Lula 3.0 e as relações do Brasil com os Estados Unidos
Nueva Sociedad Novembro - Dezembro 2024
O governo de Lula 3.0 promoveu um retorno do Brasil à cena global e buscou reenquadrar a relação com os eua. Houve uma nova sinergia presidencial entre Biden e Lula em função de suas agendas polarizadas internamente, mas essa aproximação não conduziu a uma transformação plena do relacionamento entre os dois países. Persistem diferenças em temas geopolíticos, incluindo o conflito Israel-Hamas. A atuação do Brasil no Conselho de Segurança da ONU e o pragmatismo de suas relações comerciais com a China também são fontes de diferenças com Washington.

As relações com os Estados Unidos correspondem a um tema perene nos estudos das relações internacionais do Brasil. No plano real, trata-se de um vínculo destacado na história contemporânea da política externa brasileira, que atravessou etapas distintas de aproximação e esfriamento político. Este relacionamento também sofreu variações de conteúdo e peso relativo no âmbito econômico-comercial como reflexo da economia política internacional do país. O propósito deste texto será o de analisar este bilateralismo, no momento presente, a partir da interseção de dois processos simultâneos e vinculados entre si: de um lado, a transição da ordem internacional, que se vê acompanhada por tensões e incertezas e, de outro, o retorno do Brasil à cena internacional como poder emergente identificado com valores democráticos e uma governança mundial inclusiva. A partir da articulação entre ambos, procuraremos examinar de que forma se combinam a repetição de certas dinâmicas interativas bilaterais com novas agendas e desafios que impõem destreza e inovação no relacionamento entre os dois países.
O lugar de Washington na agenda interna/externa brasileira
A política externa foi um tema essencial no esforço de reconstrução e retomada do projeto democrático brasileiro, a partir de janeiro de 2023. Além de reverter o isolamento e o desprestígio internacional e regional que macularam a presença do país durante o quatriênio de gestão bolsonarista, o governo de Luiz Inácio Lula da Silva procurou de imediato rever as prioridades internacionais do país e os laços bilaterais com relevância estratégica. O relacionamento com os eua foi um vínculo a merecer atenção destacada, primeiramente, pela necessidade de apagar o impacto deixado pela simbiose entre os projetos político-ideológicos dos governos de Donald Trump e Jair Bolsonaro e, em segundo lugar, pelo papel assumido por Washington no reconhecimento da confiabilidade do sistema eleitoral brasileiro e, portanto, da legitimidade política do novo governo de Lula da Silva – antes mesmo de sua inauguração1. Quando começa a gestão de Lula 3.0, observa-se uma justaposição entre duas veredas de relacionamento político, que, por sua vez, refletem as tensões entre projetos domésticos contrapostos em ambos os países. De um lado, prevalece uma conexão interdemocrática Brasil-eua, já alimentada por interações entre setores parlamentares, movimentos sociais e segmentos acadêmicos-intelectuais. Estes vínculos foram reforçados durante os anos do governo de Bolsonaro. De outro, prosperam laços e lealdades entres grupos e lideranças da extrema direita organizada cuja atuação se viu fortalecida a partir da chegada de Trump à Casa Branca em 2016. Esta dinâmica dual revela um jogo de reflexos entre os processos de polarização política no seio das sociedades americana e brasileira com incidência no vínculo bilateral.
O espelhismo entre o 6 de janeiro no Capitólio de 2020 (em Washington) e o 8 de janeiro na Praça dos Três Poderes em 2023 (em Brasília) deixou flagrante o parentesco entre os embates domésticos motorizados por polarizações ideológicas que afetam os sistemas democráticos nos dois países. Gerou-se um canal de comunicação bilateral entre expoentes políticos de extrema direita, alimentado por coincidências de valores e posições sobre antiglobalismo, anticomunismo e o antiliberalismo, por vezes com conteúdo religioso vinculado ao internacionalismo evangélico.
Na política externa brasileira, durante o sexênio Temer-Bolsonaro (2016-2022) esta comunhão de valores conduziu a uma plena aquiescência aos eua em temas da agenda internacional, com derramamento na definição de diretrizes de política econômica e na expansão dos vínculos na área de segurança e defesa. Neste quadro, o aprofundamento de compromissos militares bilaterais, da política regional e das orientações comerciais e monetárias estimulou uma ativa sintonia Trump-Bolsonaro. Com a assunção de Joe Biden (2020) nos eua, reduziu-se a estridência ideológica do alinhamento brasileiro a Washington, sem que se produzisse um redirecionamento de 180 graus em determinados campos de relacionamento. O diálogo presidencial se manteve em um patamar neutro e distante, sem que fosse desativada a proximidade política e o diálogo entre lideranças bolsonaristas e a extrema direita organizada nos eua, especialmente do Partido Republicano. Também foi preservada a fluidez das interações militares entre os dois países.
Durante o biênio Biden-Bolsonaro, observou-se ao mesmo tempo um incremento no diálogo bilateral não-governamental entre os movimentos e organizações sociais, fomentado pela importância das agendas de meio ambiente, lutas raciais e questões trabalhistas especialmente presentes no programa do Partido Democrata nos eua. Logo, a vitória eleitoral e assunção presidencial de Lula em 2023 significará uma janela de oportunidade para que a administração Biden recuperasse sintonia com Brasília. Uma sequência de gestos positivos sinalizou esta predisposição como a importância conferida pelos dois governantes ao tema da mudança climática2. No diálogo entre os chefes de Estado, foi sublinhado o temor compartilhado das ameaças provenientes dos grupos de extrema direita em planos nacionais e internacionais. Por um lado, a Casa Branca velozmente reconheceu a vitória eleitoral de Lula nos resultados das urnas no segundo turno de outubro de 2022; por outro, o presidente brasileiro visitou seu par em Washington antes de cumprido o primeiro mês de seu mandato.
Mas o impulso inicial mostrou ter asas curtas e, em seguida, uma combinação de ranços e suspeitas políticas rapidamente ganharam terreno. Logo, o zelo compartilhado na defesa do Estado de direito mostrou-se insuficiente para sanar antigas e novas diferenças no terreno da política internacional. Por parte do governo petista, mantinha-se a percepção de que a administração Obama mantivera uma atitude omissa frente ao golpe contra a presidente Dilma Rousseff em 2016 e a prisão de Lula da Silva em 2017.
No terreno da política internacional, as diferenças não tardaram em emergir. A retomada de uma política externa altiva e ativa gerou certo desassossego do lado do governo americano e seus aliados, quando refletido no tratamento de temas geopolíticos mundiais. O assento eletivo do Brasil no Conselho de Segurança, em cumprimento do mandato de 2022-2023, significou que o novo governo não poderia prescindir da fixação de sua postura frente à guerra na Ucrânia que eclodira no ano anterior, a partir da invasão militar russa a este país. Durante 2022, a posição de neutralidade já mantida pelo governo Bolsonaro fora mal recebida pela Casa Branca. Nas primeiras semanas de sua gestão, Lula 3.0 se manteve no mesmo lugar e deixou explícito que o Brasil não atenderia aos pedidos da Alemanha e dos eua de envio de ajuda militar ao governo ucraniano. Esta negativa trouxe subjacente uma postura crítica ao belicismo da Organização do Tratado do Atlântico Norte (otan). Em seguida, Brasília lançou-se na defesa de uma proposta de paz para o conflito, em coordenação com a China, que advogava a negociação entre todas as partes em conflito. A postura do Brasil nas Nações Unidas, tanto em atuações como membro temporário do Conselho de Segurança como nas votações na Assembleia Geral, tornou-se uma fonte de diferenças com os eua3. O empenho de Lula em promover uma resolução pacífica inclusiva foi desprezada por Washington e seus aliados europeus, que passaram a considerar esta como iniciativa uma forma velada de apoio ao governo de Vladimir Putin.
O diálogo Brasília-Washington também enfrentou suas dificuldades no manejo do conflito Israel-Hamas e os ataques sobre Gaza, a partir de outubro de 2023. Além de suas complexidades internacionais, o conflito suscitou sensibilidades no âmbito doméstico brasileiro em função da presença representativa de comunidades judaicas e árabes no Brasil4. De um lado, menciona-se o histórico apoio e a solidariedade de todos os governos do Partido dos Trabalhadores (pt) com a causa palestina, com o reconhecimento do Estado da Palestina desde 2010, a solução de formação de dois Estados e o Acordo de Oslo5 e, de outro, o peso de setores pró-israelenses em segmentos políticos e intelectuais combinados com os vínculos entre os militares brasileiros e supridores israelenses de equipamento e tecnologia. Logo, fizeram-se presentes as reações em solidariedade às vítimas de origem brasileira, ou com vínculos diretos, atingidas pelo ataque do Hamas, mantidas como reféns na franja de Gaza ou afetadas por ações militares israelenses desde outubro de 2023.
A diferença principal entre os governos do Brasil e dos eua a partir de 7 de outubro se deu com respeito à resposta militar de Israel, que recebeu a anuência da Casa Branca como um direito de autodefesa, independentemente do cometimento de graves violações ao direito internacional humanitário vitimizando a população palestina em Gaza. A atuação do Brasil no Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (onu) terminou constituindo mais um fator de distanciamento do que sinergia diplomática bilateral. Durante o mês da presidência brasileira no Conselho (outubro de 2023), apesar do esmero do Brasil, não foi alcançado o consenso para a aprovação de seis projetos de resolução que buscaram uma solução para o conflito e a decretação de um cessar-fogo. Em nenhum caso houve coincidência entre as posições dos governos do eua e do Brasil, o que voltou a se repetir na Assembleia Geral quando se votou uma resolução que demandava uma trégua humanitária imediata em Gaza (res. a/es-10/l.25)6.
As diferenças em temas geopolíticos mundiais não têm se refletido em temas regionais, sobre os quais se observa um convívio mais favorável à coordenação diplomática entre Biden e Lula. O retorno do Brasil à cena latino-americana e caribenha se deu com a imediata presença presidencial em âmbitos multilaterais, com menção à reunião da Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac) a menos de um mês da posse em Brasília. Um primeiro tema da agenda regional de Lula 3.0 dizia respeito à persistente crise venezuelana e as crescentes resistências do governo de Nicolás Maduro em aceitar o cumprimento de regras de jogo democráticas. A normalização das relações com a Venezuela, após anos de tensão e distanciamento, passou a incluir a decisão de acompanhar o processo político interno neste país. Com tal intuito, o governo Lula 3.0 buscou manter um diálogo com forças oposicionistas e participação em esforços locais-internacionais de diálogo político. Logo, ganhou impulso a ideia de que o Planalto estimularia a retomada de uma trajetória democrática na Venezuela, com o foco posto nas eleições presidenciais agendadas para julho de 2024. Esta aspiração foi bem vista pela Casa Branca, que aceitou abrandar a aplicação de algumas sanções ao governo venezuelano. O papel assumido pelo governo Lula na promoção das conversações de Barbados, em outubro de 2023, contribuiu para o compromisso de Maduro de que o pleito seria competitivo e contaria com observação internacional7. Neste mesmo contexto, buscou-se incluir na nova aproximação entre o Brasil de Lula e a Colômbia de Gustavo Petro um esforço conjunto de «monitoramento» do processo político venezuelano. Criou-se assim uma dinâmica de diálogos sobrepostos entre os governos de Lula, Petro e Biden, motivada pelo interesse compartilhado de normalização democrática da Venezuela.
Um segundo tema regional na agenda Brasília-Washington tem sido a contínua e severa crise de governabilidade no Haiti. Um novo momento de alarme internacional se produziu com a quebra institucional e o agravamento da crise humanitária no país a partir dos primeiros meses de 2024. A escalada da violência produzida pelas ações de gangues locais, que estimula fluxos de migração forçada, levou à constituição de uma nova missão de segurança multinacional, a ser conduzida pelo Quênia, aprovada pelo Conselho de Segurança da onu. Apesar das solicitações ao Brasil pelo governo americano, frente às condições de insegurança prevalecentes na ilha, o governo Lula decidiu restringir seu apoio ao Haiti à esfera da assistência humanitária, sem envolvimento militar direto, como fez no passado. Apesar das expectativas iniciais de que houvesse maior envolvimento brasileiro, a «compreensão» de Washington foi resultado do bom entendimento mantido entre os dois países no campo militar.
Temas de segurança e defesa
O relacionamento bilateral na área de segurança e defesa a partir do governo Lula 3.0 sofreu mudanças circunscritas em comparação com o período anterior. Durante o sexênio Temer-Bolsonaro, havia se fortalecido o nexo entre política externa e de defesa nas relações Brasília-Washington (e Miami). O complexo de segurança e defesa do governo Bolsonaro se vinculou positivamente com as premissas ideológicas de sua política externa. Neste contexto, o estreitamento da colaboração militar com os eua se manifestou por quatro vias simultâneas: (a) um abrangente diálogo entre o Ministério da Defesa e o Comando Sul, baseado em Miami; (b) arranjos bilaterais com inclusão de setores estratégicos como as áreas espacial e nuclear; (c) a expectativa de que o Brasil ascenderia à condição de aliado extra-otan dos eua; e d) a colaboração militar na região da fronteira brasileira com a Venezuela para isolar o governo de Maduro e securitizar o tratamento das questões migratória e amazônica. Do lado dos eua, as mudanças de ênfase e as prioridades da política de defesa, com o fim do ciclo da guerra contra o terror, facilitaram uma aproximação bilateral fomentado por afinidades ideológicas e visões estratégicas convergentes.
Com a volta de Lula ao poder, o nexo defesa-relações externas se desarticula sem que ocorram mudanças significativas nos vínculos internacionais do complexo de defesa e segurança brasileiro. De fato, a agenda externa das Forças Armadas é mantida com notável autonomia. Análises recentes sobre a agenda militar externa brasileira indicam uma valorização da otan como um «arco de conhecimento» e uma inspiração de modelo acompanhada por uma reforçada presença em atividades de representação e formação nos eua8. Além da dimensão bilateral, estes vínculos também se projetam em âmbitos interamericanos, como a Junta Interamericana de Defesa (jid) e o Colégio Interamericano de Defesa (cid) e em dinâmicas triangulares, como passou a se dar com a Colômbia nos anos recentes.
O Brasil se tornou um aliado-extra otan desde os anos do governo Trump, o que transformou o país em matéria de defesa internacional numa expressão caudatária da política estratégica norte-americana9. Observa-se, assim, uma convivência estreita de segmentos militares brasileiros com o pensamento estratégico norte-americano numa etapa que os eua atravessam um processo de reformulação doutrinária e redirecionamento operacional. Não deixa de ser paradoxal a preservação desta condição concomitante com as posturas críticas do governo Lula frente às ações e narrativas geopolíticas das lideranças ocidentais.
O relacionamento bilateral no contexto econômico mundial e regional
A China é o principal parceiro comercial do Brasil; e os eua, o segundo. No campo dos investimentos, a presença da China é recente. A partir do final dos anos 2010, o estoque de capital do país no Brasil foi de 71,6 bilhões de dólares estadounidenses em 2022. A presença do capital dos eua no Brasil é antiga, e o estoque de capital estrangeiro no país foi de 206,2 bilhões de dólares em 202010.
Os conflitos na área econômica entre eua e China e as transformações geopolíticas impactam nos fluxos comerciais e de investimentos na economia mundial. No caso brasileiro, destacamos quatro questões.
A primeira se refere às relações comerciais. Quando Bolsonaro assumiu o governo, em 2019, com o discurso anti-China, a participação da China nas exportações brasileiras era de 28,7% e a dos eua, de 13,4%. No auge da pandemia, em 2021, a participação da China chegou a 31,3% e a dos eua era de 11,1%. Naquele ano, o Brasil registrou um superávit comercial de 40,3 bilhões de dólares com a China e um déficit com os eua de 8,2 bilhões de dólares. Nesse cenário, o discurso anti-China era incompatível com os interesses dos setores exportadores agropecuários e da indústria extrativa do Brasil, que frearam qualquer possibilidade de medidas restritivas em relação à China. Três produtos (soja, minério de ferro e petróleo) explicam cerca de 70% das vendas brasileiras para esse mercado. Para os eua, a pauta de exportações é mais diversificada. Em 2023, 13% das vendas brasileiras para os eua eram de petróleo bruto, seguido de produtos siderúrgicos e aeronaves 5,3% 11.
No governo Lula 3.0, o Brasil retomou o ambiente pragmático nas suas relações comerciais. No caso dos eua, uma das questões na agenda comercial é que a realocação dos investimentos associados aos movimentos de nearshoring e friendshoring poderiam beneficiar o Brasil e contribuir para o adensamento das relações comerciais entre Brasil e eua. Até o momento, porém, esse cenário não se confirmou. A segunda questão se refere à agenda de investimentos. O governo Lula 3.0, no exercício da presidência do g-20 em 2024, colocou o tema da mudança climática como uma das prioridades. Nas visitas realizadas pelo presidente brasileiro a Washington (fevereiro de 2023) e a Pequim (abril de 2023), as declarações conjuntas anunciadas em cada uma dessas ocasiões colocava como uma das prioridades os investimentos e financiamentos para a transição energética. Estudos mostram que a composição dos investimentos chineses estaria mudando na América Latina. Antes eram concentrados em projetos de infraestrutura, mineração, petróleo e agricultura; nos anos 2020, passam a se direcionar para novos setores, como veículos elétricos e energias renováveis, onde a oferta de minerais críticos para esses setores, como o lítio, está disponível em alguns países da região12.
O governo dos eua está atento aos movimentos da China na região sul-americana. Segundo declarações da embaixadora dos eua no Brasil na imprensa, Elizabeth Bagley, os eua pretendem investir nessa área no Brasil. Seria, segundo a embaixadora, uma estratégia de nearshoring de assegurar fornecedores aliados para a estratégia americana de fortalecer sua indústria de semicondutores, painéis solares e veículos elétricos, entre outros13.
O governo Biden anunciou a imposição de tarifas de importações sobre veículos elétricos chineses para 100% e de 50% sobre células solares14. Não está claro se o protecionismo dos eua vai passar a generalizar barreiras protecionistas para qualquer produto com conteúdo chinês, o que teria um efeito negativo sobre o potencial de exportações desses veículos do Brasil para os eua. A área da transição energética ainda não entrou na pauta como fator de tensão declarado das relações Brasil-eua. Este será um tema onde a «construção da neutralidade brasileira será testada». Um terceiro tema bilateral se refere às inciativas de investimentos associadas à região da América Latina que impactam na agenda bilateral do Brasil com os eua. Em 2018, foi anunciada a inclusão da América Latina no projeto da Iniciativa Cinturão e Rota da China. Foram incluídos temas como conectividade digital, desenvolvimento sustentável e formas de cooperação técnica no campo da tecnologia15. Atualmente, a adesão à iniciativa é negociada bilateralmente, e o Brasil, apesar da expectativa chinesa, ainda não a assinou.
A resposta do governo dos eua para uma maior aproximação com o continente latino foi o lançamento da Parceria das Américas para Prosperidade Econômica (apep, na sigla em inglês), em janeiro de 2023. A iniciativa cobre temas como competitividade regional, cadeias de abastecimento, normas trabalhistas, inclusão financeira e investimento inclusivo e sustentável. Poucos países (fora os eua, são 10) aderiram à iniciativa, e quase todos já possuem acordos com os eua. Nesse sentido, há uma percepção de que seria mais um aceno diplomático para a região16. O Brasil não integra a lista da apep17. Observa-se que o tema dos investimentos em infraestrutura como mecanismo de integração faz parte da agenda do Programa de Aceleração do Crescimento do governo Lula 3.0, e a vinda de financiamentos externos é fundamental para o avanço do programa. A quarta questão se refere à posição do Brasil e dos eua na Organização Mundial do Comércio (omc). Trump bloqueou um dos pilares da omc ao não dar o aval para a nomeação de novos membros para o Comitê de Apelação do Mecanismo de Solução de Controvérsias. O Brasil, juntamente com a União Europeia e mais 14 países, entre eles a China, instituíram um sistema, em março de 2020, que permitiu a continuação desse Mecanismo, em caráter temporário. Para o Brasil, o fortalecimento do sistema multilateral é uma bandeira da política externa. Desde o seu primeiro mandato, o governo Lula se alinha com a China e vários países em desenvolvimento que defendem flexibilidade nas regras para acomodar estratégias distintas de políticas tecnológicas e industriais. Em princípio, um ponto de discórdia com os eua. No entanto, não há propostas substantivas comuns chinesas e brasileiras sobre o tema da reforma da omc.
Reflexões finais
Durante os anos de governo Temer-Bolsonaro, a política externa de aquiescência a Washington foi considerada uma fonte de prestígio e ao mesmo tempo um instrumento para o fortalecimento de uma presença antiglobalista. O Brasil se tornou um ator internacional enfraquecido e isolado, em posição desvantajosa frente ao processo de transição da ordem global.
As sinergias ideológicas entre os posicionamentos de grupos extremistas nos eua e no Brasil vêm estimulando uma projeção política norte-americana que se entrelaça com o fortalecimento e o empoderamento de lideranças direitistas brasileiras. Ressaltadas as diferenças entre o presente e o passado, observa-se certo déjà-vu com os anos 60 do século xx no que tange a uma articulação bilateral de cunho conservador e até antidemocrático, civil e militar. Em contrapartida, são igualmente vigorosos os vínculos entre segmentos sociais e de movimentos organizados com sentido progressista entre os dois países. A partir do retorno do Brasil à cena global com o governo de Lula 3.0, buscou-se reenquadrar o relacionamento com os eua. Gera-se uma nova sinergia de nível presidencial entre Biden e Lula em função de suas agendas políticas polarizadas internamente. Tal aproximação, entretanto, não conduziu a uma transformação plena do relacionamento entre os dois países. Persistem diferenças em temas geopolíticos mundiais e se manifestam novas discordâncias. A enfática defesa de um sistema mundial multipolar pela política externa brasileira rejeita a narrativa dominante em Washington de que se observa a emergência de uma nova Guerra Fria dominada pelo confronto entre o Ocidente e a China e a Rússia.
Mas, para o Brasil, estas diferenças não ocorrem num contexto em que se dê uma reprodução ipsis litteris do contexto internacional dos primeiros anos do século xxi, quando os eua começavam a enfrentar dificuldades para manter sua condição de primazia mundial. Vinte anos depois, já com a transição a uma nova ordem global em etapa avançada, a convivência entre Washington e Beijing se moveu a um território de tensões resultantes de um amplo espectro de disputas de poder e influência nas diferentes regiões do planeta. Na América do Sul, e no Brasil em particular, a presença da China ganhou visibilidade e peso estratégico.
A partir de Lula 3.0 o bilateralismo com os eua sofre maior impacto no campo da política internacional do que em temas de segurança e defesa ou dos interesses e articulações econômicas. A área de defesa e segurança foi em períodos do passado e é no presente um campo fértil de relacionamento com Washington. A novidade no presente é a dissociação entre esta aproximação, já aprofundada a partir do acordo bilateral de 2014, e as orientações dominantes da política externa.
Na relação econômica bilateral com os eua, o principal desafio será o Brasil conseguir manter a «neutralidade», o que significa fazer acordos e abrir canais de diálogo em busca de assegurar melhoras de acesso a mercados e, principalmente, investimentos que sejam do interesse do Brasil. Tanto a China como os eua são fonte importantes de investimentos para o país.
Durante o governo Bolsonaro, o Brasil conseguiu evitar o conflito com os eua no caso da Huawei com a China, apesar do pedido do governo Trump de impedir a participação da Huawei na licitação do 5g no Brasil18. A Huawei já era um parceiro relevante e competitivo no mercado brasileiro e de telecomunicações, e a pressão do setor privado brasileiro conseguiu assegurar a participação da empresa. Na atualidade, o cenário das tensões com a China se acirrou e, com a possibilidade da eleição presidencial ser ganha por Trump, pode-se limitar o escopo da posição de «neutralidade» do país no campo comercial e de investimentos, principalmente. Neste caso, a margem de autonomia no terreno da política internacional será inevitavelmente afetada.
Por último, em janeiro de 2022, a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (ocde) formalizou o início do processo de adesão do país ao grupo, uma questão priorizada no governo Bolsonaro. O governo Lula não pediu a retirada da candidatura. Num momento em que o alargamento do brics (originalmente Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), ao incluir países como Irã, é visto como um grupo anti-Ocidente, manter a candidatura para a ocde seria uma forma de o país consolidar sua posição de neutralidade e de boas relações com os eua.
Como mencionado nas primeiras linhas deste artigo, o lugar do relacionamento com os eua pode sofrer variações, mas constitui um vínculo permanente na agenda externa do Brasil. Tal constância combina um conjunto de padrões já conhecidos e esperados nas interações cotidianas com um empenho por evitar zonas de desconforto geradas por novas circunstâncias. Na economia política, enfrenta-se o caráter competitivo do bilateralismo com a China, que estimula novas «corridas de obstáculos» nas áreas de investimentos e de transição energética. Na geopolítica, percebe-se uma prudência compartilhada frente à tendência expansiva de uma agenda de desencontros na compreensão da ordem mundial em plena etapa de configuração. Observa-se neste caso uma dinâmica de terceirização, ou diríamos de pivotização. No manejo das crises na Ucrânia e em Gaza, as tensões diplomáticas de Brasília se dão com os governos Zelensky e Netanyahu e não diretamente com Washington. De fato, o Planalto e a Casa Branca vêm optando por evitar que diferenças se transformem em contenciosos que seriam custosos e contraproducentes frente aos desafios externos que ambos já enfrentam.
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1.
Ver M. Hirst e L.V. Pereira: «Making Sense of us-Brazil Relations under Bolsonaro» em Latin American Policy, 13/10/2023; Cristina Soreanu Pecequilo: «EUA e Brasil nos governos Lula (2003-2010, 2023-atual): reflexões sobre uma parceria» em Fernanda Pertiná Magnota (org.): Uma parceria bicentenária: passado, presente e futuro das relações Brasil-Estados Unidos, FUNAG, Brasília, 2024.
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2.
O diálogo entre a ministra Marina da Silva e o representante especial para Meio Ambiente John Kerry gerou expectativas – que logo se fustraram – de que os eua participariam de forma substancial na criação do fundo Amazônia. Ver M. Hirst: «A política externa de Lula 3.0 além do horizonte», Cadernos Adenauer vol. XXIV No 1, 2023.
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3.
Guadalupe González González et al.: «El humanismo desarmado de América Latina» em Nueva Sociedad edição digital, 11/2023, disponível em nuso.org.
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4.
As estimativas são de que a comunidade judaica no Brasil reúna 120.000 pessoas, enquanto os refugiados e imigrantes de origem palestina sejam 60.000.
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5.
Desde 2010, o Brasil passou a reconhecer o Estado Palestino com base nas fronteiras estabelecidas em 1967.
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6.
Na votação da resolução da Assembleia Geral de 10 de maio de 2024 sobre a incorporação do Estado da Palestina como membro pleno da onu, o voto de rejeição dos eua e de Israel só contou com o respaldo da Argentina, República Checa, Hungria, Micronésia, Nauru, Palau e Papua Nova Guiné.
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7.
Em 17 de outubro de 2023, foram assinados os Acordos para Promoção dos Direitos Políticos e Garantias Eleitorais e para Garantia dos Interesses Vitais da Nação. Embora não fizesse parte formalmente do entendimento, Washington prestou seu apoio suspendendo temporariamente um conjunto de sanções aplicadas às exportações petrolíferas, gasíferas e auríferas venezuelanas. V. International Crisis Group: «Pacto en Barbados: la ruta sinuosa de Venezuela hacia comicios competitivos», 20/10/2023, disponível em www.crisisgroup.org/es/latin-america-caribbean/andes/venezuela/barbados-deal-sets-venezuela-rocky-path-competitive-polls.
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8.
O estudo «O setor de defesa brasileiro no exterior: desafios, oportunidades e subsídios para a revisão dos documentos de defesa», publicado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), Texto para Discussão No 2973, 5/2024, indica uma presença desproporcional do setor de defesa brasileiro nos eua, em comparação com outros países, considerando as múltiplas formas de interação internacional.
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9.
O status de aliado preferencial extra-otan foi criado em 1987 pelos EUA sendo atualmente outorgado a um grupo de 19 países: Argentina, Austrália, Bahrain, Brasil, Catar, Colômbia, Coréia, Egito, Filipinas, Kuwait, Israel, Japão, Jordânia, Marrocos, Paquistão, Quênia, Tailândia e Tunísia. Além de considerá-lo um fator de prestígio, o governo americano o utiliza como um facilitador bilateral para intercâmbio e apoio militar. Em 2019, o governo Bolsonaro buscou sem sucesso que o Brasil se tornasse um sócio global da própria otan.
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10.
Dados do Banco Central do Brasil, www.bcb.gov.br, e de Tulio Cariello: Investimentos chineses no Brasil 2022. Tecnologia e transição energética, CEBC, Rio de Janeiro, 2023.
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11.
Dados citados são da Secretaria de Comércio Exterior do Brasil, disponível em www.gov.br/mdic/pt-br/assuntos/comercio-exterior.
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12.
T. Cariello: ob. cit. Ressalta-se que a BYD, empresa chinesa, iniciou a sua produção de carros elétricos no Brasil em 2023. É esperado que essa produção impulsione parcerias para a fabricação de painéis solares e outros produtos associados à transição energética no Brasil.
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13.
«eua vão comprar minérios críticos do Brasil, diz embaixadora» em Poder360, 15/5/2024.
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14.
«America’s 100% Tariffs on Chinese evs: Bad Policy, Worse Leadership» em The Economist, 24/5/2024.
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15.
L.V. Pereira e Lívio S.L. Riveiro: «Comércio, investimentos, moeda e a Iniciativa Cinturão e Rota: em que ponto os interesses brasileiros podem encontrar os interesses chineses?» em Evandro M. de Carvalho, Daniel Veras e Pedro Steenhagen (orgs.): China e a iniciativa Cinturão e Rota. Percepções do Brasil, FGV Direito, Rio de Janeiro, 2023.
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16.
Os países que fazem parte da iniciativa são: Barbados, Canadá, Chile, Colômbia, Costa Rica, Equador, República Dominicana, México, Panamá, Peru e Uruguai.
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17.
Richard E. Feinberg: «A Path Forward for the Americas Partnership for Economic Prosperity» en Global Americans, 31/1/2023.
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18.
M. Hirst e L.V. Pereira: «Making Sense of us-Brazil Relations under Bolsonaro», cit.