Tema central

O terceiro mandato de Lula e o retorno da África estratégica


Nueva Sociedad Novembro - Dezembro 2024

Ocontinente africano é tratado pelo governo brasileiro como um pilar fundamental para a inserção internacional do Brasil. Em seu terceiro mandato, Lula reorienta a política externa brasileira para o Sul global, estabelecendo uma postura contundente. Mas o retorno da agenda estratégica para a África apresenta desafios. Após seis anos de afastamento, os brasileiros encontram um cenário distinto de competição entre potências e países emergentes interessados nos recursos naturais e no apoio político dos africanos.

<p>O terceiro mandato de Lula e o retorno da África estratégica</p>

Ao longo de seus dois primeiros mandatos (2003-2010), o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, guiado por seu chanceler Celso Amorim, reorientou a política externa brasileira. Em um contexto de articulações políticas do Sul global, o país aprofundou as suas relações com países da América Latina e elaborou uma nova agenda para os países do continente africano. Em momentos específicos, os brasileiros se aproximaram das nações africanas, como na década de 1960, período em que se iniciara o processo de descolonização. Os recursos naturais despertaram o interesse do Brasil no continente, que passou a criar estratégias nas áreas comercial, cultural e de segurança1. Na década de 1990, depois de um período da crise de endividamento dos países da periferia global, a tendência do Brasil foi de distanciamento, relegando os países africanos a agendas secundárias. Portanto, uma reaproximação seria feita a partir de 2003, momento de mudanças econômicas para os países africanos.

Dessa forma, o governo do presidente Lula, projetando uma atuação mais ativa na sua política externa, iniciou uma reorganização institucional e a mobilização de atores interessados em um conjunto de políticas que enquadrassem o continente africano como um espaço estratégico. A atuação no continente envolveu companhias brasileiras como a Petrobras – que já tinha a sua própria agenda para o continente – e a Vale, além de construtoras com projetos de desenvolvimento de infraestrutura em países como Angola. A chegada do Partido dos Trabalhadores (pt) ao poder também trouxe o ativismo do movimento negro brasileiro, interessado em projetos culturais e no impulso de empreendimentos negros na África. Além disso, o país reelaborava um novo discurso identitário para abordar os assuntos relacionados ao continente, deixando de lado a ideia do Brasil enquanto uma democracia racial e reforçando a imagem do país como aquele que reconhecia o caráter sistemático do racismo e constituía programas de políticas afirmativas para os afro-brasileiros2. Logo no início, o governo aumentou a sua representação nos países africanos, reabrindo embaixadas desativadas em governos anteriores, dinamizando desde o princípio relações com países que tinham interesse na presença brasileira. Na estrutura do Ministério das Relações Exteriores, os assuntos africanos ganharam um departamento exclusivo, antes compartilhado com o Oriente Médio. A política africana, antes quase restrita aos países de língua portuguesa, ganhou uma maior amplitude pensando na ascensão da liderança sul-africana e no poder econômico dos nigerianos. O Brasil também aprofundou as iniciativas de intercâmbio acadêmico com a criação da Universidade de Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab) e a inauguração do campus em 2011. Por outro lado, a África passava por mudanças profundas desde a década de 19903. O regime do apartheid na África do Sul ruiu e, sob a liderança de Nelson Mandela, o país constituiu uma democracia multirracial e emergiu como uma liderança no continente. Durante o governo de Thabo Mbeki, propôs uma agenda para mudanças nas relações entre os africanos através da Nova Parceria para o Desenvolvimento da África (nepad, pela sigla em inglês)4. Diante de um contexto de expansão da economia global, o arranjo institucional da Organização da Unidade Africana (oua), fundada em 1963, revelava as suas limitações para promover as interações interafricanas e a relação do continente com as principais forças econômicas. Nesse sentido, a iniciativa proposta pela nação sul-africana enfatizava políticas de atração de investimentos, parcerias comerciais a partir de programas de promoção da boa governança, criando mecanismos para garantir a estabilidade política pelo continente. Entre disputas entre a Líbia, a África do Sul e a Nigéria, a União Africana (ua) foi fundada em 2000 para substituir a oua, garantindo que as transformações implementadas no continente pudessem ter uma estrutura institucional adequada.

Portanto, o Brasil foi desenhando o seu plano de ação para a África no momento em que os países recebiam cada vez mais investimentos diretos, com um aporte maior na extração de petróleo, gás e minérios. De modo geral, os africanos experimentavam uma era de alta das commodities, fazendo com que o continente deixasse de ser tratado apenas como um espaço de precariedade e de conflitos para se transformar em um espaço estratégico para forças médias e hegemônicas da economia global. Iniciativas brasileiras que já estavam em andamento, como as cooperações técnicas na área da segurança, foram reordenadas em uma agenda de aproximação com o continente que previa investimentos em infraestrutura, transferência de tecnologia e aumento das relações comerciais, fortalecendo alianças e, consequentemente, o apoio de países africanos à projeção brasileira como liderança do Sul global. Assim, a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (cplp) e as Zonas de Paz e Cooperação do Atlântico Sul foram integradas a um conjunto de ações do governo de Lula para reorientar agenda do Brasil, que ampliou o número de parceiros no continente africano.

A partir da experiência africana, o Brasil fortaleceu a sua rede de relações com países da periferia do sistema, almejando o protagonismo no debate financeiro do g-20 e o ingresso como membro permanente do Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (onu). A projeção brasileira na África, para além de reorganizar os atores da política externa brasileira, contou com uma diplomacia presidencial intensa, que promoveu a visita de Lula a cerca de 29 países. No final de seus dois mandatos, as relações comerciais com os países africanos tiveram um salto de seis bilhões de dólares estadunidenses em 2003 para 15 bilhões em 2010. No entanto, a abordagem agressiva do país não se reproduziu no governo posterior, também liderado por uma figura do pt. A presidente Dilma Rousseff conseguiu manter o nível das relações comerciais com os africanos. Entretanto, em seu segundo mandato, num momento em que a economia começava a sentir os efeitos da crise da economia global, as exportações e as importações passaram por uma queda vertiginosa. Rousseff, por conta de seu perfil, também não demonstrou o mesmo engajamento para participar ativamente de ações diplomáticas no Sul global5. A presidente também foi obrigada a encarar uma forte oposição e uma crise política que indiretamente resultou na diminuição da representação brasileira no continente.

O presidente Michel Temer, que assumiu o governo brasileiro após o impeachment de Rousseff, em 2016, imprimiu mudanças profundas na agenda brasileira para a África. A base apoio de Temer, que se caracterizara pela agenda neoliberal, entendia que as ações brasileiras no Sul global, principalmente no continente, apresentavam um forte componente ideológico. Aquele era o momento de reorientar a política externa brasileira de modo a retomar uma postura pragmática. Ao assumir o Ministério das Relações Exteriores, José Serra demonstrou a intenção de aprofundar as relações comerciais, sem levar em consideração iniciativas culturais ou alguns programas de cooperação técnica. A administração de Temer, em seu início, estabeleceu relações comerciais abaixo da média de anos anteriores, mas conseguiu reverter a tendência de queda, chegando a um volume de 14 bilhões de dólares em 2018. No entanto, a ascensão do presidente por meio do processo de impedimento de sua antecessora – tratado por setores progressistas como um golpe parlamentar – gerou desconfiança de lideranças importantes do Sul global. A sua participação na cúpula do brics (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) em 2018 foi apagada e sua falta de habilidade política na diplomacia presidencial acabou determinando o arrefecimento das interações com países latino-americanos e atores importantes das relações Sul-Sul.

Desse modo, a noção de África estratégica desapareceu do horizonte da diplomacia brasileira. Quando Jair Messias Bolsonaro assumiu a Presidência, o Brasil aprofundou o distanciamento com o Sul global, assumindo uma profunda conexão ideológica com os Estados Unidos. O ministro Ernesto Araújo, antes de ser indicado ao Ministério das Relações Exteriores, já havia publicado um artigo em que apontava os males de um globalismo que ameaçava os valores ocidentais6. Em discursos públicos, tanto Bolsonaro quanto o candidato a vice, Hamilton Mourão, já demonstravam indiferença e, até mesmo, certa rejeição a qualquer engajamento com os países africanos. Lideranças africanas também manifestaram a preocupação com as mensagens emitidas pela chapa presidencial eleita nas eleições de 2018. O governo de Bolsonaro não somente assumiu a intenção de participar de uma rede de extrema direita que se formava na esfera internacional galvanizada pelo presidente estadunidense Donald Trump, como também desarticulou a estrutura da política externa brasileira voltada para as relações Sul-Sul7. Enquanto o presidente projetava um cenário global de guerras culturais, os operadores da política externa procuraram manter precariamente o nível das relações comerciais com os países africanos em meio a um movimento de extinção de embaixadas no continente e no Caribe.

Em 2023, quando Lula retornava à Presidência para o terceiro mandato, a expectativa era de que uma agenda estratégica para a África fosse retomada. No entanto, os desafios no atual momento são muito maiores do que 20 anos atrás. As duas primeiras décadas do século foram marcadas por uma espécie de corrida pelo continente africano, no qual países emergentes do sistema internacional construíram agendas para competir por mercados e alianças políticas no continente. Para além da presença marcante dos chineses com investimentos diretos e da agenda de segurança dos estadunidenses, países como Irã, Turquia, Japão e Índia também criavam estratégias para intensificar a influência no continente8. Os turcos, por exemplo, têm se destacado com o avanço de construtoras por meio do financiamento de bancos de desenvolvimento do país, que impulsionou outras ações e contribuiu para o crescimento do comércio de cerca de cinco bilhões de dólares em 2003 para 20 bilhões em 2021. Já o Irã tem procurado compensar o isolamento causado por sanções com a ampliação de alianças no Sul global com os países africanos. A venda de drones militares e a transferência tecnológica são alguns dos pilares fundamentais para a política externa no continente. Os indianos, em busca de recursos naturais para garantir a segurança energética, exportam petróleo refinado e produtos da indústria farmacêutica. O cenário, portanto, apresenta uma complexidade maior para um retorno estratégico dos brasileiros. O próprio processo de integração do continente, por meio da ua, avançou para um novo estágio. Em 2021, os africanos deram início à Zona de Comércio Continental Livre Africana (afcta), projeto idealizado para impulsionar economicamente a Agenda 2063 e que previa também a integração por meio da infraestrutura de transportes, energia e telecomunicações. Diante do diagnóstico da falta de dinamismo das relações comerciais entre os próprios africanos, a afcta cumpriria o objetivo de diminuir a dependência africana das economias externas através da redução gradual das barreiras tarifárias e da padronização de regulamentações, fomentando a diversificação econômica, sobretudo as atividades industriais9. A zona de livre comércio estaria incumbida de diminuir os efeitos das flutuações dos preços das commodities, já que na década anterior os países africanos não aproveitaram o período de altas de preços para tornar mais complexas suas economias. O discurso de posse do ministro das Relações Exteriores, Mauro Vieira, em 2 de janeiro de 2023, foi marcado pela ênfase na retomada de uma postura altiva do Brasil nos assuntos internacionais. A expectativa era resgatar o protagonismo em debates sobre a crise climática, a segurança alimentar e o fortalecimento das organizações internacionais. Assim, a reaproximação com os países africanos começa a ser conduzida em paralelo à tentativa de restaurar organizações e fóruns desarticulados e desidratados durante o governo Bolsonaro. Na América Latina, o Brasil reassumiu a sua liderança com negociações na Comunidade dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac) e na União de Nações Sul-Americanas (Unasul), além da reorientação política no Mercado Comum do Sul (Mercosul). Entre discursos do presidente e do chanceler, ficava claro o objetivo de desconstrução da imagem de pária internacional que havia se constituído ao longo da agenda extremista do governo Bolsonaro.

No programa de governo de Lula, desenvolvido para as eleições de 2022, a importância do continente africano foi mencionada, mas sem detalhar o modo como as ações seriam desenvolvidas. De maneira vaga, afirmava a importância de retomada dos diálogos Sul-Sul e do lugar estratégico do continente africano para a criação de agendas que fomentassem o crescimento econômico das economias mais pobres de forma a ampliar a representação dos países periféricos nos organismos multilaterais. Ainda assim, após a confirmação da vitória na eleição presidencial, lideranças africanas manifestaram o entusiasmo com o resultado, principalmente os representantes da comunidade de Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (palop), que reforçaram a demanda de aprofundamento das relações bilaterais com o Brasil. Em dezembro de 2022, José Maria Neves, presidente do arquipélago de Cabo Verde, em entrevista, mencionou capacidade do país de influenciar reformas nas Nações Unidas e contribuir com o desenvolvimento de energias renováveis na África10.

De fato, o primeiro evento oficial em que o governo abordou a relação com os países africanos foi a Semana de África de 2023, realizada anualmente pelo Itamaraty. A programação contou com um seminário no qual se realizaram debates sobre cooperação para o desenvolvimento, intercâmbio educacional, equidade de gênero, empreendedorismo, inclusão social, economia criativa, diversidade e desafios internacionais contemporâneos. A partir de diferentes perspectivas manifestadas por representantes diplomáticos e intelectuais, foram discutidos os caminhos para a «retomada» das relações entre o Brasil e o continente africano. Do ponto de vista dos brasileiros, foram destacadas, para além dos laços históricos e culturais entre o país e a África, a mobilização de instituições brasileiras para fomentar o aumento das relações comerciais, como a Agência Brasileira para a Promoção de Exportações e Investimento (Apex), e a intensificação de cooperação técnica, como a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) no desenvolvimento da agricultura dos países africanos através da formação de especialistas e transferência tecnológica. Os africanos destacaram a importância de os brasileiros superarem a imagem do continente associada ao tráfico negreiro e à escravidão. A África deve ser tratada como um espaço economicamente dinâmico e com potencial para oferecer parcerias benéficas para os dois lados.

Já o presidente, especificamente, ressaltou o vigor das economias africanas e a necessidade de os brasileiros atualizarem estratégias para contemplar esse novo contexto de reaproximação com o continente. «A África é uma das regiões que mais crescem no mundo. Sua relevância no comércio global é expressiva», disse Lula ao manifestar o apoio ao ingresso da ua como instituição autônoma no g-20. O presidente reforçou a dimensão da Zona de Livre Comércio Continental Africana como a maior do mundo, com uma população de cerca 1,4 bilhão de pessoas e um pib de 3,4 trilhões de dólares. Segundo os seus dados, o comércio bilateral com os países africanos, em 2022, foi um terço menor que o valor de 2013, quando chegou a um ápice de 30 bilhões de dólares11. O governo, nesse sentido, destacou a prioridade da agenda africana que se construiria a partir do engajamento de distintas pastas do governo, do apoio da academia, dos meios de comunicação e da sociedade civil. Assim, seria essencial a abertura de embaixadas, centros culturais e escritórios de agências de instituições brasileiras para fomentar programas de cooperação técnica.

O retorno de Lula ao continente ocorreu na Cúpula dos brics, que foi realizada na cidade de Joanesburgo na África do Sul. O fórum, que se transformou em um bloco alternativo ao g-7 (grupo dos sete países mais desenvolvidos do mundo), teve como pauta principal a ampliação do número de membros e as reformas de instituições globais como onu, Fundo Monetário Internacional (fmi) e Banco Mundial. Entre os países admitidos ao bloco, estavam o Egito e a Etiópia. A Etiópia, com uma população de cerca de 123 milhões pessoas, passa longe do perfil dos membros originais do brics, com desafios como conflitos internos e a segurança alimentar. No entanto, apesar dos problemas de infraestrutura, apresentou uma média de crescimento de cerca de 10% ao ano e de 7% em 2023. Para os brasileiros, o ingresso dos etíopes no brics pode estimular o aumento do volume de comércio, que atualmente gira em torno 40 milhões de dólares. Já o Egito, apesar de não demonstrar o mesmo nível de crescimento, apresenta-se como um ator estratégico do continente africano, que poderia ter a sua economia incrementada pelo acesso a linhas de crédito do Banco de Desenvolvimento dos brics.

A entrada de dois novos países do continente foi considerada um acontecimento positivo pela grande maioria das nações africanas. O presidente de Zâmbia, Hakainde Hichilema, afirmou que ampliação do bloco seria uma parceria vantajosa para todos os africanos. A interpretação era a de que a presença de países africanos no bloco poderia representar o reconhecimento de um novo papel a ser cumprido pelo continente na economia global. Da perspectiva dos brics, apesar da resistência brasileira à ampliação, esse já é o aprofundamento de um processo que se iniciou com a incorporação da África do Sul. No momento em que ainda formavam o bric – o «s» seria adicionado ao nome para fazer referência à nação sul-africana –, o bloco já se destacava como um dos principais investidores no continente, com cerca de 60 bilhões de dólares investidos entre 2003 e 2009. Quando a África do Sul ingressou, Brasil, China, Rússia e Índia já tinham agendas estratégicas para os países da África. O país africano era considerado uma «porta de entrada» para o continente12.

No mesmo período do encontro dos brics, o presidente visitou Angola, mantendo a tradição de proximidade com os países africanos de língua oficial portuguesa. Os brasileiros, durante os dois primeiros mandatos de Lula, atuaram efetivamente no país africano, com iniciativas do Estado brasileiro e a participação de construtoras no desenvolvimento de infraestrutura. Dessa forma, o presidente reforçou o compromisso com angolanos, rearticulando as pautas bilaterais e multilaterais que envolviam os dois países. Em Luanda, capital angolana, Lula se encontrou com o presidente João Manuel Gonçalves Lourenço e assinou acordos sobre segurança internacional, segurança alimentar, empreendedorismo, educação e mudança climática. Em seu discurso, mencionou a indiferença dos governos anteriores com o continente africano, afirmando que o Brasil «corrigiria os erros» de sua política externa para a África13. Em sua primeira jornada pela África, Lula também participou da 14a Conferência de Chefes de Estado da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (cplp) em São Tomé e Príncipe. O grupo é integrado por Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Guiné Equatorial, Moçambique, São Tomé e Príncipe, Portugal e Timor-Leste. O objetivo original da sua formação era promover a defesa da língua portuguesa e das relações culturais entre os países membros. No entanto, o escopo da organização foi ampliado, contemplando o financiamento de projetos de cooperação em uma variedade de áreas temáticas (educação, saúde, ciência e tecnologia, defesa, agricultura, administração pública, comunicações, justiça, segurança pública, cultura, esporte e comunicação social). À medida em que o Brasil reorganizava sua agenda para o continente africano na primeira década do século xxi, a cplp foi se transformando em um canal de projeção da influência brasileira pelo continente. Dessa forma, a presença do presidente na conferência – em que se aprofundaram os programas de cooperação em segurança alimentar, saúde e ciência e tecnologia – revelava também um aspecto simbólico ao representar o retorno de uma agenda estratégica.

O compromisso do Brasil com a África foi reforçado com uma nova visita de Lula em 2024. A segunda jornada teve passagem justamente pelos países africanos que haviam ingressado no brics. No Egito, o presidente celebrou 100 anos de relação entre brasileiros e egípcios, encaminhando a abertura de mercado para diversos produtos brasileiros, como peixes e derivados, carne de aves, algodão, bananas, gelatina e colágeno. Os países também assinaram acordos bilaterais nas áreas de bioenergia e ciência, tecnologia e inovação. Outra questão importante foi o papel desempenhado pelo Egito na retirada de 115 brasileiros e familiares palestinos da Faixa de Gaza durante o conflito Israel-Hamas através do deslocamento de Rafah até Cairo. Enquanto país na Presidência rotativa do g-20, o Brasil também convidou o Egito para participar da cúpula do fórum em novembro.

Na passagem pela Etiópia em fevereiro de 2024, o interesse estratégico do Brasil no continente em conexão com atuação no Sul global ficou muito mais claro. Além do compromisso específico com etíopes, havia a cúpula da ua. O presidente apoiou a entrada da organização africana como membro efetivo no g-20, que ganharia o mesmo status da União Europeia. Em seu discurso feito para os representantes africanos, Lula destacou a importância da Aliança Global contra a Fome e a Pobreza, que encontrava no continente os parceiros ideais para construção de uma agenda de dimensão global. O objetivo da iniciativa era mobilizar recursos das organizações internacionais e instituições financeiras para efetivar um conjunto de ações para erradicar a fome e a pobreza, reduzindo as desigualdades e promovendo o desenvolvimento sustentável de economias periféricas. O Brasil, de certa forma, procura recuperar a sua reputação de protagonista do Sul global que articula atores internacionais em prol das economias mais vulneráveis. Em meio à emergência de forças fora do bloco ocidental, planeja se distinguir como o país com expertise em políticas públicas de combate à miséria e de desenvolvimento de forças produtivas fora dos grandes centros econômicos.

Outra iniciativa encampada pelos brasileiros para debate da cúpula do g-20 em novembro é a constituição de uma estrutura financeira internacional para viabilizar a taxação dos super-ricos. Um modelo de tributação tem sido desenhado pela equipe do ministro da Fazenda, Fernando Haddad, em colaboração com a vencedora do Prêmio Nobel de Economia Esther Duflo e Gabriel Zucman. A ideia é criar um sistema tributário internacional no qual as grandes corporações teriam uma alíquota de 15%. O plano também cobra cerca de 2% da riqueza total dos bilionários. Em declaração, Haddad afirmou que o projeto de taxação dos super-ricos contempla uma agenda de enfrentamentos de desafios globais como a desigualdade, a fome e as questões climáticas. Assim, diante da reorganização das relações com latino-americanos e africanos, os brasileiros propõem uma agenda eficiente de justiça tributária internacional14.

As dinâmicas do g-20, grupo no qual os países membros coordenam políticas econômicas e financeiras globais, apresentam um cenário propício para a estratégia brasileira de alianças com os países africanos. Os países emergentes manifestam de maneira contundente a disposição para reorganizar o sistema financeiro internacional de forma a estimular o desenvolvimento econômico sustentável nas periferias. O ingresso da ua tem influência na correlação de forças no fórum, intensificando o engajamento em torno de agendas estratégicas para os países do Sul global. A partir de parcerias históricas com africanos nas áreas de cultura, saúde, educação e, principalmente, agricultura, o Brasil pretende revigorar a sua base de apoio para se estabelecer como um protagonista nas principais iniciativas de articulação das redes que envolvem os países do Sul global. Assim, a presença da ua representa a força política dos africanos, mas, sobretudo, o potencial econômico do continente que desperta os interesses de grandes potencias, emergentes e, entre eles, o Brasil.

Contudo, apesar da reconstrução da agenda estratégica africana, o país ainda precisa lidar com a precariedade das representações no continente. O quadro diplomático disponibilizado para os assuntos africanos é insuficiente para as demandas do Brasil e dos países africanos. No corpo da diplomacia brasileira, surgem contradições entre aqueles que atuam nas embaixadas africanas e os responsáveis pela alocação de recursos. Os que estão trabalhando em países africanos relatam dificuldades para a lidar com as estruturas das embaixadas e um processo de esvaziamento, enquanto os responsáveis pela administração da diplomacia afirmam que está ocorrendo apenas uma reorganização das funções dos diplomatas. Cerca de 15 consulados e embaixadas do Brasil têm apenas um diplomata, sendo 11 no continente africano. A situação tende a se agravar porque parte dos diplomatas foi convocada para participar de eventos importantes para a inserção internacional brasileira como a cúpula do g-20, a reunião dos brics e a cop3015.

Conclusão

O continente africano é tratado como um pilar fundamental para a inserção internacional do Brasil. Em seu terceiro mandato como presidente, Lula reorienta a política externa brasileira para o Sul global, rearticulando organizações latino-americanas e estabelecendo uma postura contundente em cúpulas como a do g-20 e dos brics. O retorno da agenda estratégica para a África, entretanto, apresenta desafios para os brasileiros, que, depois de seis anos de afastamento, encontram um cenário distinto de competição entre potências e emergentes interessados nos recursos naturais e no apoio político dos africanos. Por outro lado, a África, apesar de problemas políticos e econômicos de alguns países, tem demonstrado avanços significativos, principalmente no âmbito da ua que ingressou no g-20 e iniciou a operação da área de livre comercio continental. Assim, os países africanos estão inseridos em redes de maior complexidade que exigem dos brasileiros mais do que a mera reprodução da agenda dos dois primeiros mandatos. Para constituir a sua base de apoio africana para se firmar como liderança do Sul global, o Brasil necessitará oferecer mais, principalmente nas áreas agrícolas e de energias renováveis.

  • 1.

    José Flávio S. Saraiva: «Política exterior do Governo Lula: o desafio africano» em Revista Brasileira de Política Internacional vol. 45 No 2, 2002.

  • 2.

    Irene Vida Gala: Política externa como ação afirmativa: projeto e ação do Governo Lula na África 2003-2006, Editora UFABC, Santo André, 2019.

  • 3.

    Paulo Fagundes Visentini: A África na política internacional: o sistema interafricano e sua inserção mundial, Juruá, Curitiba, 2010.

  • 4.

    Wolfgang Döpcke: «Há salvação para a África? Thabo Mbeki e seu New Partnership for African Development» em Revista Brasileira de Política Internacional vol. 45 No 1, 2002.

  • 5.

    Guilherme Ziebell Oliveira e Vinícius Henrique Mallmann: «A política externa brasileira para a África de Lula a Temer: mudança matricial em meio à crise» em Carta Internacional vol. 15 No 3, 2020.

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    E.H. Fraga Araújo: «Trump e o Ocidente» em Cadernos de Política Exterior ano III No 6, 2017.

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    F. Thales Ribeiro Francisco, Giovanna Bonato Matrone, Isabela Costa Campos e Vítor Hugo dos Santos: «O realinhamento brasileiro e o fim da África estratégica» em Gilberto Maringoni, Giorgio Romano Schutte e Tatiana Barringer (orgs.): As bases da política externa bolsonarista, Editora UFABC, Santo André, 2021.

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    Gladys Lechini: «BRICS e África: a grande incógnita» em Boletim de Economia e Política Internacional No 9, 1-3/2012.

  • 9.

    Conrado Ottoboni Baggio: «O acordo continental de livre comércio: esperanças e desafios» em Cadernos de Campo No 29, 2020.

  • 10.

    «Brasil SOB Lula pode ser elo entre África e América Latina, diz presidente de Cabo Verde» em Folha de S. Paulo, 31/12/2022.

  • 11.

    Andrea Verdélio: «Governo deve atualizar sua política para continente africano, diz Lula» em Agência Brasil, 25/5/2023.

  • 12.

    Mohammed Nadir, Gustavo Alves Daniel, Carlos Eduardo Ramos Sanches, Gabriel de Castro Soares e F. Thales: «África e a expansão dos brics», Observatório de Política Externa e da Inserção Internacional do Brasil, 16/11/2023.

  • 13.

    Pedro Alves Neto: «Lula participa da assinatura de acordos de cooperação com Angola: ‘Retorno do Brasil à África’ em G1, 25/8/2023.

  • 14.

    «Como vai funcionar a Aliança Global contra a Fome e a Pobreza, aprovada no Rio» em Agência Brasil, 24/4/2024.

  • 15.

    «Itamaraty esvazia embaixadas na África e contraria discurso do governo de reforçar laços» em Folha de S. Paulo, 24/4/2024.

Este artículo es copia fiel del publicado en la revista
ISSN: 0251-3552
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