim a falsa oposição entre o econômico e o ecológico. Certamente a desconstrução em termos ecológicos e a transição ecossocial não são algo simples ou linear, muito menos em um contexto de potencialização do senhorio, de destruição dos ecossistemas e de perigosa expansão das extremas direitas. Mas não temos outra alternativa a não ser navegar por essas águas turbulentas, pois é muito provável que em 2021 os tempos não sejam melhores. Os governos latino-americanos devem abrir o quanto antes a discussão sobre todos esses temas. Pois o risco é que, em um contexto de aceleração do colapso, e no que diz respeito ao roteiro da transição ecossocial, continuemos sendo falados pelos – e do ponto de vista dos – governos do Norte, por – e do ponto de vista de – uma transição corporativa, em detrimento de nossas populações e nossos territórios.
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1.
A antropóloga e feminista argentina Rita Segato elabora a noção de dueñidad, derivada de dueño (dono), para discutir a relação entre sujeitos/as dominados/as no sistema capitalista do século XXI (n. do t.).
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2.
Mar Centenera: «La pandemia agranda la brecha en América Latina: ocho nuevos multimillonarios y 50 millones más de pobres» em El País, 29/7/2020.
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3.
«Rita Segato: ‘El mundo de hoy es un mundo marcado por la dueñidad o el señorío’», comunicado de imprensa, Universidad Internacional Menéndez Pelayo, 26/8/2019.
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4.
François Moutou: «Las zoonosis, entre humanos y animales» em Nueva Sociedad No 288, 7-8/2020, disponível em www.nuso.org.
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5.
M. Svampa: «Reflexiones para un mundo post-coronavirus» em Nueva Sociedad edição digital, 4/2020, www.nuso.org.
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6.
A. Roy: «The Pandemic is a Portal» em Financial Times, 3/4/2020.
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7.
Marie Solis: «Naomi Klein: Coronavirus Is the Perfect Disaster for Disaster Capitalism», entrevista em Vice, 13/3/2020.
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8.
Sobre o tema, v. Carlos Taibo: Colapso, capitalismo terminal, transición ecosocial, ecofascismo, Libros de Anarres, Buenos Aires, 2017.
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9.
P. Servigne e R. Stevens: Comment tout peut s’effondrer. Petit manuel de collapsologie à l´usage des generations presentes, Seuil, Paris, 2015, p. 26.
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10.
Anistia Internacional: «Los países ricos ya están acaparando la nueva vacuna», 9/11/2020, www.amnesty.org/es/latest/news/2020/11/wealthy-countries-already-hoarding-breakthrough-vaccines/.
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11.
«Denuncian que los países ricos han acaparado dosis para vacunar casi tres veces a la población» em La Vanguardia, 9/12/2020.
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12.
«Coronavirus: ¿por qué América Latina es la región con más muertes en el mundo?» em BBCMundo, 19/10/2020.
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13.
Mónica Rubio, Gerardo Escaroz, Anna Machado, Nurth Palomo, Luis Vargas e Marcela Cuervo: «Protección social y respuesta al covid-19 en América Latina y el Caribe. III Edição: Seguridad social y mercado laboral», Unicef / Centro Internacional de Políticas para o Crescimento Inclusivo, Panamá, 7/2020.
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14.
R.M. Lo Vuolo: «La pandemia del covid-19 y sus impactos en Argentina: el espejismo de la opción entre salud y economía» em Revista Rosa, 10/11/2020.
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15.
Cepal: Balance preliminar de las economías de América Latina y el Caribe, Nações Unidas, Santiago, 2020, disponível em www.cepal.org/es/publicaciones/bp.
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16.
Vanni Pettina e Rafael Rojas (eds.): América Latina, del estallido social a la implosión económica y sanitaria post-covid 19, Planeta, Lima, 2020.
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17.
«Pantanal: 7 impactantes imágenes de los incendios en el humedal más grande de Sudamérica» em BBC Mundo, 11/9/2020.
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18.
Iván Federico Hojman: «Más de un millón de hectáreas fueron arrasadas por el fuego» em Télam, 25/12/2020.
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19.
M. Svampa: Debates latinoamericanos. Indianismo, desarrollo, dependencia y populismo, Edhasa, Buenos Aires, 2016.
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20.
Gabriel Kessler y Gabriela Benza: La nueva estructura social latinoamericana, Siglo Veintiuno, Buenos Aires, 2020, p. 86.
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21.
Ibid., p. 85.
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22.
O Novo Pacto Verde teve uma origem reformista-conservadora, associada a certos setores partidários da economia verde. Surgiu entre 2007 e 2008, na Europa, no contexto do Plano 20-20-20 (20% de redução de emissões de gases do efeito estufa e 20% de energias renováveis até 2020), que buscava situar a União Europeia na vanguarda do enfrentamento da mudança climática. Esta aparecia mais vinculada ao Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (2009), elaborado na Conferência Rio+20 em torno da economia verde, um modelo de modernização ecológica que aprofunda a mercantilização em nome de uma economia limpa. O Partido Verde alemão e outros partidos verdes europeus o adotaram na época como plataforma política. Em fevereiro de 2019, porém, foi Ocasio-Cortez que conseguiu dar a ele uma guinada radical. Sobre o tema, v. M. Svampa e E. Viale: El colapso ecológico ya llegó. Una brújula para salir del (mal) desarrollo, Siglo Veintiuno, Buenos, Aires, 2020.
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23.
Kate Aronoff, Alyssa Battistoni, Daniel Aldana Cohen e T. Riofrancos: A Planet to Win: Why We Need a Green New Deal, Verso, Nova York, 2019. [Há uma edição em português: Um planeta a conquistar: A urgência de um Green New Deal, Autonomia Literária, São Paulo, 2021].
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24.
Y. Varoufakis: «¿El poscapitalismo ya está aquí?» em Nueva Sociedad edição digital, 9/2020,www.nuso.org.
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25.
«Ce qui dépend de nous – manifeste pour une relocalisation écologique et solidaire», Attac France, 24/6/2020.
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26.
V. https://pactoecosocialdelsur.com/ e https://pactoecosocialyeconomico.blogspot.com/.
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27.
Mais informações em www.nuestraamericaverde.org/.
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28.
«No es posible tener austeridad, se requiere política fiscal expansiva: Cepal» em Milenio, 6/10/2020.
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29.
R. Lo Vuolo, D. Raventós e P. Yanes: «Renta básica, pandemia y recesión» em Público, 31/3/2020.
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30.
ONU Mulheres, Cepal e Resposta à Covid-19: «Cuidados en América Latina y el Caribe en tiempos de covid-19. Hacia sistemas integrales para fortalecer la respuesta y la recuperación», Nações Unidas, Santiago, 19/8/2020.
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31.
L. Pautassi: «Del ‘boom’ del cuidado al ejercicio de derechos» em Sur vol. 13 No 24, 2016.
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32.
Camilo Chica: «Una gran minga, así fue el 1er día de la Asamblea Mundial por la Amazonía» em Foro Social Panamazónico, 19/7/2020.
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33.
Ver Soledad Barruti, Inti Bonomo, Rafael Colombo, Marcos Filardi, Guillermo Folguera,M. Svampa e E. Viale: «10 mitos y verdades de las megafactorías de cerdos que buscan instalar en Argentina», 2020, disponível em https://drive.google.com/file/d/1vx-hjktexu8u_eieu3-wfhivmjvfl1og/view.
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34.
«Contra el trigo transgénico: científicxs y organizaciones populares convocan a una audiencia pública este viernes» em La Izquierda Diario, 17/12/2020.
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35.
A expressão é de Ana Julia Aneise, integrante do movimento argentino Jóvenes por el Clima, que adere ao Fridays for Future, fundado por Greta Thunberg. Ver M. Svampa: «¿Hacia dónde van los movimientos por la justicia climática?» em Nueva Sociedad No 286, 3-4/2020, disponível em www.nuso.org.