Entrevista
septiembre 2023

Como o Brasil foi pensado e por que é tão excludente 

Entrevista com Carlos Vainer

Disponible en español

A história do planejamento regional e urbano do Brasil dá pistas sobre as persistentes desigualdades.

<p>Cómo fue pensado Brasil y por qué es tan excluyente</p>  Entrevista a Carlos Vainer
Foto: Joana França

Carlos Vainer tem trabalhado sobre desenvolvimento regional e urbano, políticas urbanas, movimentos sociais, metodologias e modelos de planejamento, em particular o planejamento alternativo ou «conflitual». É nesses temas que Vainer possui uma extensa trajetória, nas porosas fronteiras entre a academia, o ativismo e a militância, no campo das assessorias técnicas populares. A partir desse conhecimento prático, em que as epistemologias do sul têm um campo próspero e promissor, Vainer expõe ideias que revelam as contradições entre planejamento, sociedades e Estados periféricos, com especial ênfase no Brasil e seus vórtices de exclusão infinita. Vainer é professor titular e integrante do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (IPPUR/UFRJ), centro que dirigiu em três ocasiões e onde coordena o Laboratório Estado, Trabalho, Território e Natureza (ETTERN). Além disso, foi secretário executivo e presidente da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional do Brasil.

Minha primeira pergunta é relacionada à experiência brasileira em planejamento urbano e regional. Sabemos que ela é muito rica, vasta e complexa em termos de regulamentos, normas e desenvolvimento de infraestruturas (estradas, habitação, represas). Qual o balanço geral que o senhor poderia fazer desde o momento em que o Brasil foi redemocratizado na década de 1980? Que experiência foi acumulada? Que crítica poderia fazer?

Alguns aspectos dos modelos e práticas de planejamento territorial no Brasil estão relacionados com a história da sociedade e do Estado neste país. A sociedade brasileira é uma sociedade periférica dependente com certas particularidades, entre as quais se destacam a duração histórica da escravidão e o fato de que, após alcançar sua independência, o Estado não assumiu a forma republicana, e sim a de monarquia. Nesse sentido, se marcássemos a data do início daquilo que podemos reconhecer como «planejamento urbano e regional» no Brasil, seria o momento de transição do Império para a República.

O Estado imperial e monárquico teve algumas intervenções territoriais organizadas, como também ocorreu na Argentina e em outros países do Cone Sul, que consistiram na atração, no recrutamento, na seleção e na localização de imigrantes como colonos nas «terras livres» (que, a rigor, estavam ocupadas por povos indígenas). O objetivo dessa política imigratória era construir a sociedade branca nos trópicos, um desejo das elites brasileiras desde meados do século XIX. Não devemos esquecer que o Brasil foi o último país a acabar com a escravidão legal. Quando foi anunciado o fim do tráfico de escravos, em meados do século XIX, também foi definida uma política de imigração que tinha entre seus objetivos a substituição do trabalho escravo pelo trabalho «livre». A intenção dos teóricos e intelectuais que pensaram o Estado era a «regeneração do sangue brasileiro», que consideravam marcado por dois sangues «inferiores»: o indígena e o negro. Essas concepções racistas e eugenistas, que orientaram a política de imigração na segunda metade do século XIX, foram impulsionadas pelos interesses dos grandes proprietários de terras, particularmente os dos exportadores de café do estado de São Paulo. O que se buscava era a atração, a seleção e a implantação de trabalhadores europeus (isto é, brancos) no Brasil. Isto levou ao desenvolvimento de uma política territorial, ao mesmo tempo que se desenvolvia um processo de distribuição de imigrantes. Alguns foram localizados nos estados do Sul como agricultores familiares que produziriam alimentos, enquanto outra parte foi levada para as fazendas de café de São Paulo. Esse processo envolveu uma forte intervenção territorial. O Estado brasileiro teve que desenvolver instituições formais para organizar a divisão territorial dos imigrantes.

Embora existissem múltiplas dimensões que permitissem definir o Estado como «liberal», seu intervencionismo neste campo foi importante. Por um lado, verificava-se a intervenção na política imigratória – que promoveu uma distribuição territorial da força de trabalho – e, por outro, uma forte intervenção urbana que se expressou, centralmente, na reforma do porto do Rio de Janeiro nos anos 1905-1910. Essa seria a reforma do centro da cidade.

Tal reforma teve como modelo as intervenções de [Georges-Eugène] Haussmann em Paris. Também em Buenos Aires e outras cidades portuárias da América Latina, foram realizadas grandes reformas de portos que impactaram as estruturas e dinâmicas urbanas. No Rio de Janeiro, a reforma conhecida como Reforma Pereira Passos – em alusão ao nome do prefeito – transformou a face do centro da cidade, até então nitidamente negro e plebeu. Para além da transformação do porto, o objetivo era «limpar» o centro, acabar com os cortiços onde se concentravam os setores proletarizados.

A reforma urbana foi acompanhada pela reforma higienista, e nesse contexto realizou-se a primeira grande campanha de vacinação no Brasil contra a febre amarela. As casas das populações pobres foram invadidas por vacinadores, o que provocou a chamada «revolta da vacina». A rejeição à vacinação obrigatória também esteve associada à resistência negra contra os despejos. Vale destacar que o planejamento urbano desenvolvido naquele contexto foi marcado por uma profunda colonialidade, na medida em que a reforma de Haussmann foi importada de forma quase caricatural – a ponto de o Teatro Municipal construído na Avenida Central ser uma cópia do teatro Ópera de Paris. O nascimento do planejamento urbano trouxe em seu DNA a colonialidade das concepções de cidade e de arquitetura.

No que diz respeito à questão regional brasileira, ela emerge e é construída historicamente como fundamental para a região Nordeste. No início da colonização, o Nordeste era uma fonte de riqueza fundamental, pois ali se estabeleceram as primeiras grandes plantações de cana-de-açúcar, que tornaram o Brasil uma potência entre o período colonial e meados do século XVIII.

O Nordeste tornou-se a «zona-problema», sujeita às antigas oligarquias latifundiárias, num regime climático que muitas vezes provoca secas. O Nordeste foi fundamental na configuração do pacto oligárquico escravista e fundiário que proporcionou estabilidade ao império brasileiro e posteriormente à primeira república, que podemos classificar como uma república oligárquica latifundiária. Esse pacto oligárquico, escravista e latifundiário explica o fato original de que, após a independência, o Brasil foi a única ex-colônia sul-americana que alcançou uma unidade territorial nacional. No Brasil, a questão regional, a questão do Nordeste, é a da relação entre as oligarquias locais e as classes dominantes emergentes do centro-sul, que nascem com o café e depois com a industrialização progressiva do centro-sul, sobretudo em São Paulo.

Sob a ditadura de Getúlio Vargas, o Estado nacional lançará a chamada Marcha para Oeste. Vargas tinha uma visão posteriormente utilizada na ditadura militar, que deu continuidade à ocupação da Amazônia: a ideia de que o imperialismo brasileiro se faz dentro de suas próprias fronteiras, porque temos territórios sem povo, então é preciso criar o povo para ocupar o território.

As concepções territoriais do Estado brasileiro definirão os espaços «vazios» do Ocidente e da Amazônia como espaços que lhe permitiriam receber populações do Nordeste, e desta forma reduzir as pressões da população camponesa sobre o monopólio oligárquico latifundiário da terra.

O Nordeste e a Amazônia, em diferentes momentos e com diferentes registros, serão os focos de atenção das experiências de intervenções estatais que rotulamos como planejamento regional.

Sim. Voltemos à questão urbana e ao planejamento urbano. Se formos um pouco mais longe, com o início da industrialização, a questão urbana começa a aparecer na forma de uma crise na habitação da classe trabalhadora, especialmente em São Paulo e no Rio de Janeiro. Em São Paulo, a questão da moradia dos trabalhadores surge como em qualquer cidade industrial, e as primeiras soluções também são importadas: as vilas operárias, company towns, onde o trabalhador está vinculado à fábrica e à moradia. Creio que isso também aconteceu em Buenos Aires e em outras cidades industriais argentinas, não? É um modelo importado, que no Brasil chamamos de «vila operária».

Isto ganhou uma dimensão mais ampla com o avanço da industrialização e, na década de 1930, sob o governo Vargas, ocorrem algumas intervenções de habitação social. Têm início exercícios de planejamento urbano tanto em São Paulo como no Rio de Janeiro. No caso do Rio, é amplamente citado e conhecido o plano desenvolvido pelo urbanista grego Konstantinos Doxiadis, o primeiro plano integral para a cidade, pensando inclusive em diversas estradas que a atravessariam numa projeção futurista.

Foi uma transformação da cidade no sentido do «rodoviarismo» (expansão das rodovias). Isto foi reforçado a partir da década de 1960 com o surgimento de uma indústria automobilística local que promoverá essa perspectiva «rodoviarista» do planejamento urbano.

No que diz respeito ao plano regional, há um marco na Constituição de 1946, após o fim da ditadura Vargas, que dará origem a dois órgãos federais que deverão realizar o planejamento regional: a Superintendência do Plano de Valorização da Amazônia e a Comissão do Vale do Rio São Francisco. Em ambos os casos, pode-se identificar a importação de modelos de países centrais, neste caso dos Estados Unidos, e não mais da Europa. O modelo foi o da Tennessee Valley Authority (TVA). Um dos elementos centrais do New Deal de Roosevelt foi a implementação da TVA como modelo de intervenção centralizada do governo federal que atua no território nacional. Portanto, uma intervenção federal contra a autonomia dos estados, modelizadora, que implementará barragens hidrelétricas e o controle do rio. Esse modelo da TVA chegará ao Brasil. A Constituição de 1946 determinará que 1% do orçamento federal deve ir para a Superintendência de São Francisco e 1% para a Superintendência do Vale do Rio Amazonas.

Um marco do planejamento regional brasileiro foi a constituição do Grupo de Trabalho para o Desenvolvimento do Nordeste, sob a direção de Celso Furtado. Este grupo produzirá um diagnóstico admirável do subdesenvolvimento do Nordeste. Em poucas palavras, posso dizer que Furtado transplantou o modelo da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal) para a realidade interna do país: o Nordeste seria a periferia subdesenvolvida do Sudeste central e industrial. O caminho para superar o subdesenvolvimento do Nordeste, consequentemente, seria a industrialização. A solução da Cepal sempre foi a industrialização. Se o Brasil tivesse que se industrializar para superar seu subdesenvolvimento em relação aos países desenvolvidos, mutatis mutandis, o Nordeste teria que se industrializar para superar o subdesenvolvimento em relação ao Sudeste.

O Grupo de Trabalho esteve na origem da Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE), um órgão muito importante que buscava redefinir o pacto oligárquico entre os grupos dominantes do Sul/Sudeste e o grupo dominante nordestino.

Sob a inspiração do economista argentino Raúl Prébisch, que dirigiu a Cepal desde seu nascimento, em 1949, até 1963, o pensamento da Cepal tinha como característica, hoje se reconhece, um esforço para pensar a América Latina fora dos cânones do pensamento econômico dominante na época, que via o subdesenvolvimento como uma etapa natural e inevitável de todos os países.

Contudo, esse esforço de pensamento autônomo não foi suficiente para elaborar uma política ou plano regional original. A SUDENE abandona o modelo TVA para adotar o modelo da italiana Cassa per il Mezzogiorno. Segundo esse modelo, a industrialização da região atrasada (Mezzogiorno italiano, Nordeste brasileiro) seria alcançada por meio de políticas que subsidiassem investimentos de capital do Sudeste.

Se olharmos para as cidades, devemos mencionar a construção de Brasília como nova capital. Brasília pode ser considerada a experiência mais completa da aplicação dos conceitos do urbanismo modernista – que teve em Le Corbusier seu expoente mais completo e brilhante.

A trajetória da importação de modelos do centro e sua transposição para o Brasil continua, no que diz respeito ao planejamento regional na ditadura militar, com a adoção dos polos de desenvolvimento de François Perroux.

Todo o processo de ocupação e implantação de grandes complexos energético-minerais na Amazônia será orientado e justificado pelas teorias perrouxianas. Em relação às cidades, o Banco Mundial desempenha um papel importante ao difundir no Brasil e em toda a América Latina as políticas de apoio às cidades médias, baseadas em um diagnóstico que concebia as metrópoles como consequência e causa dos problemas urbanos (favelas, pobreza urbana, etc.).

A ditadura militar formulou e procurou concretizar um grande projeto territorial, que tinha como locus e agente principal o Ministério do Interior. Em muitas repúblicas ibero-americanas e na Europa, o Ministério do Interior é quem controla a Polícia. Para nós foi, sob a ditadura, o ministério do território. A ele estavam subordinadas todas as superintendências regionais (Amazônia, Nordeste, Sudeste, Sul e Centro-Oeste), o Conselho Nacional de Desenvolvimento Urbano e os órgãos envolvidos com o desenvolvimento dos municípios.

Na sua pretensão tecnocrática, eles sonhavam com um planejamento territorial – regional, urbano – controlado a partir do centro do poder, que deveria assegurar uma distribuição racional das populações daquele território, seguindo critérios de produtividade, de optimização demográfica e, claro, de controle político. Não se deve esquecer que os governadores dos estados e os prefeitos das capitais dos estados e de outras cidades importantes eram nomeados diretamente pelo poder central. Chamo isso de planejamento centralista, tecnocrático e autoritário.

É justamente o planejamento centralista, tecnocrata e autoritário que está no foco da crítica dos movimentos e das forças políticas que conduzirão o processo de redemocratização. Qual é a principal reivindicação dos movimentos democráticos? Democratização queria dizer descentralização, participação e preocupação social.

De forma curiosa e paradoxal, estas foram também as bandeiras do neoliberalismo emergente. A tradução neoliberal do slogan pode ser entendida: descentralizar significa reduzir a intervenção do Estado central, desregular. Participação significa redução do poder dos tecnocratas em favor dos agentes de mercado. 

O confronto das propostas das forças democráticas e neoliberais será o centro da luta política urbana e regional nos mais de 30 anos desde a redemocratização. Não há dúvida de que os neoliberais foram quase sempre vitoriosos, tornando o planejamento urbano um acessório do desenvolvimento do mercado. Se a função social da propriedade urbana está inscrita na Constituição, na história dos últimos 30 anos das nossas cidades estão inscritas a intocabilidade da propriedade privada, a subordinação do espaço urbano à lógica e à dinâmica do capital privado.

Se olharmos apenas para o âmbito regional, veremos que o Brasil foi, desde os tempos da ditadura militar, um espaço dominado pelo que David Harvey chamou de «acumulação por despossessão», em que territórios e populações são submetidos a grandes projetos de investimento energético, de mineração e do agronegócio.

Por outro lado, quando conversamos sobre planejamento, o caminho percorrido costuma centrar-se no planejamento concebido a partir dos aparatos do Estado. Vimos claramente a influência dos EUA, da França, da Itália, dos bancos multilaterais de crédito e da política urbana e regional no Brasil. O senhor poderia abordar essa questão do planejamento conflitual, que é o planejamento construído a partir de baixo? Que experiência existe? Quando o senhor considera que ela surge? Teria surgido como reação ao planejamento do Estado?

Eu diria que até 2010, até o final do segundo governo de Luiz Inácio Lula da Silva, o conjunto dos movimentos urbanos e regionais pensava que era preciso conquistar o Estado. Portanto, o foco central desses movimentos era a luta por novos dispositivos legais/institucionais e a conquista de espaços no aparato do Estado, para implementar a reforma urbana que seria o direito à moradia, ao transporte e ao saneamento.

Ou seja, a reforma urbana seria uma obra do Estado que democratizaria a cidade e atenderia às demandas populares. Então, o foco é o Estado. O problema é que desde o início dos anos 2000 o que se vê nas cidades é o avanço do projeto neoliberal. Ou seja, a submissão das cidades ao mercado, aos grandes projetos de investimentos e às grandes operações urbanas, ao planejamento estratégico competitivo, empresarial, inclusive em muitas cidades administradas pelo Partido dos Trabalhadores (PT).

Após a redemocratização, houve experiências inovadoras que ampliaram a democracia urbana, em particular os orçamentos participativos. Mas, progressivamente, essas dinâmicas se fragilizam, são abandonadas – em alguns casos porque os movimentos populares acreditam que através do Estado alcançarão seus objetivos, em outros casos porque os movimentos são derrotados pelos neoliberais.

Até conquistas do período de redemocratização são ameaçadas. Se até 2010, 2012, reconhecia-se que as populações estabelecidas nos assentamentos seriam inamovíveis, isso começa a mudar. Há um crescimento nos despejos forçados. Isso fica fortemente marcado no período dos megaeventos esportivos, com apoio do governo federal de Lula e inclusive nos governos estaduais e municipais do PT.

Este será o principal motor de um descrédito progressivo de que o caminho mais adequado para os setores populares defenderem os seus interesses é o Estado, porque este se torna abertamente parceiro do capital financeiro imobiliário.

Em 2013, isto explica parcialmente por que, sob o governo de Dilma Rousseff, milhões de pessoas se mobilizaram num grande levantamento popular, no qual a luta contra os despejos forçados desempenhou um papel relevante. Naquele momento surgiram também experiências que chamo de «planejamento conflitual», experiências em que grupos que estão sob ameaça de serem deslocados ou grupos que ocupam terras começam a planejar. Um nome mais genérico seria autogestão territorial. Pode ser a autogestão de um prédio abandonado ocupado por um movimento, pode ser a autogestão de um lote ocupado. Experiências como a comunidade da Vila Autódromo no Rio de Janeiro, ou Nuevo Alberdi em Rosário.

Há outro fator importante: o surgimento progressivo, no interior de alguns grupos universitários, de conexões com movimentos, sobretudo em programas e cursos de arquitetura, urbanismo e planejamento. Ali haverá um saber técnico, uma disponibilidade política que, em diálogo com os movimentos, enriquecerá a possibilidade de concretizar esses planos alternativos, populares, etc. Essa dinâmica impulsiona regulamentações sobre assessorias técnicas. E isso progressivamente se transforma numa alternativa para estudantes de arquitetura, que podem se tornar assessores técnicos de um movimento de ocupação para fazer o plano da edificação, uma opção de trabalho alternativa aos escritórios de arquitetura empresariais.

E neste contexto atual do governo Lula, o senhor considera que é possível haver uma política que financie, que institua essa combinação entre o saber técnico ligado ao planejamento conflitual, e as instituições, o financiamento, a continuidade?

Isso é algo difícil de responder. Em primeiro lugar, o governo é formado por uma coalizão que incorpora setores abertamente neoliberais e de direita, o que marca uma diferença em relação às administrações anteriores do PT. Em segundo lugar, mesmo dentro do PT, os setores mais influentes na máquina político-partidária estão mais interessados nos aparatos de Estado do que na mobilização e organização das bases populares. Ainda não está muito claro como serão arbitradas as tensões que possam surgir entre os interesses e ideias da esquerda institucional, dos partidos de direita não bolsonaristas e das esquerdas menos vinculadas ao aparato de Estado.

O que sabemos agora é que a direita está nas ruas. Existem muitos conflitos que ainda não foram esclarecidos para que saibamos muito bem como se desenvolvem. Voltando à questão do planejamento conflitual e das tensões de uma dinâmica autogerida do território, acredito que estas não vão desaparecer. Será uma força de pressão contra a estrutura de governo.

Tenho uma última pergunta: um risco quando se chega ao Estado é representar apenas os que estão organizados e não saber o que acontece na base social que não está organizada. Agora, há mais um conflito no Brasil que não se resolve com uma eleição para presidente: o surgimento e a consolidação de milícias (paramilitares) nos territórios, na periferia do Rio de Janeiro e em outras cidades. Nesse sentido, que papel o senhor acha que o medo da organização desempenha no fato de existir uma milícia tão bem organizada e que controla tantos recursos estatais, e não apenas recursos do narcotráfico?

A esquerda brasileira – e refiro-me tanto à esquerda governamental (os setores cuja ação se dá em espaços institucionais) como à esquerda social – carece de experiências de enfrentamento com a extrema direita militante. No Brasil, a extrema direita sempre teve níveis de representação, mas não foi capaz de desenvolver uma militância ativa e mobilizadora que atravessasse vários setores sociais. Isso mudou agora.

Neste sentido, não está muito claro como travar esse combate. Em 1964, existiam pequenos grupos fascistas, mas eram irrelevantes frente à repressão do Estado. Por outro lado, estes grupos não tentavam conquistar as bases da esquerda, mas sim constrangê-las. O que vemos agora é uma direita militante radicalizada cujo nível de organicidade não conhecemos, embora saibamos que existem dinâmicas estruturadas a partir de cima. Por um lado, então, há desconhecimento dessas forças. Por outro, não há uma história de confronto com elas. A luta está aberta, e tenho a convicção de que somente a mobilização, a organização e a luta de base poderão oferecer uma resistência efetiva a essa nova e aguerrida direita e, quem sabe, abrir espaços para novas conquistas.


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