Tema central
NUSO Nº 2019 / Dezembro 2019

Democracia, interesses e status na América Latina

Democracia, interesses e status na América Latina

A democracia representativa, em sua definição mínima, confere aos cidadãos a capacidade de eleger e substituir seus governantes. Essa capacidade de estabelecer uma prestação de contas vertical é a que, segundo Guillermo O’Donnell, deveria fazer com que os políticos no poder prestassem atenção aos eleitores inclusive nas democracias delegativas1. O comportamento eleitoral não é a única ferramenta dos cidadãos. Eles podem organizar marchas, denúncias, demandas e outras formas de pressão em momentos não eleitorais. De fato, diversos países latino-americanos viveram nas últimas décadas mobilizações que forçaram renúncias antecipadas ou acompanharam processos de julgamento político que interromperam mandatos presidenciais. No entanto, o voto continua sendo o componente essencial do funcionamento democrático. Por isso, é importante discutir a evolução dos fatores que moldam o comportamento eleitoral na América Latina.

Muitas são as considerações que cada cidadão realiza antes de ingressar na sala de votação para definir seu voto, ainda que deva terminar elegendo alguma das opções possíveis. As diferentes dimensões que entram em jogo têm um peso distinto na decisão de cada indivíduo. A ideologia, o desempenho do governo, a conexão pessoal com um partido, as expectativas distributivas e a identidade partidária pesam, em maior ou menor medida, para cada eleitor ao fazer a sua opção nas urnas. O peso de cada um desses fatores varia não somente entre os eleitores, mas também entre as eleições, dependendo da mudança do contexto, e isso gera, portanto, diferentes demandas eleitorais que a oferta dos partidos deve satisfazer2. Na América Latina, o desempenho econômico teve um papel fundamental no comportamento eleitoral desde as transições democráticas da década de 1980. A avaliação do desempenho econômico tem sido interpretada tanto em relação ao acesso a bens materiais, o chamado «voto com o bolso» ou «voto egotrópico», como em relação à saúde da economia em geral, o que se denomina «voto sociotrópico»3.

Apesar do predomínio do voto econômico, especialmente na América do Sul, a eleição de Jair Bolsonaro em 2018 chamou a atenção para o surgimento do status como determinante da mobilização eleitoral. Embora sejam diversos os fatores que contribuíram para o seu triunfo, o aparecimento de uma lacuna de gênero e de raça na análise das preferências eleitorais, assim como a importância do apoio evangélico na coalizão de Bolsonaro, fizeram soar os alarmes sobre uma potencial mudança no comportamento eleitoral latino-americano4, mais ainda porque a oferta eleitoral de Bolsonaro nessa campanha foi caracterizada por um discurso machista, racista e elogioso da ditadura e de uma ordem perdida à qual deveria-se regressar. Frente a esse marco, e sobretudo considerando o peso do Brasil na região, cabe questionar se nos encontramos frente a um divisor de águas no comportamento eleitoral latino-americano. Este ensaio discute, portanto, quais foram até agora os determinantes do voto na região e quais podem ser as consequências de incluir o status entre eles.

Democracia e voto na América Latina

A região aderiu cedo à terceira onda de democratização. A crise da dívida gerou uma piora econômica que acelerou esse processo nos países sul-americanos, que não estavam tão expostos às vicissitudes da Guerra Fria quanto seus pares centro-americanos. As democracias nascidas dessas transições estavam sufocadas por crises macroeconômicas. Nesse contexto, as avaliações sobre o desempenho econômico dos partidos de governo tornaram-se cruciais, talvez com as exceções relativas do Chile, onde a ditadura pôde contornar o problema, e as de Peru e Bolívia, onde as guerrilhas empurraram a questão da segurança para o centro da agenda eleitoral. Com o fim da Guerra Fria, a América Central e o México – com autoritarismo competitivo5 – juntaram-se à onda democrática uma década mais tarde. Nesses casos, a segurança interna adquire cada vez mais importância, primeiro vinculada ao fim das guerras civis e, posteriormente, ao crime organizado. O voto econômico, portanto, não tem a mesma importância nesses países.

As limitações dos governos democráticos para oferecer saídas à crise econômica, especialmente durante a recessão que afetou a região entre 1998 e 2003, deram lugar ao desencanto com os partidos tradicionais, sobretudo quando as legendas populistas haviam dado uma guinada rumo ao neoliberalismo e deixado os eleitores sem opções para se opor a políticas públicas das quais discordavam. Numa primeira instância, os eleitores fragmentaram seu voto eleitoral, num processo de tentativa e erro que aumentou a volatilidade do voto. Em seguida, despontaram novas opções que buscavam cobrir a demanda de renovação na oferta eleitoral, muitas vezes com outsiders que refletiam a insatisfação com os partidos tradicionais. Os outsiders buscaram sustentar suas coalizões oferecendo satisfazer expectativas de desempenho no terreno da segurança, como Álvaro Uribe na Colômbia, ou com promessas de bem-estar econômico, como Hugo Chávez na Venezuela e Rafael Correa no Equador. O cumprimento dessas expectativas, por esforço próprio ou por condições externas, como o auge das matérias-primas, foi crucial para que esses presidentes se reelegessem. A eleição foi o principal mecanismo de prestação de contas, e o desempenho, a principal condição para explicar o comportamento eleitoral.

A reeleição permitiu que esses outsiders ampliassem seus mandatos, e sua popularidade os ajudou a concentrar o poder no Executivo, de acordo com as previsões de O’Donnell. Ambas as características são importantes para entender a polarização gerada ao redor de suas figuras, estendida também a novos dirigentes que despontaram dentro dos partidos já existentes, como Luiz Inácio Lula da Silva, cuja liderança excedeu o Partido dos Trabalhadores (pt) no Brasil, e Néstor Kirchner e Cristina Fernández de Kirchner, que construíram uma coalizão que extrapolou o Partido Justicialista (peronista) na Argentina, mas também o dividiu.

No novo milênio, o crescimento econômico que acompanhou o auge das matérias-primas, especialmente na América do Sul, gerou uma redução da pobreza e da desigualdade de renda, assim como o surgimento de uma nova classe média ainda vulnerável aos impactos de choques negativos. Segundo Nora Lustig, a desigualdade caiu mais nos países que tiveram governos de esquerda e que exportam matérias-primas6. Nesses mesmos países também houve uma expansão de direitos que buscava reduzir outras formas de desigualdade. Adotaram-se novas Constituições e processos de consulta prévia que dão voz aos povos originários, instituições que procuravam incluir os afrodescendentes no sistema político e educativo, leis de casamento igualitário ou uniões civis e normas que expandiram direitos em relação a gênero e sexualidade. O simbolismo de um indígena na Presidência da Bolívia e de um trabalhador na do Brasil tampouco passou despercebido. Com relação às mulheres, expandiu-se a legislação sobre violência de gênero, e muitos países já haviam adotado cotas legislativas, mas o feminismo parece mais beneficiado pela queda da natalidade (que facilita a feminização do mercado de trabalho) do que pelas políticas públicas. Tais processos reproduzem tendências recentes das democracias dos países ricos, onde essas mudanças políticas e sociais geraram reações daqueles que sentem que seu status está ameaçado, especialmente homens, brancos e cristãos. Na América Latina, mudanças (muitas vezes tímidas) nas oportunidades de afrodescendentes, indígenas, mulheres e populações lgbti parecem também gerar uma ameaça ao status desses mesmos grupos. Os protestos organizados para denunciar a chamada «ideologia de gênero» e evitar a liberalização do acesso ao aborto legal e ao casamento igualitário são alguns exemplos da capacidade de mobilização gerada pela defesa do status, vinculada na América Latina à defesa da «família tradicional». A eleição presidencial da Costa Rica em 2018 demonstrou o peso da polarização provocada por uma decisão judicial que fez do casamento igualitário o eixo da campanha. A divisão da opinião pública fez com que um pastor evangélico, Fabricio Alvarado, deixasse um dos últimos lugares nas intenções de voto para se tornar o candidato mais votado no primeiro turno, com um quarto dos sufrágios. Acabou derrotado no segundo turno por uma chapa que levou à vice-presidência Epsy Campbell Barr, a primeira mulher afrodescendente a ocupar esse cargo em um país latino-americano.

O voto evangélico, como já mencionamos, também foi chave na eleição brasileira de 2018. Na vitória de Alberto Fujimori, em 1990, a ciência política latino-americana havia se espantado ao descobrir a potencialidade das redes evangélicas para um outsider sem partido, mas no caso do Brasil o processo não foi tão surpreendente. Já em 2003 havia sido criada a Frente Parlamentar Evangélica, que agrupava legisladores de diferentes partidos. O importante apoio evangélico a Bolsonaro, aparentemente empurrado pelos fiéis, proporcionou ao candidato redes prontas para difundir sua mensagem7. As igrejas evangélicas prometem tanto salvação espiritual como benefícios materiais imediatos vinculados ao acesso a espaços de sociabilidade e padrões de consumo. Isso permitiu-lhes criar redes de grande flexibilidade, baseadas sobretudo em relações pessoais, que se tornam um ativo fundamental em contextos de desarticulação partidária8. No entanto, seus apoios políticos são contingenciais, como ficou claro quando os evangélicos brasileiros abandonaram suas opções eleitorais pelo pt e por Marina Silva9. Apesar da importância dessas redes e de sua capacidade para se mobilizar contra a chamada «ideologia de gênero», as tentativas de estabelecer partidos religiosos propriamente ditos geralmente não foram bem-sucedidas até agora. Inclusive o pequeno Partido Encontro Social (pes), que fez parte da coalizão eleitoral de Andrés Manuel López Obrador na eleição mexicana de 2018, perdeu seu registro eleitoral. Não há um voto confessional, e sim uma sensibilidade que parece impulsionar a defesa do status montado sobre as hierarquias associadas à família tradicional e redes que se tornam atraentes no contexto do desencanto com os partidos tradicionais e a emergência de outsiders10.

Crise econômica e desencanto eleitoral

A piora econômica e o desencanto com os partidos são essenciais para entender o comportamento eleitoral atual. O apoio à democracia diminuiu significativamente na América Latina entre 2014 (quando acabou o auge das commodities) e 201611. Some-se a isso a crescente insegurança política, que também deteriora as avaliações de desempenho dos governos, e os escândalos de corrupção, que afetam a legitimidade de todas as instituições políticas. Desde 2014, governos desgastados por muitos anos no poder começam a enfrentar eleições mais competitivas e o surgimento de outsiders, especialmente no contexto de identidades partidárias negativas com grande peso eleitoral. O antipetismo foi fundamental na eleição de 2018 no Brasil, assim como o antikirchnerismo foi na eleição de 2015 na Argentina e será na de 2019, e também o anticorreísmo na do Equador em 2017. Todos esses casos surgem do ressentimento com uma forma de fazer política desses movimentos que, segundo David Samuels e Cesar Zucco, não pode ser explicado por preferências ideológicas12. Essas identidades negativas recordam as geradas por movimentos populistas como o peronismo e o varguismo no século xx, que também haviam tido um peso significativo no comportamento eleitoral13.

Embora o comportamento eleitoral não tenha se modificado radicalmente, inclui agora novos elementos. Na eleição brasileira de 2018, não apenas pesou o voto econômico – dada a dramática queda do pib no país em 2015 e 2016 –, mas também a influência do antipetismo, que cresceu muito e sobretudo entre os evangélicos durante uma campanha marcada por julgamentos de corrupção, que inclusive inabilitaram o principal candidato, o ex-presidente Lula14. No entanto, essa eleição também apresenta características habitualmente associadas ao voto por status. O voto em Bolsonaro foi mais masculino, mais branco, mais evangélico e de maior renda, assim como mais concentrado nas grandes cidades e nas zonas mais ricas do Sul e do Sudeste15. Ou seja, embora o mau desempenho econômico e de segurança e os escândalos de corrupção não possam ser dissociados do desencanto com os três partidos tradicionais – pt, Partido do Movimento Democrático Brasileiro (pmdb) e Partido da Social Democracia Brasileira (psdb, de centro-direita) –, não está claro que essas variáveis expliquem a lacuna de gênero, religiosa e de raça16. Estas poderiam, por sua vez, associar-se a uma reação contra a expansão de direitos, no que diz respeito às hierarquias de gênero e sexuais, e também contra a inclusão de afrodescendentes através das políticas do pt. O status relativo dos homens, brancos e evangélicos se veria afetado nessa circunstância. A queda das taxas de retorno da educação secundária e universitária destacada por Lustig e o fato de que a renda da velha classe média não tenha crescido de forma proporcional às dos ricos e pobres durante o auge das commodities também sugerem que o status relativo é uma peça importante nesse quebracabeça eleitoral17.

As consequências do voto por status

Agregamos o status aos determinantes não ideológicos do voto na América Latina? Os estudos sobre voto por status em países de alta renda consideram a situação pessoal dos indivíduos em relação a outros. Algumas dessas análises concentram-se nas ameaças que as pessoas percebem ante o avanço da automatização, a globalização e a entrada das mulheres no mercado de trabalho. Os homens com educação secundária são o grupo que mais parece afetado pela mudança em seu status, já que sua posição se vê ameaçada tanto no mercado de trabalho como em seus lares. E essa ameaça é a que os levaria a votar nos partidos extremos (ou populistas) de direita com discursos xenofóbicos, machistas e nacionalistas na Europa18. No caso norte-americano, tanto a diversidade racial como os riscos econômicos têm sido apontados como ameaças ao status dos homens, dos brancos e dos cristãos. E essa ameaça ao seu lugar na hierarquia social tem sido associada ao seu comportamento eleitoral, em um país percebido como exposto a um contexto de crescente globalização, sobretudo a partir da eleição de Donald Trump19. A percepção de mudança econômica, social e cultural é um terreno crucial para que os políticos apelem ao status perdido ou ameaçado e mobilizem eleitoralmente, prometendo uma volta ao passado.

Na América Latina, o voto por desempenho sempre foi importante para explicar o comportamento eleitoral, e o peso da economia será difícil de subestimar em um contexto de vacas magras, em que o impacto das condições internacionais retira graus de liberdade dos governos20. Além disso, o desempenho no campo da segurança parece ter sido mais efetivo com relação aos conflitos políticos que ao crime organizado. Embora a promessa de pulso firme tenha sido a solução em ambos os casos, o fracasso desta política para resolver a violência criminosa sugere riscos para os políticos que busquem se apropriar dessa temática no médio prazo. De fato, a recente eleição salvadorenha, em que o jovem Nayib Bukele assumiu o lugar dos partidos tradicionais apoiando-se em promessas de acabar com a corrupção, deixando em segundo plano a violência criminosa em um dos países mais perigosos do mundo, sugere que os políticos são conscientes desse risco. Mas a promessa de acabar com a corrupção, que também mobilizou o eleitorado latino-americano, pode ser difícil de cumprir. Isto se viu na eleição presidencial de 2015 na Guatemala, outro país com uma aguda crise de segurança. O outsider Jimmy Morales venceu com uma campanha que prometia acabar com a corrupção. Mas seus familiares próximos viram-se depois envolvidos em escândalos de corrupção e, por isso, Morales finalizou unilateralmente os trabalhos da Comissão Internacional contra a Impunidade na Guatemala (cicig), apesar de seu reconhecimento mundial. Finalmente, e em um processo de questionada legitimidade, impediu-se a candidatura da promotora anticorrupção Thelma Aldana nas eleições de 2019.

Como esse contexto afeta a mobilização eleitoral do status? Tanto a partir da demanda eleitoral como da oferta política, há condições que poderiam facilitar sua emergência, como ocorreu nas democracias dos países mais ricos. A piora econômica ameaça setores que haviam conseguido aumentar seu status social durante o auge das matérias-primas, especialmente aquela nova classe média vulnerável aos choques negativos. A classe média que investiu em educação também viu uma redução dos retornos que as credenciais obtidas oferecem no mercado de trabalho. Sua distância em relação aos pobres diminui, além de carecer de uma rede de contenção, inclusive aquela minimamente oferecida pelos programas de transferência de renda aos setores mais humildes. O fenômeno econômico é diferente da automatização, mas suas consequências poderiam ser similares em termos de ressentimento e expressão eleitoral. Se essa hipótese se sustentar, deveríamos observar uma queda na popularidade desses programas para os não beneficiários, como ocorre no Brasil desde 201421.

As mudanças políticas e sociais vividas na região apresentam novos desafios que produzem redistribuição de status. As transformações demográficas facilitaram a entrada das mulheres no mercado de trabalho, o que gerou mudanças em sua renda e nas relações domésticas. A entrada dos afrodescendentes nas universidades públicas brasileiras, por exemplo, não apenas significa competição com os brancos por espaços educativos, mas também modifica uma hierarquia social e provoca mudanças de status. O casamento igualitário acaba com o monopólio conferido aos heterossexuais em relação a esse estado civil e seus benefícios. Ao fazê-lo, o valor da exclusividade é ameaçado, assim como as relações domésticas que se sustentam no modelo da família «tradicional». Geram-se, desse modo, processos de redistribuição diretos porque as relações de status são relativas e não é possível que todos subam de status, a menos que os indivíduos cuja posição de privilégio diminui se sociabilizem novamente com uma forma distinta de entender as relações interpessoais que valorize estar em uma relação menos hierárquica22.

A redução de status relativo gera incentivos para se mobilizar, porque os indivíduos tendem a ser mais afetados pelas percepções de perdas que pelas de ganhos23. Além disso, os «perdedores» percebem isto como uma redistribuição de soma zero, já que o valor de seu status é dado pela distância relativa. Ou seja: a redistribuição de status é diferente da material, no sentido de que esta última pode subir o piso para todos, inclusive se o faz mais para uns do que para outros. Pelo contrário: ao ser relativa, a redistribuição de status implica perdas para aqueles que não se veem beneficiados. Do ponto de vista da oferta política, esse voto tem a vantagem de ser relativamente barato em termos econômicos. Por isso, é um voto-chave para a direita que busca ampliar sua coalizão sem redistribuir renda para baixo e prefere prometer status em seu lugar – a promessa de tornar a «América grande de novo» de Trump remete a um passado em que as hierarquias tradicionais não estavam ameaçadas. No entanto, o voto de status, por suas características de soma zero, deveria exacerbar a polarização, em uma região já muito polarizada e em um contexto econômico desfavorável. Não está claro qual será o impacto desse eixo de polarização na política latino-americana. Caso se sobreponha a outros eixos, poderia contribuir para uma situação de maior desgaste dos partidos políticos.

Esse processo poderia explicar as regularidades que observamos na eleição brasileira de 2018 de um modo similar à superposição de clivagens que forma a identificação partidária associada com a polarização nos Estados Unidos. A diferença é que o voto negativo nos eua costuma ocupar a identidade partidária alternativa. No entanto, com sistemas de partidos mais fragmentados e geralmente organizados ao redor de uma única identidade positiva ou negativa – por exemplo, petismo e antipetismo ou kirchnerismo e antikirchnerismo –, é possível que o resultado seja um pluralismo polarizado, que algumas vezes coincida com a dimensão de maior peso no comportamento eleitoral e outras vezes não. Em um pluralismo polarizado, mais uma dimensão se somaria ao comportamento eleitoral, mas isso não necessariamente estabilizaria o sistema de partidos; manteria sua fluidez. Para democracias que lutam por manter sua legitimidade, os conflitos por status podem aguçar a insatisfação com um sistema político em que a intensidade das preferências pode chegar a dificultar a obtenção de coalizões efetivas de políticas públicas em um contexto de poucos recursos. Nesse caso, não é a falta de cumprimento das promessas democráticas de desempenho econômico que debilita o sistema, e sim o êxito da expansão de direitos e a inclusão de novos grupos, assim como mudanças sociais além do controle político. Mais democracia, portanto, é também uma democracia mais exposta a novos desafios e com maiores problemas de legitimidade.


Nota: a versão original deste artigo foi publicada em espanhol em Nueva Sociedad Nº 282, 7-8/2019, disponível em ‹www.nuso.org›. Tradução de Eduardo Szklarz..

  • 1.

    G. O’Donnell: «Democracia delegativa» em Journal of Democracy en Español vol. 1, 7/2009.

  • 2.

    Sobre o peso dos diferentes determinantes do voto e os incentivos que geram na disputa eleitoral, v. Ernesto Calvo e M. V. Murillo: Non-Policy Politics: Richer Voters, Poorer Voters and the Diversification of Electoral Strategies, Cambridge UP, Cambridge, 2019.

  • 3.

    Para uma discussão sobre os estudos de voto econômico na América Latina e seu impacto na região desde as transições democráticas, com medidas reais de indicadores econômicos e opiniões de eleitores individuais, v. M. V. Murillo e Giancarlo Visconti: «Economic Performance and Incumbent Support in Latin America» em Electoral Studies Nº 25, 2017.

  • 4.

    Osvaldo do Amaral: «Do baixo clero à Presidência: os determinantes do voto em Jair Bolsonaro em 2018», 3/2019, mimeo.

  • 5.

    V., por exemplo, Steven Levitsky e Lucan A. Way : «Elecciones sin democracia. El surgimiento del autoritarismo competitivo» em Estudios Políticos Nº 24, 1-6/2004.

  • 6.

    N. Lustig: «Inequality in Latin America: Markets and Politics», apresentação final da 6ª Conferência Anual da Rede para o Estudo da Economia Política da América Latina (Repal), Tulane University, Nova Orleans, 13/5/2019. Lustig afirma que essa redução da desigualdade não inclui o 1% mais alto na distribuição que não é medido nas pesquisas, sugerindo que as pensões não contributivas, os programas de transferências monetárias, os aumentos do salário mínimo, a melhoria da renda no mercado de trabalho e a redução no aumento salarial para as pessoas de maior formação explicam a redução da desigualdade na região. Outros autores mencionam também o bônus demográfico gerado pela queda da natalidade, que tem impacto sobre o aumento da população economicamente ativa antes de seu envelhecimento e sobre a entrada das mulheres no mercado de trabalho.

  • 7.

    Ari Pedro Oro e Marcelo Tadvald: «Consideraciones sobre el campo evangélico brasileño» em Nueva Sociedad Nº 280, 1-2/2019, disponível em www.nuso.org.

  • 8.

    Pablo Semán: «¿Quiénes son? ¿Por qué crecen? ¿En qué creen? Pentecostalismo y política en América Latina» em Nueva Sociedad Nº 280, 1-2/2019, disponível em www.nuso.org.

  • 9.

    A. P. Oro e M. Tadvald: op. cit.

  • 10.

    Ver José Pérez Guadalupe e Sebastian Grundberger (eds.): Evangélicos y poder en América Latina, Instituto de Estudios Social Cristianos / Konrad-Adenauer-Stiftung, Lima, 2018.

  • 11.

    Mollie J. Cohen, Noam Lupu e Elizabeth J. Zechmeister (orgs.): The Political Culture of Democracy in the Americas, 2016/17: A Comparative Study of Democracy and Governance, Usaid / LAPOP / Americas Barometer, 8/2017.

  • 12.

    D. Samuels e C. Zucco: Partisans, Antipartisans, and Nonpartisans: Vote Behavior in Brazil, Cambridge up, Cambridge, 2018.

  • 13.

    M. V. Murillo: «La historicidad del pueblo y los límites del populismo» em Nueva Sociedad Nº 274, 3-4/2018, disponível em www.nuso.org.

  • 14.

    Agradeço a Cesar Zucco as informações sobre o antipetismo nessa eleição. Dados recentes sugerem que a condenação judicial de Lula não seguiu o devido processo, o que coloca em dúvida, portanto, a legitimidade de sua inabilitação e o resultado eleitoral de 2018. V., por exemplo, Naiara Galarraga Gortázar: «El descrédito del héroe anticorrupción» em El País, 16/6/2019.

  • 15.

    O. do Amaral: op. cit.

  • 16.

    Os evangélicos são cerca de um terço da população brasileira em 2018, segundo J.L. Pérez Guadalupe: op. cit., p. 74.

  • 17.

    N. Lustig: op. cit.

  • 18.

    Ver Noam Gidron e Peter Hall: «The Politics of Social Status: Economic and Cultural Roots of the Populist Right» em The British Journal of Sociology vol. 68 Nº 51, 2017; e Bram Spruyt, Gil Keppens e Filip Van Droogenbroeck: «Who Supports Populism and What Attracts People to It?» em Political Research Quarterly vol. 69 Nº 2, 2016.

  • 19.

    Ver Diana Mutz: «Status Threat, Not Economic Hardship, Explains the 2016 Presidential Vote» em PNAS vol. 115 Nº 19, 2018.

  • 20.

    Ver Daniela Campello e C. Zucco: «Presidential Success and the World Economy» em Journal of Politics vol. 78 Nº 2, 2016.

  • 21.

    Segundo dados do Projeto de Opinião Pública da América Latina (LAPOP), o apoio ao programa Bolsa- Família cai entre 2014 e 2016, sobretudo entre as pessoas de maior formação, mantendo-se mais alto entre os pobres e os afrodescendentes. M.J. Cohen, N. Lupu e E.J. Zechmeister (orgs.): op. cit.

  • 22.

    Por exemplo, a tentativa de enquadrar os esforços de ação afirmativa como «diversidade» tem o objetivo não apenas de incluir novos grupos, mas também de convencer os grupos dominantes que eles estarão melhor em um ambiente mais diverso.

  • 23.

    Amos Tversky e Daniel Kahneman: «Loss Aversion in Riskless Choice: A Reference-Dependent Model» em The Quarterly Journal of Economics vol. 106 Nº 4, 11/1991.

Este artículo es copia fiel del publicado en la revista Nueva Sociedad 2019, Dezembro 2019, ISSN: 0251-3552


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