Tribuna global

Gaza, Ucrânia e a falência moral da «ordem mundial baseada em regras»


Nueva Sociedad Novembro - Dezembro 2024

A posição em relação à guerra em Gaza revela não só um padrão duplo das democracias ocidentais, mas também uma ruptura mais profunda que não permite vislumbrar que a solidariedade com a Ucrânia leve a uma ordem mundial mais justa. Mas não é somente o Norte global que demonstra uma profunda hipocrisia: os discursos antiocidentais do Sul também abrem espaço para desvios culturalistas e reacionários.

Gaza, Ucrânia e a falência moral da «ordem mundial baseada em regras»

Nos últimos dois anos, assistimos a debates acalorados sobre o papel do «Sul global» na política internacional em um grau nunca visto desde princípios da década de 1980. No início de 2022, os países do Norte global criticaram a relutância do Sul global em participar das sanções unilaterais contra a Rússia, um país que invadiu seu vizinho em uma clara violação do direito internacional e desencadeou uma guerra que já custou centenas de milhares de vidas. Os países do Sul global se recusaram a aplicar sanções com o argumento de que basicamente priorizavam seus próprios interesses estratégicos em detrimento dos princípios de soberania, integridade territorial, democracia e direitos humanos.No entanto, a pergunta primordial para o Sul global desde 24 de fevereiro de 2022 tem sido: o apoio à causa do Ocidente na Ucrânia levaria a uma ordem mundial baseada em regras mais igualitária e coerente, ou – ao contrário – reforçaria o status quo hierárquico, caracterizado pela seletividade na aplicação e no cumprimento do direito internacional em diferentes guerras e ocupações? A resposta para essa pergunta está evidente desde o início da mais recente guerra de Israel contra Gaza, desencadeada pelo ataque do Hamas em 7 de outubro de 2023. O resultado tem sido um colapso contínuo da confiança na chamada «ordem mundial baseada em regras», não só aos olhos do Sul global, mas também de muitos movimentos feministas, ambientalistas e defensores dos direitos humanos em todo o mundo, chocados com o tratamento dado aos palestinos por suas contrapartes ocidentais.

A ira popular continua se insurgindo contra uma noção liberal e periférica de humanidade que valoriza a vida dos civis de maneira distinta em diferentes guerras e ocupações. Em 21 de novembro de 2023, após o cerco e a destruição do Hospital Indonésio no norte de Gaza por Israel, o Comitê de Resgate e Emergências Médicas – organização de ajuda indonésia que administrava o hospital – publicou uma dura carta aberta ao presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, na qual declarou: «O senhor destruiu as regras internacionais do jogo, insultou a autoridade da onu, destruiu o senso de justiça, agrediu os valores humanos e manchou a face da civilização humana»1.

Em 21 de outubro de 2023, o rei Abdullah ii da Jordânia discursou contra a renúncia descarada do Ocidente ao direito internacional no que diz respeito ao povo palestino: «A mensagem que o mundo árabe está ouvindo é muito clara. A vida dos palestinos vale menos do que a vida dos israelenses. Nossas vidas importam menos do que as de outras pessoas. A aplicação das leis internacionais é opcional. Os direitos humanos têm limites e se detêm em fronteiras, raças, religiões. Essa é uma mensagem extremamente perigosa, pois as consequências da contínua apatia e inação internacionais serão catastróficas, e para todos nós»2.

Apesar das contradições internas e dos «interesses nacionais» divergentes dos vários Estados do Sul global, líderes, diplomatas e públicos ocidentais estão vivendo em negação, pois seguem desconsiderando essa ira e prestando apoio incondicional à ocupação de Israel, tácita ou abertamente. Ao exibir padrões duplos tão flagrantes, eles debilitam sua própria credibilidade aos olhos de bilhões de pessoas, e as consequências de longo prazo dessa alienação Norte-Sul que há muito se aprofunda serão certamente graves.

A moralização ocidental e a ilusão de reciprocidade

Quando a Rússia invadiu a Ucrânia em fevereiro de 2022, o Ocidente foi inequívoco em sua condenação; mesmo no Sul global, sob camadas de neutralidade oficial, houve comoção e rechaço generalizados. De fato, duas resoluções da Assembleia Geral das Nações Unidas foram aprovadas nesse sentido em 2 e 24 de março de 2022, com amplo apoio (ou pelo menos abstenção) do Sul global. Entre os principais abstencionistas, o desconforto em endossar abertamente a invasão da Rússia decorreu não apenas de sua inquestionável violação da Carta das Nações Unidas e do direito internacional, mas também de como as sanções unilaterais do Ocidente e a utilização de várias instituições multilaterais e da economia global como armas (weaponization) – em meio à disputa por fontes alternativas de energia e de obtenção de divisas – deixariam suas economias e sociedades já atingidas pela pandemia ainda mais fragilizadas.

Em março de 2023, o presidente do Quênia, William Ruto, explicou da seguinte forma a oposição de seu país à invasão russa: «Não se trata do Norte ou do Sul global, mas do que é certo e errado»3. No entanto, essa declaração foi feita enquanto ele partilhava das muitas queixas fundamentais do Sul global com o sistema internacional atual, inclusive compromissos inadequados de financiamento climático, endividamento que restringe gastos com saúde e educação, e o «nacionalismo de vacinas» discriminatório e perdulário durante a pandemia de covid-19.Por sua vez, o governo da Ucrânia reconheceu suas décadas de diplomacia sem brilho com o Sul global, e 2023 foi um ano de expansão sem precedentes do engajamento para além do mundo transatlântico. Cabe notar particularmente as reuniões preliminares realizadas em Copenhague em junho de 2023, Jeddah em agosto de 2023 e Malta em outubro de 2023 – todas com a participação de assessores de segurança nacional e negociadores da China, Brasil, Índia, Arábia Saudita, África do Sul, Turquia e Catar, entre outros países – em preparação para uma «cúpula de paz global» baseada no plano de paz de dez pontos da Ucrânia.

De modo geral, as atitudes condenatórias em relação à neutralidade do Sul global ou o apoio relutante à Ucrânia ofuscaram as percepções ocidentais em 2022 e 2023. Contudo, os dados de exportação das principais economias da União Europeia revelaram a aceleração dos negócios e fluxos comerciais com a Rússia por meio de uma série de países terceiros, o que compromete as acusações ocidentais de que os sustentados esforços de guerra da Rússia se fundamentam principalmente na cumplicidade do Sul global. Ao mesmo tempo, os diplomatas ocidentais e ucranianos se empenharam seriamente em angariar apoio em todo o Sul global4

Não se tratava tanto de enviar armas para a Ucrânia em tempos de guerra, mas sim do imperativo da Ucrânia de desenvolver relacionamentos de longo prazo no Sul global, tendo em vista o fato objetivo de que os desenvolvimentos geopolíticos, tecnológicos e econômicos no século xxi estarão cada vez mais centrados nessa parte do mundo.

Durante as reuniões em Copenhague, um funcionário da ue afirmou que qualquer paz justa na Ucrânia «deve se fundamentar nos princípios da Carta das Nações Unidas e nas leis internacionais relativas a integridade territorial e soberania». No entanto, essa certeza política e moral por parte do Norte global, que parecia inabalável diante da guerra da Rússia contra a Ucrânia, pareceu evaporar com a guerra de Israel em Gaza e a escalada da violência na Cisjordânia.

Da mesma forma, a França e o México propuseram conjuntamente em 2015 restringir o poder de veto dos membros permanentes do Conselho de Segurança das Nações Unidas em casos de genocídio abjeto e crimes contra a humanidade. A proposta evocou um senso de urgência, obteve um apoio internacional mais amplo após a invasão russa na Ucrânia e, em julho de 2022, foi endossada por 106 países membros da Organização das Nações Unidas (onu), inclusive a Ucrânia. Contudo, a França continua sendo até hoje o único membro permanente do Conselho de Segurança a endossar a proposta, e sua eventual força se perdeu depois que a punição coletiva de civis palestinos e a devastação sem precedentes de Gaza começaram a ocorrer após 7 de outubro de 2023.Mas talvez a complicação mais moral e legalmente devastadora tenha sido o total apoio diplomático, financeiro e militar do Ocidente ao ataque punitivo de Israel na Palestina. As respostas contrastantes do Ocidente à invasão russa na Ucrânia e os riscos de uma ocupação israelense prolongada e expandida sobre o povo palestino colocaram em questão sobre se os gestos de cooperação tácita do Sul global com relação à Ucrânia nos últimos dois anos se traduzirão em reciprocidade por parte da Ucrânia e do Ocidente em outras questões urgentes que preocupam o Sul global, incluindo a Palestina.

Empatia pela Ucrânia, apatia por Gaza

Retratos desumanizantes de civis palestinos, inclusive crianças, foram emitidos por governos de grande poder e pela mídia influente em uma tentativa de justificar a violência contra uma população sitiada. Nas palavras da Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina no Oriente Próximo (unrwa, na sigla em inglês), «os habitantes de Gaza sentem que não são tratados como os outros civis. Sentem que o mundo está equiparando todos eles ao Hamas»5

Esses retratos fazem parte de um padrão mais amplo de total apatia quando se trata do sofrimento palestino. Tal padrão soa tragicamente semelhante às justificativas da Rússia para invadir a Ucrânia ao citar uma suposta necessidade de «desnazificar» e incorporar a população ucraniana ao «mundo russo». Aos olhos da Rússia e de Israel, forças de ocupação de acordo com a legislação internacional, os sentidos de nacionalidade ucraniana e palestina são falsos e só podem ser resgatados com uma «libertação» civilizacional por meio do extermínio. Essa desconsideração pelos sofrimentos e aspirações políticas genuínos no território, tratando movimentos de resistência locais como meros fantoches de poderes geopolíticos nefastos, justificou historicamente muitas vezes uma destruição incalculável, como foi o caso da Guerra do Vietnã (1955-1975).

Em 27 de outubro de 2023, após a aprovação de uma resolução da Assembleia Geral que pedia uma trégua humanitária e a proteção de civis em Gaza, a Malásia e a Indonésia, que votaram a favor das resoluções sobre a Ucrânia em 2022, protestaram contra a Ucrânia e as respostas contrastantes do Ocidente, fazendo comparações diretas entre os apelos de civis na Ucrânia e na Palestina. Nas palavras de um diplomata indonésio: «Aqueles que não apoiaram essa resolução são os que bradam contra as mortes de civis na guerra da Ucrânia. Infelizmente, eles não reconhecem as vítimas civis, especialmente as crianças, que foram massacradas nos combates completamente desproporcionais em Gaza».O segundo aniversário da invasão russa chegou em um momento de hesitação do ímpeto global pela Ucrânia e pelo Ocidente. Em 24 de fevereiro de 2024, os países do Norte global se abstiveram atipicamente de apresentar uma nova resolução da Assembleia Geral em apoio à Ucrânia, em grande parte por medo de que se confirmasse o declínio do apoio dado ao país em todo o mundo. Com pouca implicação prática ou aplicação, essas resoluções não vinculantes buscam mais a mobilização e a manutenção da relevância global para a causa duradoura da Ucrânia. A mesma abordagem tem sido fundamental para a luta política e jurídica dos palestinos, conforme demonstrado pelas mais de 180 resoluções da onu sobre a Palestina aprovadas desde 1948.

No Diálogo Raisina em Nova Délhi, em 24 de fevereiro de 2024, vários funcionários da ue argumentaram que as compras indianas de combustíveis russos com desconto estavam «produzindo balas russas», ignorando seu próprio apoio à carnificina de Israel em Gaza. Esse cenário exemplifica um ponto mais fundamental: entre os principais países que inicialmente tiveram princípios suficientes para apoiar simbolicamente a Ucrânia na onu, os votos da Ucrânia e do Ocidente sobre Gaza e o tratamento da questão palestina «serão lembrados»6. Em lugar de um sentimento de traição em si, os eventos dos últimos seis meses parecem confirmar um oportunismo sem princípios, tanto no Ocidente quanto no Oriente. Nesse sentido, a posição dos que se abstêm sobre a Ucrânia de um ponto de vista geopolítico estratégico, independentemente de suas justificativas morais e legais, pode de fato ter sido justificada.

A situação da Ucrânia na difícil situação global atual

Em nossa era de rivalidades renovadas entre grandes potências, a mensagem que emana de nações menores como a Palestina e a Ucrânia é que, diferentemente da era despolitizada da globalização econômica capitalista (de 1991 à década de 2020), as aspirações políticas há muito reprimidas e a própria história voltaram ao cenário mundial. Elas não podem mais ser ignoradas em nome do comércio internacional, da liberdade de navegação e da estabilidade da ordem «baseada em regras». No entanto, há diferenças cruciais na natureza ideológica dos conflitos na Palestina e na Ucrânia: insistir em uma aplicação mais igualitária e coerente do direito internacional em diferentes guerras e ocupações, ou rejuvenescer uma noção liberal decadente de seletividade hierárquica na aplicação desse direito. Nesse sentido, a Ucrânia e o restante do Ocidente têm grande responsabilidade por seu isolamento diplomático atual.

Após o assassinato de cerca de 1.200 civis e combatentes israelenses pelo Hamas em 7 de outubro de 2023, o presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, deixou clara a posição de seu país ao se aliar a Israel indo além da condenação legítima do ataque. Em muitas declarações feitas entre 7 e 17 de outubro de 2023, Zelenskyy retratou o conflito israelense-palestino de longa data em termos de um quadro beligerante de «guerra ao terror», sem considerar os contextos históricos e legais, como tampouco a situação de escalada que antecedeu o ataque7.

Como corajosamente sugerido pelo secretário-geral da onu, António Guterres, em 25 de outubro de 2023, a história do conflito começou há 56 anos. Antes de 7 de outubro, 2023 já havia sido o ano mais mortal na Palestina da última década; a organização Save the Children o descreveu como o ano mais mortal para crianças palestinas já registrado na Cisjordânia e em Jerusalém Oriental. Enquanto isso, o número atual de mortes superior a 8.000 crianças em Gaza desde o início da guerra (o número final certamente será muito maior) só pode deixar qualquer pessoa com consciência angustiada ou entorpecida.

No entanto, da Presidência às Forças Armadas, o Estado ucraniano estabeleceu imediatamente equivalências entre a Ucrânia e Israel, e entre o Hamas e os civis palestinos. O gabinete das Forças Armadas da Ucrânia lançou um vídeo que retrata Israel e a Ucrânia como países em guerra na defesa da «civilização». A escalada da violência foi incentivada de forma clara. Isso contrasta fortemente com as respostas imediatas de Singapura e Quênia, que, embora parceiros próximos de defesa e segurança de Israel, pediram uma redução mútua da escalada e votaram por um cessar-fogo na onu em 27 de outubro de 2023.

Em 13 de outubro de 2023, Andriy Yermak, assessor de Zelensky, publicou um artigo de opinião no qual argumentava de forma inequívoca «por que a Ucrânia apoia Israel». O artigo foi publicado no mesmo dia em que Israel solicitou à onu a transferência forçada de 1,1 milhão de pessoas do norte de Gaza em 24 horas, uma medida amplamente condenada como uma tentativa de limpeza étnica ou até mesmo o que poderia plausivelmente ser considerado genocídio, de acordo com uma avaliação provisória do Corte Internacional de Justiça (cij). Não foram poupados trabalhadores, pacientes e recém-nascidos, e para muitos, a remoção acabou sendo uma sentença de morte de fato. Até mesmo Noruega e Irlanda, dois parceiros próximos dos Estados Unidos, exigiram imediatamente a contenção israelense e destacaram o sofrimento palestino paralelamente a suas contrapartes israelenses. Nas palavras do Ministério das Relações Exteriores da Irlanda: «Nas leis de conflito armado, não há hierarquia na dor e no sofrimento». Além dos aliados e parceiros de Israel em todo o Ocidente, nenhum outro líder de um país que reconhece formalmente a condição de Estado palestino apoiou tanto a retaliação irrestrita de Israel quanto Zelensky. Mas como revelou uma sondagem ucraniana de 15 de dezembro de 2023, isso vai além de Zelensky: as ações militares de Israel contam com apoio generalizado na sociedade ucraniana, como «uma escolha a favor de um mundo democrático livre contra um mundo de terror medieval»8.

A Ucrânia e o Ocidente começaram a expressar tardiamente sua preocupação humanitária com os civis palestinos em 17 de outubro, somente depois de o último ataque israelense em Gaza já ter eliminado 825 famílias inteiras do registro civil de Gaza. O ápice desse processo foi atingido em 31 de janeiro de 2024, quando o enviado da Ucrânia à onu, Sergiy Kyslytsa, se posicionou ao lado do primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu e diversos outros enviados da onu em um apelo unificado para retirar o financiamento e substituir a unrwa, apesar do nível apocalíptico de devastação em Gaza e da escalada da violência dos colonos na Cisjordânia9.

A cena contrastou de modo marcante com a quantidade de países de renda média e baixa que fizeram generosas doações para a Ucrânia no auge da invasão russa por meio de várias agências da onu, às vezes sob pressão do Ocidente. Esses países também viram uma substancial ajuda ocidental para o desenvolvimento em áreas essenciais – de energia renovável a educação – ser abruptamente cortada ao longo de 2022-2023, pois os recursos foram desviados para apoiar os refugiados vindos da Ucrânia e a sobrevivência do país durante a guerra. Esse tipo de jogo de soma zero é exatamente o motivo pelo qual muitos governos e povos do Sul global não partilham da ilusão de que o fim da Guerra Russo-Ucraniana produzirá uma «ordem baseada em regras» mais igualitária e coerente.Isso foi simbolicamente manifestado por uma votação na Assembleia Geral realizada em 14 de novembro de 2022 sobre a criação de um «mecanismo internacional de reparações» para fazer com que a Rússia pague reparações de guerra à Ucrânia: 94 países votaram a favor, enquanto 87 países se abstiveram ou votaram contra. Muitos entendem que é improvável que esse mecanismo seja invocado em outras guerras ou ocupações; em outras palavras, a decisão serve à justiça seletiva. Não se trata tanto de aplicar padrões duplos em si (algo de que nenhum país é inocente), mas sim dos próprios padrões das democracias autoproclamadas. O resultado é uma perda acelerada de atenção e apoio à causa da Ucrânia.

O momento do Sul global?

As ações tanto da Rússia como da Ucrânia são sintomas, e não causas, de uma crise geral na política internacional contemporânea, na qual a própria libertação requer desumanizar vítimas civis de outras guerras, ocupações e regimes opressivos. Por sua vez, a violência da unipolaridade – isto é, a tentativa de rejuvenescer uma ordem baseada em regras ostensivamente liberal e hierárquica – é combatida pela violência da multipolaridade, na qual importam apenas a política e a influência das grandes potências emergentes e de suas elites dominantes predominantemente conservadoras.

As guerras em Gaza e na Ucrânia servem para lembrar de forma pungente que a maneira como os conflitos são retratados se relacionam, em última análise, com a garantia de um lugar no lado privilegiado de uma ordem mundial já profundamente desigual. Essa é a tragédia permanente do Sul global: embora legitimamente indignados com os padrões duplos do Ocidente, esses próprios países permanecem incapazes de conceber coletivamente um modo de governança mais universalista e progressista, seja no plano doméstico ou externo. Nesse sentido, por si só, a crítica ao Ocidente se torna muitas vezes retrógrada.

O caso da África do Sul contra Israel na cij foi recebido nesse contexto como uma rara exceção à onda de realismo pós-colonial10, caracterizada pela busca de «interesses nacionais» e imperativos despolitizados de desenvolvimento e segurança em todo o Sul global desde 1991. Dessa forma, as medidas provisórias anunciadas pela cij em 26 de janeiro de 2024 foram vistas por muitos observadores como «um momento do Sul global». Esse sentimento é parcialmente justificado: para muitas pessoas comuns em todo o mundo, sua empatia com o povo palestino também constitui um protesto contra a apatia e as políticas externas cinicamente transacionais de seus próprios governos. No entanto, é necessário certo grau de ceticismo realista com relação a esse sentimento.

A coragem da África do Sul deve ser analisada não apenas em contraste com a cumplicidade do Ocidente, mas também com a abordagem calculada e tíbia das potências globais em ascensão. Muitos governos do Sul global não são mais movidos por imperativos democráticos e igualitários, como foram (pelo menos ostensivamente) durante a maior parte do século xx. A política contemporânea por trás dos termos «Sul global» e «descolonização» tem sido cada vez mais capturada por governos e forças políticas de direita, em que as lutas transnacionais do passado por igualdade e justiça política, econômica e social contra os descontentamentos do universalismo liberal, rivalidades imperiais e capitalismo global foram substituídas por particularismo e culturalismo civilizacional.

Antes definida por sua herança anticolonial, a política externa da Índia passa atualmente por uma profunda transformação ideológica, e o país tem emitido uma retórica intensamente desumanizante contra os palestinos. Muitos governos do mundo árabe seguem cautelosos em seu apoio à Palestina, cientes de que a questão continua sendo um potencial catalisador para críticas a suas próprias administrações. A prolongada desunião dentro da liderança política palestina também não deve ser subestimada.

Na Ásia, a Índia e o Vietnã são talvez os únicos países que mantêm relações fortes com os Estados Unidos, Israel, Rússia e Irã simultaneamente, apesar de sua tradicional solidariedade anticolonial com a Palestina. Durante a luta do Vietnã pela libertação nacional, a Organização para a Libertação da Palestina (olp) ofereceu forte apoio em suas guerras contra os Estados Unidos (1965-1973), o Khmer Vermelho (1979-1989) e a China (1979-1989). Como resultado, ao contrário da Índia, o Vietnã tem votado reiteradamente a favor de um cessar-fogo em Gaza na onu e prometeu apoio diplomático e financeiro à unrwa. Mas, para além de suas proclamações formais de apoio à condição de Estado palestino, sua resposta geral ao ataque de Israel foi marcada por uma tibieza incomum e, às vezes, por um silêncio perturbador11. Embora as evocações da libertação nacional do Vietnã e dos movimentos globais de protesto contra a guerra dos anos 1960-1970 tenham aumentado em todo o mundo desde 7 de outubro, essas referências permanecem praticamente ausentes nos discursos do governo vietnamita, na cobertura da mídia estatal e nos debates públicos.

Juntamente com a crescente cooperação bilateral militar e de segurança, o Vietnã se tornou o segundo país do Sudeste Asiático a assinar um acordo de livre comércio com Israel, em julho de 2023. O Vietnã anunciou a ratificação do acordo por sua Assembleia Nacional em 27 de fevereiro de 2024, enquanto a carnificina na Palestina prosseguia. Che Guevara declarou em 1967 que «o Vietnã, uma nação que representa as aspirações, as esperanças de todo um mundo de povos esquecidos, está tragicamente sozinho»; hoje, o Vietnã foi substituído pela Palestina.

O caso da África do Sul contra Israel é uma reminiscência dos padrões do século xix, em que, nas palavras da historiadora jurídica Ntina Tzouvala, «os advogados internacionais não ocidentais aderiram à lógica do aperfeiçoamento, abraçando completamente o processo de transformação capitalista», ao passo que «os mesmos advogados desafiaram a autonomeação de seus colegas ocidentais como os únicos árbitros do processo civilizatório»12. Essas tensões têm ressurgido periodicamente desde então. Além disso, embora o Conselho de Segurança tenha sido paralisado por rivalidades entre grandes potências e seja hoje incapaz de lidar com crimes de guerra abjetos em todo o mundo, várias agências e funcionários da onu no terreno se posicionaram contra a violência organizada dirigida ao povo palestino.O que esses fenômenos simultâneos indicam sobre o futuro é que os principais países do Sul global se tornarão mais corajosos na reivindicação do direito internacional, buscando neutralizar as formas pelas quais ele foi transformado em arma ou renunciado com impunidade, como fica mais evidente na Palestina. Em outras palavras, o direito internacional como base normativa de qualquer reivindicação de legitimidade e justiça continuará sendo uma ferramenta vital, especialmente para a condição de Estado palestino. Apesar de suas próprias contradições e preconceitos, o Sul global tem um papel importante a desempenhar nesse campo.

A lenta decadência do humanismo liberal

A resposta do Ocidente à invasão russa na Ucrânia pode ser lembrada como uma tentativa malsucedida de revigorar uma ordem liberal decadente, seletiva e hierárquica «baseada em regras». Por outro lado, a mais recente guerra israelense-palestina pode ser lembrada como a guerra que mudou o mundo, pois mudou também os corações e mentes de seus adeptos liberais em todo o Sul global. Não se trata tanto de uma questão ocidental ou oriental, mas da morte do humanismo liberal em si. Quando corações e mentes mudam silenciosamente sob a superfície de uma ordem liberal que, de outra forma, seria resiliente e poderosa, começam inevitavelmente a imaginação e os preparativos para uma alternativa viável, mesmo que inconscientemente.

De muitas maneiras, esse momento ecoa as lamentações de intelectuais, ativistas e estadistas anticoloniais sobre a traição do Norte global ao humanismo liberal com relação à autodeterminação nacional no século xx. Se as imagens horríveis da Guerra do Vietnã e os movimentos antiguerra subsequentes constituíram um momento divisor de águas em todo o mundo, a carnificina em curso na Palestina e os protestos globais contra ela podem constituir mais um desses momentos. Isso pode ter implicações transformadoras para a percepção da maioria global sobre os valores e princípios do Norte global e criar um impulso para um mundo novo, multipolar e anárquico para o qual ninguém está preparado.

O que está em jogo agora não é apenas a sobrevivência nacional da Ucrânia e da Palestina, mas a sobrevivência do direito internacional e tudo o que resta de decência humana básica. A violência e a brutalidade dos últimos dois anos devem levar todos nós – seja no Sul, Norte, Leste ou Oeste global – a fazer uma introspecção honesta e completa sobre o tipo de mundo em que queremos viver. Que tipo de geopolítica, noções de soberania, direitos humanos e legalidade são necessários para superar os desafios atuais? Caso contrário, nós nos aproximaremos cada vez mais do abismo de um mundo mais violento, niilista e sem alma, no qual os fracos são esmagados no interesse de poucos poderosos.


Nota: a versão original deste artigo foi publicada em inglês pela Fundação Rosa Luxemburgo com o título «Gaza, Ukraine, and the Moral Bankruptcy of the ‘Rules-Based Order’», 5/2024, disponível em . Tradução: Luiz Barucke.

  • 1.

    Comitê de Resgate e Emergências Médicas: «Open Letter to the President of the United States Joe Biden», 20/11/2023, disponível em <mer-c.org/siaran-pers/open-letter-to-the-president-ofthe-united-states-joe-biden>.

  • 2.

    «Remarks by His Majesty King Abdullah II At the Cairo Summit for Peace», Cairo, 21/10/2023, disponível em <kingabdullah.jo/en/speeches/cairo-summit-peace>.

  • 3.

    «Kenya’s President William Ruto Urges End to War in Ukraine» em DW, 28/3/2023.

  • 4.

    Robin Brooks: «As exportações da Alemanha para o Quirguistão aumentaram 1.200% desde antes de a Rússia invadir a Ucrânia. Obviamente, esse material está indo para a Rússia. Esse é um problema generalizado em toda a União Europeia. As exportações polonesas aumentaram 1.800%, as tchecas 1.200%, as italianas 870%, as austríacas 340% e as espanholas 140%. Putin obviamente adora isso», tuíte, 7/2/2024, disponível em <twitter.com/robin_j_brooks/status/1755218045239218570/photo/1>.

  • 5.

    «UN Security Council Briefing on the Situation in the Middle East, including the Palestinian Question», 30/10/2023, disponível em emergency-briefing-situation-middle-east>.

  • 6.

    Richard Gowan, Devika Manish Kumar e Maya Nicholson: «The un Is No Longer a Center of Gravity in Ukraine’s Diplomatic War» em World Politics Review, 22/2/2024.

  • 7.

    Presidência da Ucrânia: «Quando os terroristas atacam, todos que valorizam a vida devem se solidarizar», 7/10/2023.

  • 8.

    «Who Do Ukrainians Sympathize with in the Israeli-Palestinian Conflict: The Results of a Telephone Survey Conducted on November 29-December 9, 2023», comunicado à imprensa, Instituto Internacional de Sociologia de Kiev, 15/12/2023, disponível em <www.kiis.com.ua/?lang=eng&cat=eports&id=1334&page=1>.

  • 9.

    Primeiro-ministro israelense: «Precisamos de um órgão assim em Gaza hoje. Mas a unrwa não é esse órgão e precisa ser substituída por alguma organização ou organizações que façam esse trabalho», tuíte, 31/1/2024, disponível em <twitter.com/israelipm/status/1752779783711097333/photo/1>.

  • 10.

    Happymon Jacob: «How to Thwart China’s Bid to Lead the Global South» em Foreign Affairs, 5/12/2023.

  • 11.

    «Vietnam e Israel firman tratado de libre comercio» em Vietnam Plus, 25/7/2023.

  • 12.

    N. Tzouvala: Capitalism As Civilisation: A History of International Law, Cambridge UP, Cambridge, 2020.

Este artículo es copia fiel del publicado en la revista
ISSN: 0251-3552
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