É hora de uma nova política Norte-Sul
Nueva Sociedad Novembro - Dezembro 2024
Em uma era multipolar, em que a hegemonia ocidental há muito deixou de existir, é imperativo adaptar a nova política Norte-Sul aos novos desafios. São necessárias novas parcerias entre o Norte global e o Sul global para promover a defesa dos direitos humanos, a luta contra a crise climática e a democratização da ordem internacional. O fortalecimento das relações entre a Alemanha e o Brasil pode desempenhar um papel-chave nesse contexto.

Em 2022, o mundo olhava fascinado para o Brasil e as eleições no maior país da América Latina, e a social-democracia alemã também estava acompanhando tudo de perto. Na minha visita a São Paulo, alguns meses antes, havia garantido o apoio do spd [Partido Social-Democrata da Alemanha] a Luiz Inácio Lula da Silva, candidato do pt [Partido dos Trabalhadores] à Presidência. A vitória apertada de Lula foi um sucesso importante, não apenas para o Brasil, mas também internacionalmente para a democracia, a cooperação internacional e a luta contra a crise climática. Sempre recorrendo às mesmas narrativas, a extrema direita quer destruir os pilares da democracia e impedir a cooperação internacional, contando com o apoio de redes transnacionais. É hora de fortalecer as parcerias existentes e criar novas, a fim de enfrentar os desafios comuns no mundo atual. Isso vale, sobretudo, para a cooperação entre o chamado Ocidente ou «Norte global» e o chamado «Sul global». As relações entre a Alemanha, o Brasil e a Europa podem desempenhar um papel-chave nesse contexto.
Sobrevivendo em um mundo globalizado
Já na década de 1970, Willy Brandt exigiu uma relação diferente e respeitosa do «Norte global» em relação ao «Sul global» e fortaleceu o diálogo entre partidos e governos no mundo todo. As resoluções apresentadas pela Comissão Norte-Sul, composta por 18 membros e chefiada por Willy Brandt, ainda soam visionárias mesmo nos dias de hoje. Constituem um guia para a sobrevivência comum em um mundo globalizado. O relatório exigia, por exemplo, uma maior integração dos países mais pobres na economia mundial e reformas das organizações internacionais. Além disso, lançava um alerta contra os impactos dos desafios globais como a crise climática, os movimentos de refugiados, a pobreza, a fome e a desigualdade. Muitas dessas crises estão mais acirradas hoje, e muitas das principais demandas de Willy Brandt ainda não foram implementadas. Em vez de tratar os países da África, da América Latina e da Ásia com ares de superioridade, ele os considerava seus parceiros centrais para solucionar os desafios comuns.
É preciso reconhecer que as promessas políticas e econômicas do modelo de desenvolvimento ocidental não se concretizaram, quando analisadas sob a perspectiva atual de muitos países do «Sul global». O período conhecido por muitos na Europa como tempo de fartura, paz e segurança representou, frequentemente, a continuação de crises e o agravamento das desigualdades econômicas e sociais para muitas regiões do «Sul global», o que inclui os ajustes econômicos estruturais, as intervenções militares e o uso de armas de pequeno calibre, que passaram a ficar disponíveis em grandes quantidades com o fim da Guerra Fria. Neste contexto, também deve ser mencionada uma política de endividamento que mantém muitos países em uma espiral decrescente da qual dificilmente conseguem sair sem esforços conjuntos ou novas abordagens.
Ordem mundial multipolar: uma promessa emancipatória
Willy Brandt impulsionou debates importantes. Porém, durante a era bipolar da Guerra Fria, as superpotências não tinham grande interesse em alterar as estruturas da ordem internacional. Após a queda da «Cortina de Ferro», as discussões sobre uma nova política Norte-Sul foram relegadas a um plano ainda mais secundário. Para muitos, era meramente uma questão de tempo até que só houvesse democracias liberais de mercado no mundo. Francis Fukuyama inclusive anunciou o fim da história. Que equívoco pretensioso.
É imperativo adaptar a nova política Norte-Sul aos novos tempos. Há muito deixamos de viver em um mundo bipolar. Estamos em uma era multipolar, na qual o mundo se organiza em vários centros, criando relações, dependências e cooperações. Essa ordem mundial traz enormes vantagens para muitos países. A integração em um bloco não é mais necessária. Os países podem escolher com quem querem cooperar em função do tema. Por conseguinte, as negociações entre os países tornaram-se mais relevantes. No entanto, tão importantes quanto elas são as relações resilientes e baseadas na confiança.
Para muitas pessoas e governos – sobretudo em países do «Sul global» –, o mundo multipolar traz uma promessa emancipatória. Iniciativas como o brics dão voz a alguns países do «Sul global» em uma ordem internacional cujas instituições ainda são fortemente dominadas por países industriais ocidentais.
Repensar para forjar novas parcerias
Quando analisamos os fatos, precisamos reconhecer que a hegemonia ocidental acabou há muitos anos. Embora a Europa continue exercendo uma importante influência econômica e política, não existe nem uma única crise global que o Ocidente consiga resolver sozinho. Precisamos de novas parcerias para continuar defendendo nossos interesses. Isso nos obriga a repensar as estratégias: as crises que são prioridade para nós não são necessariamente a prioridade de outros países. O ministro das Relações Exteriores da Índia, Subrahmanyam Jaishankar, sintetizou as expectativas do «Sul global» em relação a nós, europeus, da seguinte forma: «A Europa precisa deixar de achar que os problemas da Europa são os problemas do mundo e que os problemas do mundo não são os problemas da Europa». Quando começou a guerra de agressão da Rússia contra a Ucrânia em violação ao direito internacional, muitos políticos ocidentais instaram os países do «Sul global» a participar das sanções. Inicialmente, não queriam enxergar as consequências econômicas e sociais devastadoras que isto implicaria para esses países. E o tom moralista de muitos discursos suscitou irritações. Tivemos de reconhecer que a maioria dos países no «Sul global» condena o ataque russo e a violação do direito internacional, mas não está disposta a dividir os custos da guerra.
Agora, estamos enfrentando um desafio ainda mais complicado com a escalada da violência no Oriente Médio. O terror brutal do Hamas praticado contra israelenses inocentes deixou o mundo todo horrorizado. A República Federal da Alemanha e o spd expressaram, com razão, sua solidariedade ao Estado de Israel e à sua população. Nada justifica os assassinatos bárbaros. A atuação implacável do exército de Israel na faixa de Gaza provocou críticas maciças e acusações de dupla moral ocidental.
Nossos parceiros no «Sul global» nos perguntam: por que o Ocidente condena a destruição da infraestrutura civil na Ucrânia, mas não o faz em Gaza? Por que a Alemanha não se distancia mais de Israel diante de milhares de civis mortos em Gaza, dos quais mais de dois terços são mulheres e crianças? Por um lado, Israel tem o direito à autodefesa; por outro, tem a responsabilidade de respeitar o direito internacional e preservar a proporcionalidade. A proteção da população civil deve ter prioridade, como a Corte Internacional de Justiça deixou bem claro. Essa também é nossa expectativa. Para que continue a existir a perspectiva de uma paz duradoura, devemos nos nortear claramente pelo objetivo da autodeterminação de ambos os povos, no sentido da solução de dois Estados. Deveríamos manifestar esse objetivo claramente no seio da comunidade internacional e nos engajar politicamente nesse sentido.
O Ocidente tem uma responsabilidade
A fim de solucionar os conflitos do nosso tempo, temos de tratar as posições dos nossos parceiros com respeito, não moralismo. A defesa dos direitos humanos e a luta contra a crise climática também são promovidos pelo «Sul global», e os desafios globais precisam ser enfrentados em conjunto. Em um mundo multipolar, é importante permitir as diferenças, identificando ao mesmo tempo interesses comuns. Portanto, é mister nos dedicarmos juntos à democratização da ordem internacional a fim de consolidar a nova política Norte-Sul também estruturalmente. Somente poderemos defender uma ordem baseada em regras se estivermos dispostos a reformá-la.
Para tanto, é necessário ter perseverança, dado que não se constrói confiança da noite para o dia. O Ocidente tem o dever de apresentar propostas justas que sejam vantajosas para ambos os lados, porque agora, diferentemente do passado, existem parceiros alternativos no cenário internacional. A Rússia e a China marcaram presença por muitos anos, quando o Norte demonstrou pouco interesse pelo «Sul global», o que, aliás, ainda foi perceptível recentemente na pandemia – apesar de a política Norte-Sul também ser de importância central para o bem-estar e a segurança da Alemanha e da Europa.
Qualidade de vida e bem-estar no mundo todo
Qual poderia ser a cara dessa nova política? Inevitavelmente, ela teria que defender uma transformação socioecológica global e a democratização da ordem internacional. E, na luta contra a crise climática, igualmente só pode haver uma resposta global, mas deve ser uma resposta que funcione para todos os envolvidos. Muitos países do «Sul global» têm a impressão de que o debate travado na Europa sobre a crise do clima é um apelo para abrirem mão de crescimento e prosperidade. Com razão, apontam que nossa prosperidade na Europa foi conquistada por meio do colonialismo, carvão, petróleo e gás natural, frequentemente explorando os recursos naturais do «Sul global».
No entanto, deve ser possível melhorar a qualidade de vida de todos e promover o bem-estar global sem criar novas dependências e sem discurso moralizante. Um debate sobre renúncias reduz a chance de aceitação da política climática. Já vimos esse filme na Alemanha. Portanto, quando insistimos em proteção do clima na nossa cooperação para o desenvolvimento, temos que incluir sempre uma política estrutural e uma compensação social. O combate da crise climática é uma tarefa para toda a humanidade. Atualmente, já estamos vendo o aumento das catástrofes naturais e como elas causam movimentos migratórios nos países e entre países e, mais uma vez, as consequências da crise são piores no «Sul global». Por isso, o empenho pela proteção do clima e pela preservação da biodiversidade e dos ecossistemas precisa estar em primeiro lugar.
Outro ponto é a criação de valor localmente. Quando estabelecemos novas parcerias climáticas e de recursos com países do «Sul global», nossos parceiros pleiteiam legitimamente que isso também deve gerar empregos e crescimento em seus países. No futuro, nossa cooperação para o desenvolvimento terá que focar mais no engajamento social e ecológico in loco. Isso significa, por exemplo, que não vamos apenas importar hidrogênio verde do «Sul global», mas que também vamos investir na construção de instalações nesses países e assim criar empregos neles. Trata-se de abordagens que podemos desenvolver efetivamente na nossa cooperação bilateral, seja como Alemanha seja como União Europeia, ou juntamente com outros parceiros. Tais abordagens também contribuem para que sejam alcançados os objetivos centrais para nós da Agenda 2030 das Nações Unidas para o Desenvolvimento Sustentável.
O futuro da ordem internacional
A segunda grande área é a democratização da ordem global. A Alemanha é um dos países que mais se beneficiam de uma ordem internacional baseada em regras. E países como a Rússia estão atacando essa ordem enquanto outros, como a China, tentam moldá-la de acordo com seus interesses. A desordem resultante torna o mundo mais imprevisível, mais propenso a crises e, em geral, mais inseguro. Por isso, é muito importante defendermos a ordem internacional, mas isso pressupõe sua reforma. Essa é a única de maneira de garantir paz, segurança e crescimento sustentável no longo prazo.
Um foco são as Nações Unidas, que refletem o equilíbrio de poder após a Segunda Guerra Mundial. Mas desde então o mundo mudou. Para que as Nações Unidas tenham um futuro como guardiã da ordem internacional baseada em regras, são necessárias reformas que considerem as relações de poder atuais em um mundo multipolar. No centro, deve estar a reforma do Conselho de Segurança. Na assim chamada iniciativa do g-4, a Alemanha, o Brasil, a Índia e o Japão declararam, há quase 20 anos, apoio mútuo para conseguir um assento permanente no Conselho de Segurança. E os países africanos devem igualmente estar melhor representados.
Em paralelo, é decisivo reformar as instituições financeiras internacionais. Isso fará com que, por exemplo, âmbito do Banco Mundial e dos bancos regionais de desenvolvimento sejam contemplados muito mais investimentos em bens públicos como educação, saúde, infraestrutura, proteção do clima e biodiversidade, considerando que o aumento drástico da dívida pública está impedindo o investimento no futuro em muitos países. Precisamos de uma solução duradora no seio da comunidade internacional para essa crise de endividamento. Mas precisamos garantir que os programas do Fundo Monetário Internacional protejam a participação social e evitem as desigualdades nas crises de endividamento. Também não devemos repetir os erros dos programas neoliberais de ajuste estrutural do passado.
Novas cooperações, parcerias fortes
Todas essas áreas oferecem possibilidades de uma cooperação reforçada e parcerias com países do «Sul global». Isso vale, em particular, para os países latino-americanos, em especial para o Brasil. Sendo o maior país da região e exercendo a Presidência do g-20, o Brasil está lançando debates importantes, como o imposto mínimo global para empresas e a luta contra a desigualdade e a pobreza, bem como a reforma do multilateralismo. Na luta contra a crise climática global, o país também ocupa posição de destaque. Sob a presidência de Lula, o país voltou a ser um aliado próximo. A cop30 [Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas] na região amazônica brasileira será um marco decisivo. Por exemplo, na cooperação sobre hidrogênio verde, o aumento da demanda na Alemanha e na Europa não deve resultar em novas dependências hierárquicas baseadas essencialmente na importação de matérias-primas. Ao contrário, a consequência deve ser a criação de valor e o desenvolvimento industrial também no Brasil. Apesar de análises e perspectivas diferentes, como no caso do ataque russo à Ucrânia, do terror do Hamas e da guerra na faixa de Gaza no Oriente Médio, predominam os pontos em comum com a Alemanha e com a social-democracia. Desde 2008, existe uma parceria estratégica entre Brasil e Alemanha. Por vários motivos, porém, essa parceria ainda não avançou conforme pretendido, e com certeza os quatro anos de governo de extrema direita de Jair Bolsonaro contribuíram para isso. Foram quatro anos em que o Brasil não se mostrou um parceiro confiável, um período em que a democracia, a proteção do meio ambiente e a cooperação multilateral foram enfraquecidos.
spd e pt avançando juntos
Essa cooperação voltou a ser promovida ativamente pelo governo alemão liderado pelos social-democratas e pelo governo brasileiro liderado pelo pt. Nas consultas governamentais realizadas no final de 2023, foram firmados acordos concretos entre Brasil e Alemanha nesse sentido. E isso é bom. Porém, é fundamental que também haja cooperação em outros níveis. Em junho de 2023, o spd e o pt assinaram um acordo de parceria no qual nos comprometemos a cooperar mais estreitamente em importantes campos temáticos, tais como democracia, transformação socioecológica, multilateralismo, paz e segurança. Essa troca mais intensiva, agora também no âmbito dos partidos, pode contribuir para o fortalecimento das relações entre os dois principais países na América Latina e na Europa. Em ambas as regiões, sentimos como os inimigos da democracia tentam destruir tudo o que foi construído ao longo de décadas e fazem isso de forma conectada e coordenada no plano internacional. Por demasiado tempo negligenciamos nosso intercâmbio. Em um mundo em transformação com centros de poder móveis e por vezes rivais, precisamos de parcerias resilientes e baseadas na confiança. Além de canais de comunicação que queremos reforçar ainda mais, inclusive contra forças revisionistas. Tudo em prol de um mundo mais justo e inclusivo.
Estamos nos empenhando para que as reformas necessárias avancem. Chegará o momento em que a janela de oportunidade para promover as reformas se abrirá. Algumas questões poderão ser solucionadas mais rapidamente, outras demandarão mais tempo. Mesmo que às vezes tenhamos posições diferentes em relação a conflitos e crises, contamos com interesses e valores centrais que nos unem. E a base é uma política Norte-Sul que nós, da social-democracia alemã, queremos moldar com nossos parceiros nos próximos anos.