Uma promessa chamada Gabriel Boric
Nueva Sociedad Outubro 2022
A vitória de Gabriel Boric no Chile gerou, por seus próprios méritos, grande entusiasmo dentro e fora do país. No entanto, além dos problemas econômicos, sociais e de segurança que afetam o «modelo chileno», pesa o fato de que o novo projeto de esquerda tenha crescido de forma vertiginosa sem o suficiente enraizamento na sociedade chilena.
A chegada de Gabriel Boric e da Frente Ampla chilena ao governo se transformou na esperança do novo progressismo latino-americano e até mesmo global. Trata-se sem dúvida de uma nova esquerda, e não apenas em termos de renovação geracional, pois é feminista, promove o multiculturalismo, combina uma intensa consciência ambiental com a preocupação clássica pela equidade e a incorporação social dos setores subalternos, e vem afirmando seu forte compromisso democrático e com os direitos humanos, inclusive em referência a processos «sensíveis» para as esquerdas como os de Cuba, Nicarágua e Venezuela. Esse compromisso também se aplica ao Chile em diversos campos, desde a violência policial até o doloroso e persistente problema da violação de direitos sofrida cotidianamente pelas crianças sob a tutela estatal no Serviço Nacional de Menores (Sename)1. Trata-se também de uma esquerda que pensa o Chile a partir da América Latina, em lugar de ver-se (e tentar se apresentar) como o exemplo de país que conseguiu «escapar» da região.
No caso de Boric, essa nova esquerda se articula em torno de uma liderança com capacidade inata para usar elementos simbólicos, conduzir os gestos e gerar empatia, tanto por meio de abraços como nas redes sociais. Durante o período de transição no verão passado, o Chile recuperou a alegria após longos anos de aflição, incertezas e mal-estar. Se a liderança presidencial de Sebastián Piñera gerava tédio e rejeição, a de Boric brilhava. A nomeação de um gabinete ministerial com maioria de mulheres e níveis inéditos de diversidade social e territorial, com expertise técnica, mas também de trabalho social em diferentes setores, também contribuiu muito para gerar uma esperança genuína. E, ao mesmo tempo em que a renovação de elites governantes cristalizava a ilusão de deixar para trás uma classe política tradicional cúmplice dos «abusos» do «modelo», a Convenção Constitucional também prometia abrir caminhos institucionais para uma nova ordem social. Esse clima culminou com uma mudança de comando repleta de simbologia e otimismo.
Contudo, as primeiras semanas do governo liderado por Boric e a direção tomada pela Convenção Constitucional colocaram rapidamente sua promessa em questão e puseram fim a uma intensa porém curta lua de mel. Como tantas outras peculiaridades do Chile («uma economia competitiva, com baixos níveis de colusão e corrupção», «um sistema de partidos institucionalizado», «um Estado capaz e eficiente», «uma sociedade com baixos níveis de informalidade»), essa nova esquerda poderia ser um tanto «hidropônica», sem uma base suficiente na sociedade.
Analiso a seguir os fatores estruturais subjacentes a essa fragilidade. Primeiramente, descrevo as características do sistema político no qual o governo opera. Exploro em seguida a falta de uma sociologia política e economia moral capazes de ancorar um novo modelo de desenvolvimento. Em terceiro lugar, abordo as debilidades centrais do Estado chileno contemporâneo. Finalmente, concluo analisando a difícil encruzilhada diante da qual o governo Boric se encontra hoje.
A (des)estrutura política
Embora se alicerce em uma trajetória coletiva e individual mais longa, cujas origens devem remeter ao movimento estudantil de 2011 e seus antecedentes, a adesão eleitoral que levou à vitória de Boric emergiu em um prazo de nove meses. O que acabaria sendo um impactante triunfo no segundo turno de 19 de dezembro de 2021 começou com um intenso debate interno, em um contexto de forte fragilidade política no qual as alternativas eram apresentar um candidato próprio para marcar presença e evitar uma crise final da Frente Ampla ou simplesmente aderir à candidatura liderada pelo prefeito comunista Daniel Jadue. As dúvidas e dificuldades para coletar as 32.000 assinaturas necessárias para registrar a candidatura em um pleito com mais de 14 milhões de eleitores refletiram a fragilidade do projeto presidencial de Boric.
Durante os nove meses transcorridos entre março e dezembro de 2021, a candidatura de Boric superou todos os obstáculos se fundamentando em duas estratégias: destacar as características pessoais do candidato («escuta», «reconhece seus erros e sabe pedir perdão», «apostou na via institucional, mesmo contra seu próprio partido») e transformá-lo no melhor candidato «anti». No início anti-Jadue, ele se tornou anti-Coalizão Democrática e anti-Piñera para, finalmente, ser anti-José Antonio Kast, o candidato da extrema-direita. Nesse trajeto, consolidou-se uma proposta programática que ganhou força na disputa com o candidato comunista nas prévias da Aprovo Dignidade, a chapa formada da aliança entre a Frente Ampla e o Partido Comunista: «as pessoas querem mudanças tranquilas, com segurança».
Vertiginoso, o crescimento eleitoral não foi acompanhado de um fortalecimento de suas bases sociais e organizacionais. O resultado da eleição parlamentar também reflete essas fragilidades, já que muitos que votaram em Boric e na Aprovo Dignidade no segundo turno optaram por parlamentares de outros partidos na eleição legislativa. O mesmo ocorreu nas eleições locais e regionais, assim como no primeiro turno presidencial.O governo se estrutura hoje em duas coalizões. Por um lado, a coalizão da Frente Ampla com o Partido Comunista e outros partidos menores (Aprovo Dignidade), que sustentou a candidatura presidencial de Boric; por outro, a aliança com a social-democracia, representada pelo Partido Socialista (ps) e pelo Partido pela Democracia (ppd). A poucas semanas da transferência de comando, era evidente a tensão entre ambas as coalizões, propiciada pela ocupação social-democrata de cargos-chave do governo e o mal-estar da velha guarda do Partido Comunista.
A escassez de quadros próprios e a necessidade de viabilizar maiorias legislativas com o bloco ps-ppd tornaram fundamental a incorporação de figuras de destaque da Coalizão Democrática no novo governo. Ainda que isso confira capacidade de gestão e experiência ao governo e tranquilize os mercados, também abre flancos na esquerda da Aprovo Dignidade e gera desconfiança em quem apostava em uma renovação (mais profunda) de elites. Também começou a gerar ruído o desempenho de Izkia Siches, uma liderança central na estrutura do governo e sem filiação partidária. A ex-presidenta da Ordem dos Médicos, que assumiu o comando da campanha no segundo turno e teve um papel fundamental na conquista de votos no norte do país, está hoje a cargo da Chefia de Gabinete e do ministério do Interior, o de mais difícil gestão.Certamente por oposição à liderança onipresente e opressiva de Piñera, Boric restringiu sua presença pública e deu protagonismo a seus ministros e diferentes figuras do governo nas primeiras semanas após a posse. Embora razoável e bem-vinda, essa modalidade de gestão envolve riscos, particularmente quando as vozes de governo começaram a soar como um coro desafinado e desorganizado de personagens empenhados em se fazer ouvir ou estar presente na mídia e nas redes sociais.
Mas as dificuldades já enfrentadas pelo governo não são meramente atribuíveis à liderança presidencial, a seu elenco ou base política; elas refletem na verdade aspectos sistêmicos. Além de ter se tornado ilegítimo para a maioria da população chilena, o sistema de partidos tradicional perdeu capacidade de dar coesão e canalizar institucionalmente conflitos sociais centrais que ficaram órfãos de representação política. Com a explosão de protestos em 2019, esses conflitos latentes e presentes há tempos, tanto setoriais como territoriais, irromperam de forma estridente no cenário nacional. Mas a «explosão» só é representável em sua vontade destituinte (da classe política tradicional) e na negação dos pilares institucionais da ordem preexistente. Para além de ambos os tropismos, não há (ainda?) nas elites emergentes capacidade de síntese ou articulação do descontentamento em termos mais construtivos.
A evolução da Convenção Constitucional reflete claramente a impossibilidade de dar uma direção ao conflito no Chile atual. Instalada com níveis de legitimidade social inéditos no período pós-ditadura, a Convenção se tornou refém de sua própria legitimidade, buscando afirmá-la e reafirmar-se mediante gestos e guinadas identitárias que geram cada vez menos adesão na opinião pública. Mais que uma solução institucional para os problemas do Chile, a Convenção e seu processo refletem a dificuldade de representar de forma construtiva as raivas, demandas e identidades que foram legitimamente forjadas (e se bifurcaram) após décadas de negação e postergação.
Essas raivas, demandas e identidades têm como contraposição o esvaziamento, a ilegitimidade e a fragmentação das organizações partidárias e dos movimentos sociais. Enquanto os movimentos sociais se encontram e convergem nos protestos de rua, os partidos somam os votos dos que concorrem por suas legendas nos dias de eleição, mas ambos são frágeis do ponto de vista organizacional e não resistem à primeira tentativa de síntese, proposta ou emergência de uma liderança, que rapidamente gera seus «anti». Nesse contexto, o vazio é preenchido por personagens que mobilizam rapidamente e tentam estender seus 15 minutos de fama cavalgando com habilidade a controvérsia ou o escândalo cotidiano. Esses personagens protagonizam uma discussão política tão pobre que, em muitos aspectos, acaba sendo uma lamentável briga, um debate cheio de preconceitos, pequenas disputas e alusões ad hominem. Há quem veja nessa briga uma polarização esquerda-direita, mas, no melhor dos casos, trata-se de uma polarização mais artificial entre pessoas que, à esquerda e à direita, tentam se descolar da mácula sistêmica. Nessas discussões superficiais passam-se os dias, meses e períodos eleitorais.
As fragilidades enfrentadas hoje pelo governo de Boric para estruturar e analisar o conflito provêm de um sistema que funciona com essa lógica há anos e tem como próprias essas fragilidades. A principal vantagem que têm hoje o presidente e seu governo é uma crescente clivagem geracional (que conseguiu incorporar parcialmente jovens de segmentos populares), ainda em processo de cristalização. Entretanto, os partidos que propiciaram sua candidatura estão totalmente voltados à ação de governo e veem debilitada sua já escassa presença organizacional na sociedade. E em uma economia na qual falta pão, o circo – tão próprio do sistema político nacional e seu curso – estará rapidamente jogando contra o presidente e seu elenco.
Um novo modelo de desenvolvimento sem atores
O desafio para uma nova esquerda em escala regional consiste em encontrar uma alternativa que permita gerar crescimento econômico e proteção social, escapando – ou ao menos atenuando – das lógicas de crescimento predominantes na primeira «guinada à esquerda». Durante a primeira década e meia do século xxi, a esquerda aderiu ao que Maristella Svampa denominou o «Consenso das Commodities» para buscar crescimento econômico e incorporação ao consumo2. Esse padrão de crescimento se vê hoje impedido, entre outros motivos, pela crise ecológica e por seus impactos em territórios e comunidades. Ao mesmo tempo, a restrição fiscal (incomparável com o relaxamento gerado pelo boom das matérias-primas entre 2005 e 2015) restringe as margens de ação e gasto público.
Por sua vez, os programas de transferência condicionada, altamente eficazes graças a seu impacto na pobreza e baixo custo fiscal, se tornaram insuficientes em termos distributivos. A segunda transição demográfica e a necessidade de reduzir as diferenças de gênero exigem hoje expandir políticas de cuidado e reformar sistemas de pensões e saúde pública precários. A maior incorporação ao sistema educacional formal atingida nas últimas décadas, contudo, não reduziu suficientemente as diferenças internas (entre ricos e pobres) e externas (com relação ao alcance e à qualidade educacional em países desenvolvidos). Em um mundo em plena revolução tecnológica, os déficits em pesquisa e desenvolvimento limitam a capacidade dos países latino-americanos de se inserirem em cadeias de valor globais como algo mais que produtores de matérias-primas.
Essa incapacidade afeta também uma crescente dualização dos mercados de trabalho locais ao ampliar distâncias entre quem tem acesso a trabalhos de alta produtividade e remuneração, e quem presta serviços em condições de emprego cada vez mais precárias. Nessa força de trabalho precarizada participa cada vez mais a população migrante, cuja incorporação no mercado de trabalho, em contextos de baixa sindicalização, pressiona a queda dos salários e alimenta reações xenofóbicas por parte de trabalhadores nacionais alijados.
O problema da moradia também reflete um processo de forte dualidade entre quem tem acesso a créditos para investimento imobiliário (desde a compra de apartamentos para aluguel até o desenvolvimento imobiliário) e quem se vê obrigado a pagar aluguel em um contexto no qual a escassez de oferta e o enrijecimento dos créditos para setores médios e baixos pressionaram os preços para cima. No caso do Chile, por exemplo, estima-se que cerca de dois milhões de pessoas não têm acesso a uma moradia digna no pós-pandemia. Nesse contexto social geral, a informalidade e inclusive a ilegalidade voltaram a ganhar força como canais alternativos para a aspiração de mobilidade social bloqueada por uma economia formal fortemente estamental que reproduz desigualdades – que têm se politizado consideravelmente nos últimos anos.
Já os Estados, que deveriam desempenhar um papel de articulação estratégica na promoção de indústrias e setores capazes de gerar um novo tipo de crescimento econômico, são hoje cada vez menos capazes de realizar essa tarefa. É claro que isso também afeta sua capacidade de regular e canalizar conflitos por vias institucionais. Por um lado, os governos enfrentam enormes restrições fiscais no cenário pós-pandemia de baixo crescimento com inflação. Por outro, na nova economia digital e com a irrupção dos gigantes da gig economy, os Estados perderam o monopólio da capacidade de gerar informações sobre as sociedades que governam. Empresas como Google e Microsoft contam hoje com informações e capacidade de análise de dados melhores que as administrações pelas quais deveriam ser reguladas. Por exemplo, ao combinarem dados estatais abertos com dados privados, as consultoras de prospecção mineral possuem informações melhores que as dos órgãos de regulação estatais.Além disso, uma parte considerável da nova informalidade na economia funciona sobre a base de aplicativos cuja regulação se tornou virtualmente impossível. Isso ocorre em parte porque, em uma economia precarizada, os aplicativos também funcionam como um seguro de desemprego e rede subalterna de proteção social. Finalmente, a quebra do monopólio informacional também fragiliza o monopólio da coerção no qual se sustenta a capacidade estatal de regular legitimamente as interações sociais. Como regular melhor com piores informações relativas? Em suma, a institucionalidade estatal e seu poder se veem desafiados por cima e por baixo.
Quais são os desafios enfrentados por Boric e seu governo nesse plano? O Chile conta hoje com um modelo de crescimento econômico esgotado, em sua sociologia política e economia moral. O velho modelo – que, nas palavras do presidente Piñera dias antes da explosão de 2019, consagrava o Chile como um «oásis» no deserto latino-americano – está quebrado. Os atores, as instituições e os repertórios que faziam esse modelo «funcionar» carecem hoje de legitimidade, mas essa falta de legitimidade não se traduz na articulação de uma alternativa.
O Chile possui condições únicas para se tornar uma potência verde com a produção de energias renováveis (solar, eólica, hidrogênio verde) e a exploração sustentável de matérias-primas essenciais para indústrias limpas (por exemplo, o cobre, cada vez mais demandado como condutor, e o lítio, fundamental para a produção de baterias). No entanto, explorar essas riquezas requer não somente adotar uma abordagem ambiental, mas também fornecer estímulos para o investimento em um contexto no qual os marcos regulatórios estão sendo fortemente contestados e sob revisão (na Convenção Constitucional), e no qual os conflitos territoriais e repertórios de ação coletiva no nível local se concentraram durante anos na oposição a indústrias extrativistas. Há, portanto, um clima de dupla desconfiança: a de potenciais investidores e eventuais sócios do Estado, e a de comunidades que durante décadas têm sofrido as consequências da exploração socialmente irresponsável de recursos naturais.
A articulação de um novo modelo também sofre com a falta de atores. Para além de expressões locais extremamente fragmentadas ou de grupos de interesses e identidades mais «monotemáticos», os únicos atores ainda organizados e com capacidade de ação coletiva (embora ultimamente só consigam gerar bumerangues na opinião pública) são os empresários do velho modelo. No plano geopolítico, por sua vez, a mudança mais relevante é a crescente presença chinesa em setores estratégicos da economia chilena. Nem os empresários tradicionais nem a China, pelo menos se agirem sem contrapesos, fornecerão a base para articular um novo modelo.
Enquanto isso, o que certamente se vê em La Moneda são demandas, petições, descontentamento e esperanças, tudo tão imediato quanto fragmentado em sua articulação coletiva. A denominada «quinta retirada» (a possibilidade de retirar 10% extras dos recursos de pensão das contas de poupança pessoal) à qual o governo hoje se opõe (tendo apoiado os quatro projetos anteriores quando atuava na oposição) é talvez a manifestação mais visível desses tipos de demanda, seu imediatismo e falta de articulação coletiva. Qualquer semelhança com as lógicas que predominaram na Convenção Constitucional não é mera coincidência, pois em poucas palavras, há demandas no Chile, mas não (ainda) atores nem projeto para um novo modelo de desenvolvimento. Os chilenos sabem hoje muito bem o que não querem e do que não gostam, e depositam sua esperança em um novo modelo que, em termos de projeto, é uma enteléquia. Pensar que o novo texto constitucional (mesmo se acabar sendo de grande qualidade e aprovado por uma ampla margem que o confira legitimidade) representa esse projeto é também ceder ao pensamento mágico.
Como o modelo em crise, o novo projeto também está órfão de economia moral. O legado mais persistente do neoliberalismo no Chile é a destruição de bens públicos, sem os quais, estendidos e socialmente transversais, se torna praticamente impossível articular coalizões políticas amplas para negociar os parâmetros de um novo modelo. Não há bens públicos no Chile, e muito pouca gente os promove ou deseja para si. A título de exemplo, a sentida demanda por um sistema de pensões mais generoso e justo entra em choque com a preferência, também majoritária, por um sistema de capitalização individual no qual cada um poupa o que pode. Por sua vez, a educação pública leva o estigma de ser a educação dos mais pobres, mesmo que ofereça, em muitos casos, qualidade igual ou superior à dos colégios subvencionados com os quais compete no nível local. A grande maioria daqueles que podem realizar um copagamento mínimo separa seus filhos dos mais pobres, o que intensifica a deterioração de um bem público social fundamental. Em resumo, pesa não somente a falta de atores com capacidade de sustentar um modelo alternativo, mas também a incapacidade de reconstituir um ethos que fomente a reconstituição de bens públicos em torno dos quais se articulem progressivamente novas coalizões sociais que os sustentem.
A (des)ordem
Implementar uma economia política e uma sequência de reformas capaz de avançar na frente econômica e social é uma tarefa complexa, assim como solucionar os problemas de ordem que hoje constituem uma grande preocupação para a sociedade chilena. Em princípio, os problemas de ordem são quatro, e todos têm causas de longa duração, ainda que cada um deles tenha se aprofundado durante o governo de Piñera por uma combinação de ações e omissões.(
a) O conflito na região da Araucanía tem crescido significativamente e gerado episódios de violência cotidianos. De longa data no Chile, ele tem múltiplas vertentes e expressões, que se refletem também em termos territoriais e em rupturas e conflitos internos entre militantes da causa mapuche. A título de exemplo, os grupos mais radicais que participam do conflito não reconhecem os constituintes mapuche na Convenção Constitucional como seus representantes e descartaram desde o início sua participação em esforços de diálogo e negociação com o governo de Boric. A primeira incursão do novo governo na área de conflito foi repelida (com sucesso) a tiros. A ancestral heteronomia das comunidades mapuche dificulta assim a capacidade de chegar a acordos vinculantes e relativamente amplos. Além disso, há na região crescentes apostas paramilitares por parte de proprietários de terras e empresas, que também contribuem para a escalada de violência. A coordenação entre segurança privada e pública é pouco transparente, mas os depoimentos disponíveis apontam para um conluio de fato entre as forças de segurança pública, proprietários de terras e empresas. Isso também se traduz em uma série de abusos perpetrados pelo Estado contra comunidades indígenas.
Por outro lado, existem na região várias expressões de atividade criminosa vinculadas ao roubo de madeira, extorsão (imposto de segurança), cultivo de maconha e tráfico de terras. Com relação a esse último problema, há sérios questionamentos com respeito à ação da Corporação Nacional de Desenvolvimento Indígena (conadi) quanto à compra de terras e sua distribuição a comunidades indígenas. Em suma, a desordem e a consolidação de territórios liberados têm gerado incentivos para o estabelecimento de diversas atividades econômicas ilegais, não necessariamente (ou diretamente) associadas ao conflito original.
(b) A situação na fronteira norte do país vem se deteriorando visivelmente nos últimos anos diante da inoperância do Estado chileno para regular a migração e o tráfico fronteiriço com a Bolívia e o Peru. Tradicionalmente utilizada por redes de contrabando e tráfico de bens e pessoas, essa fronteira parece estar hoje fora de controle. O fluxo de população migrante tem gerado por sua vez surtos de xenofobia e crescentes conflitos sociais entre imigrantes e a população local. Forças políticas emergentes de caráter nacionalista e conservador estão se aproveitando desses conflitos em busca de crescimento eleitoral. A situação atual é tão tensa que o governo de Boric decidiu prorrogar o estado de exceção no norte do país, o que permite a mobilização de forças armadas para colaborar em atividades de patrulhamento e controle.
(c) A expansão do narcotráfico ganhou especial notoriedade na agenda pública. Em particular, a estrutura do microtráfico em bairros gera dois tipos de problema. Por um lado, há situações de controle territorial pautadas por um abandono tácito por parte do Estado (o que não necessariamente implica a ausência de forças policiais, mas processos de conivência com gangues locais) e uma forte violência estrutural. Essas situações acabam produzindo escaladas de violência em disputas territoriais entre gangues. Por outro, ocorre um aumento nos casos de roubo com violência (em estabelecimentos comerciais, residências e vias públicas, especialmente contra veículos). Isso vem acontecendo porque a estrutura relativamente precária das gangues do microtráfico se associa ao financiamento recorrente de compra de produtos por meio de dinheiro obtido com a venda de artigos roubados.Simultaneamente à expansão do narcotráfico, também têm se expandido organizações criminosas vinculadas a atividades de extorsão, microcrédito informal, assassinatos de aluguel, ocupação de terrenos e propriedades, e administração de espaços de venda para o comércio informal. A irrupção desses fenômenos se associa ainda a um maior clima de conflito e episódios de violência recorrentes no espaço público, que também contribui para um aumento significativo dos homicídios no país.
(d) Finalmente, o governo também enfrentou já durante suas três primeiras semanas violentos protestos de rua que precisou sufocar recorrendo à repressão policial. Esses últimos episódios tornaram mais tensa a relação com parte de sua base social – inclusive figuras do Partido Comunista – e movimentos sociais (como parte do movimento de estudantes secundaristas, que já se declararam opositores ao governo). Para tentar controlar as manifestações violentas, um elenco governista fortemente associado ao protesto se viu diante da necessidade de recorrer rapidamente ao apoio dos Carabineiros, instituição envolvida na violação de direitos durante a repressão dos protestos de 2019. O episódio mais chamativo (pelo momento em que ocorreu) foi uma declaração pública da ministra Siches dando absoluto respaldo aos Carabineiros antes da comemoração do Dia do Jovem Combatente, organizada por coletivos de esquerda para recordar o assassinato de três militantes comunistas em 1985 e protestar contra a ditadura pinochetista3.
Os quatro problemas associados à agenda de ordem e segurança têm como mínimo denominador comum o papel das forças de ordem e a presença, evidente porém problemática, de contradições entre o discurso eleitoral, a própria origem da Frente Ampla e sua ação de governo. Com relação ao papel das forças de segurança e especialmente dos Carabineiros, o desafio consiste em encarar uma reforma profunda da instituição para, entre outras coisas, submetê-la a um controle civil efetivo enquanto ela precisa seguir operando nas ruas para solucionar problemas que hoje se tornaram o centro da preocupação da sociedade chilena.
Quanto ao conflito na Araucanía, as primeiras semanas indicaram uma falta de profundidade no diagnóstico de suas facetas e complexidade. Os interlocutores chamados ao diálogo e gestos relevantes como o de encerrar o estado de exceção – diferentemente do que foi decidido para o norte do país – geraram até o momento reações violentas por parte dos atores mais radicais. Dialogar e negociar são atividades que requerem a capacidade de impor condições e custos aos envolvidos em troca de garantias. Novamente, no entanto, para um diálogo bem-sucedido e vinculante, o governo depende de atores que lhe são hostis em princípio, sobre os quais não exerce influência suficiente e que, em última análise, desconfiam da prometida «refundação» das forças da ordem.
A encruzilhada
Acredito que o governo se encontra diante de um dilema. Uma opção, pelo menos por padrão, é se constituir como um governo que promova sem muita coordenação diferentes agendas e reformas setoriais, tentando ao mesmo tempo encaminhar a gestão cotidiana de temas centrais para a população (por exemplo, a reativação econômica e a restituição da ordem pública). Essa gestão pode também ganhar força com o atendimento de demandas mais estimadas por sua base social, como o avanço da agenda de gênero e o compromisso ambiental.
Nesse cenário, o desfecho da proposta de nova Carta Magna que surgir da Convenção Constitucional também será extremamente relevante para o governo e sua gestão. Caso a nova Constituição seja aprovada, parte considerável da ação governamental deverá se voltar à difícil transição entre ambas as ordens constitucionais. Por outro lado, a rejeição do novo texto constitucional constituirá um duro golpe na agenda de transformação social defendida pelo governo e pode acabar complicando o clima no qual deverão ser negociadas reformas para as quais os governistas não contam com maiorias legislativas suficientes. Nesse cenário, a sorte final do governo dependerá da efetividade de sua gestão e de sua capacidade de manter níveis razoáveis de adesão à base de sua política de comunicação. Se tudo correr bem, ele talvez consiga apresentar figuras governistas como alternativas para disputar a próxima eleição. Há para isso vários bons nomes. Caso as coisas não saiam bem, é provável que o novo «anti» seja oferecido pela ultradireita, hoje fortalecida pelo colapso da centro-direita e pelo crescimento do Partido Republicano na última eleição.
A segunda alternativa consiste em tentar articular um projeto de desenvolvimento integral, estruturando e organizando atores sociais hoje sem expressão coletiva. A liderança de Boric e a elevada adesão que provoca, assim como a perplexidade e a fragilidade relativa dos atores centrais do velho «modelo», abrem uma possibilidade fugaz de comprar tempo e tentar essa articulação. O risco de tentar essa estratégia é que ninguém sabe muito bem como viabilizar esse projeto, dotando-o de bases sociais e de uma nova economia moral. O risco de não tentar é transformar essa nova alternância rumo à esquerda em outro movimento efêmero de um pêndulo que se alimenta há décadas de um descontentamento com os que governam, mas que carece de articulação política.
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1.
Javiera Matus: «Sename registró 4.500 denuncias por maltrato a menores en 2020» em La Tercera, 14/2/2021.
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2.
M. Svampa: «‘Consenso de los Commodities’ y lenguajes de valoración en América Latina» em Nueva Sociedad No 244, 3-4/2013, disponível em www.nuso.org.
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3.
«Siches por Día del Joven Combatiente: ‘No vamos a tolerar ataques violentos’» em El Desconcierto, 29/3/2022.