Tema central
NUSO Nº Outubro 2022

A nova nova esquerda

Os governos progressistas e de esquerda parecem estar definindo novamente a coloração ideológica da região, mas em um cenário diferente do ciclo de esquerda dos anos 2000. O sucesso da «nova nova esquerda» vai depender, dentre outros aspectos, da capacidade de coordenação entre as diferentes tribos e da possibilidade de aproveitar a oportunidade geopolítica aberta pela disputa entre a China e os Estados Unidos.

A nova nova esquerda

Como em outros lugares do mundo, a esquerda latino-americana, até aquele momento limitada a propostas mais ou menos abstratas de círculos pequenos de intelectuais e artistas, adquiriu um impulso formidável a partir de 1917, quando os bolcheviques derrotaram as tropas czaristas e instauraram o regime revolucionário na Rússia. Sua consequência mais tangível foi o surgimento de um movimento revolucionário propriamente latino-americano, que se manteria vigente com altos e baixos durante sete décadas, mas não seria possível compreender outros acontecimentos menos diretos (aparentemente) conectados sem considerar a influência do triunfo bolchevique, desde a Constituição Mexicana de 1917 até a Reforma Universitária argentina de 1918 ou a Coluna Prestes ocorrida no Brasil em 1925. O debate intelectual latino-americano e obviamente a arte – do romantismo de Alejo Carpentier ao realismo social de Jorge Amado – se envolveram pelo clima revolucionário da primeira metade do século xx.No entanto, em termos de política concreta, de luta e conquista do poder, a primeira onda da esquerda latino-americana só ocorreu na década de 1960. Sem discutir o caráter esquerdista ou não dos populismos do século xx, pode-se afirmar que somente após o triunfo da Revolução Cubana de 1959, uma revolução estritamente latino-americana, a esquerda regional adquiriria impulso ascendente e fama universal. Eric Hobsbawm resumiu seu atrativo: «A Revolução Cubana era tudo: romance, heroísmo nas montanhas, ex-líderes com a desprendida generosidade de sua juventude – os mais velhos mal tinham passado dos 30 –, um povo exultante, num paraíso turístico tropical, pulsando com os ritmos da rumba»1.

Tendo Cuba como ímã, os ensaios revolucionários se multiplicaram pela América Latina. Se por um lado é verdade que o foquismo de Ernesto «Che» Guevara fracassou em todos os lugares onde foi tentado, com a morte do guerrilheiro argentino pelas mãos de um desconhecido sargento boliviano como símbolo trágico, também é verdade que a onda revolucionária cobriria praticamente toda a região, com movimentos mais ampliados nos países de população rural onde o componente agrário da insurgência se imporia sobre o urbano. É sabido que as guerrilhas urbanas são mais fáceis de organizar, na medida em que o anonimato da cidade não exige o apoio da população local para que prosperem (basta contar com organização e recursos) e permitem também golpes espetaculares de propaganda, mas muitas vezes, e por esses mesmos motivos, elas morrem rápido. As guerrilhas de base rural tendem a ser mais duradouras e efetivas (inclusive se sua condução fica a cargo de jovens urbanos de classe média, como é comum acontecer), conforme mostra a experiência das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (farc) e das guerrilhas centro-americanas.A discussão político-teórica das esquerdas das décadas de 1960 e 1970 se organizava em torno da tensão reforma-revolução entre aqueles que defendiam caminhos graduais e eleitorais, que incluíam a negociação de compromisso com as forças burguesas e os populismos, e os que propunham a mudança total pela via armada. O paradoxo é que o farol desse primeiro grande impulso da esquerda latino-americana foi Cuba, mas seu modelo de tomada de poder não foi replicado com sucesso por nenhum outro movimento guerrilheiro da região. Na verdade, a outra experiência claramente identificada com a esquerda que chegou ao poder naqueles anos o fez por um caminho completamente diferente: o socialismo democrático de Salvador Allende se efetivou por meio de eleições democráticas (embora tenha seguido o caminho insurrecional, o sandinismo nicaraguense também era muito diferente do modelo cubano por contar com uma ampla frente policlassista que incluía um setor católico e uma importante facção burguesa). Ao final, quem acabou de resolver a discussão allendismo-castrismo foi Augusto Pinochet. Designado por Allende para comandar o Exército na confiança de que se manteria leal, Pinochet demonstrou que a última solução de compromisso tentada pelo presidente tinha fracassado. Depois de horas resistindo em La Moneda ao lado de algumas pessoas leais, o suicídio de Allende com um ak-47 presenteado justamente por Fidel Castro encerrou o último paradoxo da primeira onda da esquerda latino-americana.

A guinada à esquerda dos anos 2000

A nova onda da esquerda se inicia com a vitória de Hugo Chávez em 1999 e tem continuidade com as conquistas eleitorais de Luiz Inácio Lula da Silva, Néstor Kirchner, Evo Morales, Tabaré Vázquez, Rafael Correa e Fernando Lugo. E poderíamos acrescentar a essa lista os governos de centro-esquerda no Chile.

A condição que possibilitou sua ocorrência foi a queda do Muro de Berlim, isto é, o desaparecimento da União Soviética como adversário geopolítico dos Estados Unidos. Mas foi preciso antes resolver outro debate dentro do campo da esquerda. Assim como o debate reforma-revolução dos anos 1960 e 1970, esse também foi solucionado pela dura via dos fatos. Tudo começou em 1º de janeiro de 1994, quando o Exército Zapatista de Libertação Nacional (ezln) tentou tomar sete sedes municipais de Chiapas e emitiu sua famosa Declaração da Selva Lacandona, na qual declarava guerra ao Estado mexicano. Com sua fala suave de professor universitário, balaclava preta e fones de ouvido repousando no pescoço, o subcomandante Marcos soube combinar reivindicações indígenas centenárias com uma série de gestos simbólicos estudados (o levante ocorreu no mesmo dia em que entrava em vigor o tratado de livre comércio com os eua) e um talento literário capaz de articular em um só discurso fábulas camponesas, imagens que remetiam a um primitivismo idealizado e sutis ironias contra a sociedade de consumo, a repressão estatal e o capitalismo. No calor do zapatismo, foram surgindo iniciativas como a Associação pela Tributação das Transações Financeiras para Ajuda aos Cidadãos (attac), que propôs um imposto sobre as transações financeiras globais; o Fórum Social Mundial, um encontro de partidos políticos e movimentos sociais criado em contraste com o Fórum Econômico Mundial de Davos; e uma série de novas abordagens teóricas, entre as quais se destacavam os livros de Michael Hardt e Antonio Negri, e os best-sellers antiglobalização de Naomi Klein2 (cabe notar que muitas dessas reações foram originadas em países do Primeiro Mundo, assim como a trilha sonora daqueles anos, do artista franco-espanhol Manu Chao).

Mas o zapatismo não oferecia um caminho a percorrer, muito menos um programa. Ele funcionava apenas como uma vanguarda cultural que encobria sua ausência absoluta de objetivos com as frases de Marcos, de uma ressonância romântica comovedora, mas totalmente inúteis em termos políticos. Em oposição à proposta zapatista de «mudar o mundo sem tomar o poder», a esquerda realmente existente percorreu o caminho mais concreto das eleições. Em alguns casos, ela chegou ao governo após anos de paciente construção partidária e territorial (o Partido dos Trabalhadores brasileiro, a Frente Ampla uruguaia, o socialismo chileno e o Movimento para o Socialismo boliviano); em outros, foi direto ao governo como um relâmpago inesperado (Hugo Chávez, Rafael Correa e, em parte, Néstor Kirchner); e alguns desses movimentos e líderes (especialmente Evo Morales) combinaram a ação direta nas ruas com a disputa eleitoral clássica.

Em todos os casos, a «nova esquerda», que em seu apogeu chegou a governar todos os países sul-americanos menos a Colômbia e o Peru, priorizou o acesso ao poder mais que as discussões abstratas. Com isso, foi implementada uma série de políticas que lhe permitiram combinar três elementos, em um contexto certamente favorável graças aos preços ascendentes das matérias-primas: sustentabilidade macroeconômica (exceto na Venezuela e parcialmente na Argentina, a gestão da macroeconomia foi sóbria); amplas políticas de transferência de renda que permitiram impulsos formidáveis de inclusão (sobretudo nas regiões mais desfavorecidas, como o altiplano boliviano e o Nordeste brasileiro); e uma continuidade político-institucional que possibilitou longos ciclos de reformas. Mais prático que teórico, o debate que dividiu os diversos integrantes da família da esquerda abordava qual o melhor caminho para avançar nas transformações propostas: empreender uma reforma constitucional que «reiniciasse» o país institucionalmente para começar de um «ano zero», como fizeram Chávez, Morales e Correa, ou assegurar uma maior continuidade, opção adotada por Lula da Silva, Kirchner e Tabaré Vázquez? Diferentemente do debate da década de 1960, essa discussão – resumida na dicotomia chavismo/lulismo – não fazia alusão à profundidade das reformas (é inquestionável que Lula da Silva e Kirchner foram concretamente menos reformistas que Correa e Evo), mas sim à melhor forma de colocá-las em prática.

Enquanto a esquerda real discutia nos fatos sua tática e avançava, o zapatismo se desgastava em uma série de iniciativas que geravam um enorme entusiasmo inicial, mas não davam nenhum resultado concreto e terminavam em uma desilusão desmoralizante, estabelecendo ao mesmo tempo uma relação de absurda concorrência com a esquerda real mexicana liderada por Andrés Manuel López Obrador que incluiu o boicote às eleições de 2006, nas quais o candidato do Partido da Revolução Democrática (prd) ficou a menos de um ponto percentual da direita. Com López Obrador na presidência, o zapatismo administra hoje uma série de pequenos municípios do estado de Chiapas por meio de suas juntas de bom governo rodeado por um exército que o tolera e continua fascinando os mochileiros europeus.

Que esquerda está voltando?

O final da onda de governos de esquerda, a mais longa e brilhante da esquerda latino-americana, é conhecido: entre a mudança das condições internacionais, o desgaste natural após mais de uma década de exercício ininterrupto do poder, as dificuldades para processar a sucessão e o fortalecimento do bloco direitista, a esquerda foi retirada do governo mediante eleições limpas (Argentina, Uruguai e Chile) ou por golpes ou semigolpes de Estado (Paraguai, Brasil e Bolívia); e onde pôde se manter no poder, o fez à custa de uma guinada autoritária (Venezuela e Nicarágua). O fracasso dos experimentos de direita, que não conseguiram consolidar um ciclo político de longa duração como o neoliberalismo dos anos 1990, criou a oportunidade para um retorno da esquerda. Mas que esquerda está voltando?

Assim como na etapa anterior, a família da esquerda está longe de ser homogênea. Há nesta nova época três conjuntos diferentes que não constituem categorias puras, mas sim grupos que podemos construir sobre a base de duas ou três instituições.

Em primeiro lugar, a esquerda autoritária da Venezuela e da Nicarágua. Embora originalmente Hugo Chávez e Daniel Ortega tenham sido eleitos de maneira democrática e, portanto, correspondia incluí-los na ampla família da esquerda democrática, ambos os regimes foram se tornando sistemas cada vez mais autoritários e governam hoje os únicos países latino-americanos com presos políticos e dirigentes opositores presos, que realizam eleições sem verificação internacional e onde, decididamente, vige a reeleição por tempo indeterminado (o limite temporal para o exercício do poder por uma mesma pessoa é uma condição básica das democracias presidencialistas).O segundo grupo – o mais novo e, em algum sentido, interessante – é o da esquerda que governa em países até então não governados pela esquerda: México, Honduras, Peru e, a se confirmar, Colômbia. Embora com enormes diferenças entre si, esses são todos países próximos aos eua, seja por razões migratórias (México e Honduras), comerciais (todos têm vigentes tratados de livre comércio com Washington) ou de segurança (a Colômbia e o Peru são os dois principais produtores mundiais de cocaína e uma fonte permanente de preocupação para o país norte-americano).

Tanto o triunfo de Pedro Castillo como a ascensão de Gustavo Petro (de certa forma, também a vitória de Xiomara Castro em Honduras) conseguiram superar a rejeição produzida pelas alternativas de esquerda, considerando os antecedentes de sequestros e assassinatos das guerrilhas que operaram nos dois países durante anos. Castillo precisou superar o forte anticomunismo de uma parte considerável da sociedade peruana que, juntamente com fatores estruturais (a orientação liberalizante da economia e o vigor histórico da direita), explica por que o país ficou de fora da onda progressista anterior (e o próprio Petro, que, para além do resultado eleitoral, colocou a esquerda colombiana em seu melhor resultado histórico). Nesses casos, as vitórias são mais apertadas, as margens de liberdade são mais estreitas, e os obstáculos são maiores. Suas conquistas eleitorais são muito recentes para arriscar um prognóstico. Não é o caso de López Obrador, que já superou a metade de seu mandato com elevados índices de aprovação e passou recentemente com sucesso pelo referendo revogatório. Mais que um modelo a seguir (por sua localização geopolítica, dimensão e história, a realidade do México é muito diferente das realidades do Peru, Honduras e Colômbia), a experiência mexicana serve para demonstrar que um presidente progressista pode se manter no poder neste «segundo tempo» da guinada à esquerda, garantindo a estabilidade macroeconômica e sustentando ao mesmo tempo o vínculo com os setores populares.

O terceiro grupo é o da esquerda que retorna, composto de Alberto Fernández na Argentina, Luis Arce na Bolívia, Gabriel Boric no Chile e, confirmadas as previsões, Lula da Silva no Brasil. Em primeiro lugar, a chegada desses partidos ou líderes ao poder é resultado do fracasso das «direitas breves»: diferentemente do que ocorreu com o longo ciclo do neoliberalismo, os governos conservadores e liberais não conseguiram sua continuidade pela reeleição ou por um sucessor aceitável, como ocorreu com Mauricio Macri, Sebastián Piñera e o governo de facto da Bolívia (e pode vir a ocorrer com Jair Bolsonaro). Também de modo diferente do neoliberalismo da década de 1990, essa guinada à direita não chegou com um programa econômico claro, para além das vagas promessas de acabar com o populismo, e sofreu certa «impotência reformista» que lhe impediu de criar uma base social suficientemente ampla para permanecer no poder.A lembrança majoritariamente positiva dos anos 2000-2010 também abriu o caminho para o retorno. Com isso, a esquerda demonstrou que sua passagem pelo poder não foi simplesmente uma sucessão de casualidades favorecidas pelo preço das commodities, mas a expressão de uma representação social com bases sólidas. Que forma adquire esse retorno? A de uma maior moderação e uma vontade de mudança atenuada, em primeiro lugar, por maior volatilidade nos preços das matérias-primas e problemas fiscais, o que obriga a administrar em um contexto de restrições econômicas impensáveis na etapa anterior. Trata-se de uma esquerda da escassez mais que da abundância. E, somada a tudo isso, a correlação de forças também mudou. Diferentemente da etapa anterior, com o bloco conservador destruído e desorientado, a oposição é liderada desta vez por uma direita que, ainda que derrotada eleitoralmente, sabe ser capaz de grandes vitórias e que, em muitos casos, radicalizou-se até extremos de fascismo. A terceira esquerda é uma esquerda modesta: o centrismo de Alberto Fernández e a moderação de Luis Arce se explicam tanto pelas circunstâncias já descritas como pelo fato de ambos terem chegado ao poder como parte de uma aliança com seus chefes políticos que, por razões eleitorais ou judiciais, não puderam se candidatar, mas continuam muito presentes na vida pública de seus respectivos países. A decisão de que o ex-governador conservador de São Paulo Geraldo Alckmin acompanhe Lula como candidato a vice-presidente sugere que o líder do pt também se movimenta em direção ao centro.Nessa tentativa de divisão entre diferentes grupos, Boric ocupa um lugar particular. Por um lado, seria incorreto incluí-lo no subtipo de países onde a esquerda é novidade. Desde o final da ditadura pinochetista, o progressismo governou o Chile – em aliança com a Democracia Cristã – em três oportunidades: durante a presidência de Ricardo Lagos e os dois mandatos de Michelle Bachelet. Entretanto, ele não foi capaz de estabelecer rupturas claras com o modelo econômico, o marco institucional e o formato de sociedade construído a sangue e fogo por Pinochet. Por isso, a etapa de mobilizações sociais que incluiu momentos quase insurrecionais e da qual surgiu o próprio Boric situa o novo governo em um lugar diferente aos de Alberto Fernández, Arce e a um eventual novo governo de Lula da Silva. Boric assumiu com um mandato de mudança mais semelhante ao de Castillo ou a um eventual de Petro (ou de Evo Morales em 2006). De fato, o Chile está passando por um processo constituinte ao estilo dos concretizados há uma década em vários países da região. A diferença é que, em contraste com as reformas constitucionais da Venezuela, da Bolívia e do Equador – propostas originais de seus líderes, que trataram de escrevê-las, diríamos, quase à mão e que as utilizaram como uma forma de ratificar sua legitimidade popular –, a Constituinte chilena antecede Boric, sem mencionar que ele não a conduz. A complexidade do desafio chileno exige um delicadíssimo mix de mudança e continuidade cujo êxito vai depender da habilidade anfíbia de Boric.

O risco da melancolia

Embora considerando que cada país é um mundo, a América Latina se movimenta em ondas: nas últimas três décadas, a região passou da hegemonia neoliberal para a guinada à esquerda, e desta para um posterior breve domínio da direita e, então, para um incipiente porém já perfeitamente distinguível retorno da esquerda.A explicação dessa regularidade é geopolítica, tendo os eua como principal referência. A radicalização da esquerda latino-americana durante as décadas de 1960 e 1970 se inscrevia nas coordenadas de concorrência político-ideológica da Guerra Fria, com o mundo dividido em esferas de influência e a conflagração regular de conflitos por delegação em suas periferias: Sudeste Asiático (Vietnã e Coreia), Ásia Central (Afeganistão) e América Central e Caribe. Se o contexto daquela ascensão era a Guerra Fria, o da guinada à esquerda dos anos 2000 foi o mundo unipolar de pura hegemonia estadunidense criado após a queda do Muro de Berlim. Em La nueva izquierda, o primeiro livro que considerou os progressismos da primeira década do século xxi como parte de uma mesma família, escrevi que o colapso da União Soviética – o desaparecimento de Moscou como Meca – cancelou a possibilidade de as esquerdas latino-americanas serem atribuídas a um bloco socialista que já não existia e lhes conferiu uma liberdade geopolítica até então impensável3. Com os eua concentrados no novo inimigo (o terrorismo substituiu o comunismo) e, sobretudo a partir de 2001, concentrado no Oriente Médio, os países latino-americanos, particularmente os da América do Sul, puderam eleger líderes e partidos de esquerda que 10 ou 20 anos antes teriam sido bloqueados por Washington por meio de operações da Agência Central de Inteligência (cia, pelo acrônimo em inglês) ou simples golpes de Estado.O contexto atual do retorno (ou da chegada «tardia») dos progressistas ao governo é a concorrência bipolar entre os eua e a China. Em contraste com a Guerra Fria, que prescrevia aos países a adesão a um dos dois blocos de maneira unívoca, como se exigisse exclusividade, a disputa atual ocorre de modo mais ambíguo. Em primeiro lugar, porque os dois adversários estão indissoluvelmente unidos: as empresas estadunidenses não sobreviveriam um dia sem a mão de obra barata chinesa, e as empresas chinesas quebrariam caso o mercado norte-americano se fechasse a elas. Em segundo lugar, a China não exige conversão ideológica à fé maoísta (fé que ela mesma mal pratica) antes de conceder um swap, fornecer um crédito ou construir uma represa, o que não quer dizer que nada disso seja grátis. Como sustentam Esteban Actis e Nicolás Creus4, o vínculo combina rivalidade com interdependência em uma concorrência multidimensional: se manifesta ruidosamente na arena comercial, mas possui também um lado militar e esconde em última análise um confronto tecnológico.

É esse conflito equívoco que cria as condições para a nova ascensão da esquerda. Mais que um pêndulo, a figura clássica dos estudos de relações internacionais da Guerra Fria, estaríamos diante da construção de agendas paralelas com os dois gigantes: a clássica «agenda ocidental» com os eua (cooperação em matéria de luta contra o narcotráfico e o terrorismo) e uma agenda de investimentos, infraestrutura e comércio com a China, hoje o primeiro ou segundo sócio econômico de quase todos os países da América Latina. Juan Tokatlian definiu a estratégia latino-americana como uma «diplomacia da equidistância»5, que os internacionalistas chilenos Carlos Ominami, Jorge Heine e Carlos Fortín buscam traduzir em uma doutrina, chamada por eles de «não alinhamento ativo»6.

Para concluir, após um período breve e turbulento no qual as forças liberais e conservadoras não conseguiram construir uma hegemonia ao estilo do neoliberalismo da década de 1990, a esquerda protagoniza novamente o ciclo político latino-americano. O contexto global mudou, e as condições são mais hostis que na etapa anterior: no rastro de uma pandemia devastadora, com uma direita à espreita e o risco de oferecer um programa reparatório que não inove em relação à etapa anterior caso caia na tentação de uma esquerda melancólica. Neste difícil contexto, o sucesso da «nova nova esquerda» vai depender, dentre outros aspectos, da capacidade de coordenação entre as diferentes tribos, da habilidade para oferecer um programa de reforma socioeconômica que contemple as novas sensibilidades relacionadas com a diversidade, o feminismo e o cuidado com o meio ambiente, e da possibilidade de aproveitar a oportunidade geopolítica aberta pela disputa entre a China e os eua.

  • 1.

    E. Hobsbawm: Historia del siglo XX, Crítica, Barcelona, 2005, p. 439. [Há uma edição em português: Era dos extremos. O breve século XX: 1914-1991, Companhia das Letras, São Paulo, 1995].

  • 2.

    M. Hardt e A. Negri: Imperio, Paidós, Barcelona, 2000; N. Klein: No logo, Paidós, Barcelona, 2000. [Há edições em português: Império, Record, Rio de Janeiro-São Paulo, 2001; Sem logo: A tirania das marcas em um planeta vendido, Record, Rio de Janeiro, 2002].

  • 3.

    J. Natanson: La nueva izquierda. Triunfos y derrotas de los gobiernos de Argentina, Brasil, Bolivia, Venezuela, Chile, Uruguay y Ecuador, Debate, Buenos Aires, 2012.

  • 4.

    Leandro Darío: «Esteban Actis y Nicolás Creus: ‘La relación entre Estados Unidos y China es el termómetro del mundo’» em Perfil, 1/1/2021.

  • 5.

    J. Tokatlian: «La diplomacia de equidistancia, una propuesta estratégica» em Clarín, 10/2/2021.

  • 6.

    C. Fortín, J. Heine e C. Ominami (coords.): El no alineamiento activo y América Latina: una doctrina para el nuevo siglo, Catalonia, Santiago, 2021.

Este artículo es copia fiel del publicado en la revista Nueva Sociedad , Outubro 2022, ISSN: 0251-3552


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