Coyuntura
NUSO Nº Agosto 2016

Brasil-Venezuela: e agora, o que fazemos?

Brasil-Venezuela: e agora, o que fazemos?

A crise no Brasil e na Venezuela apresenta diversos problemas para as esquerdas e as forças populares latino-americanas. A coincidência temporal de ambas as ocorrências leva à busca de um eixo comum para avaliá-las, sob o risco de apresentar sérias inconsistências argumentativas – o que, vale dizer, não desanima alguns analistas das esquerdas «anti-imperialistas» do continente.

No primeiro caso, assistimos, dito no português inventado dos hispanofalantes, à aberração «mais grande do mundo», em que um grupo de parlamentares corruptos, reacionários e oportunistas protagonizou um impeachment aproveitando a maioria opositora na Câmara dos Deputados e a enorme rejeição contra a corrupção.

Tratou-se de uma conspiração política de grandes dimensões, montada por agentes públicos como Eduardo Cunha – então presidente da Câmara e afastado logo após ter colocado em votação o processo político por ele impulsionado –, acusados de diversos atos de corrupção e outros crimes. Paradoxalmente, não suspenderam Dilma Rousseff por corrupção, mas sim com base na acusação de maquiagem do déficit orçamentário. «Impeachment sem crime é golpe», denunciou sem sucesso o Partido dos Trabalhadores (pt). E o já renunciado ministro Romero Jucá admite, em uma conversa interceptada, que a suspensão de Dilma buscava frear as investigações judiciais que envolviam parte da elite parlamentar.

Mas essa conspiração só foi possível graças a um sistema político (proporcional de lista aberta) que destrói a influência dos partidos e fragmenta de tal forma o sistema parlamentar que impede a constituição de aspirações coletivas transformadoras. Com isso, Dilma, que foi eleita com 41,5% dos votos, conta com somente 15% dos deputados, em uma Câmara composta em sua grande maioria por homens e brancos. Ao mesmo tempo, os deputados da denominada «bancada da bala», juntamente com ruralistas e evangélicos, compõem uma direita sobrerrepresentada graças ao sistema eleitoral vigente no país. Como destacou o cientista político Germán Lodola, não é possível compreender a política brasileira a partir dos modelos predominantes em outros países da região: no Brasil, «os presidentes são sempre minoritários, o que exige manter um governo de coalizão». Nesse contexto, grupos de poder como os ruralistas, por meio de sua bancada e controle da Comissão de Agricultura, são capazes de frear qualquer mínima tentativa de reforma agrária, enquanto os evangélicos constituem um grupo transversal aos partidos.

Para explicar a queda de Dilma, o melhor é manter-se distante dos memes que exibem a foto de uma Dilma guerrilheira como vítima de um «golpe»: não só seu governo nomeou a produtora de soja Kátia Abreu para assumir o Ministério da Agricultura e o neoliberal Joaquim Levy para a pasta da Fazenda, como também, desde o período Lula, o pt vem se tornando uma força cada vez mais desmobilizada. Por outro lado, também não parecem suficientes as análises de cientistas políticos mais neutros.

É certo que, como já assinalado, o problema central de Dilma é que foi destruída sua coalizão de governo com o Partido do Movimento Democrático Brasileiro (pmdb), uma força basicamente oportunista da qual provém o vice-presidente Michel Temer, agora à frente do Executivo Federal. O novo governo, de características claramente conservadoras, construiu sua própria base de apoio repartindo Ministérios entre todos os partidos de oposição situados à centro-direita e direita. E isso ocorre no contexto de uma enorme mobilização das forças «anti-pt», que incluem rejeições classistas e antipopulares aos avanços sociais – materiais e simbólicos – da longa década de governo de centro-esquerda e de forte crise econômica. O pt foi derrotado não apenas na arena institucional, mas também – e de forma mais preocupante – nas ruas. E tudo isso ocorreu no contexto de uma espécie de «Operação Mãos Limpas» à brasileira, que repetiu problemas da experiência italiana e acrescentou contornos e elementos tropicais. Hoje, vários poderosos empresários estão atrás das grades, mas, no plano político, quem pagou o preço mais alto pela «Lava Jato» foi sem dúvida o pt.

Paralelamente a essa crise, assistimos ao agravamento da situação na Venezuela. Lá, a oposição conseguiu, em 6 de dezembro passado, derrotar pela primeira vez o (pós-)chavismo nas urnas, e de forma contundente. O choque de poderes estava anunciado. Ainda que os governistas controlem o Poder Executivo, a Mesa da Unidade Democrática (mud) possui maioria qualificada na Assembleia Nacional e, a partir desse espaço institucional legítimo, busca a forma de destituir Maduro em meio a uma crise com dimensões de colapso social de pós-guerra.

Durante a era Chávez, havia sido instalada uma barreira entre a maioria popular chavista e a oposição, barreira essa que impedia a ocorrência do tradicional voto de castigo (quando as coisas vão mal, vota-se pela oposição realmente existente), já que, para essas maiorias, os opositores eram «contrarrevolucionários» e seus líderes, tão somente «meninos ricos» com rostos bonitos.

Mas a crise derrubou essas muralhas, e o voto contra o ex-motorista do Metrobús e herdeiro de Chávez fortaleceu uma oposição que combina figuras novas (como o preso Leopoldo López) com personagens da velha política, como Henry Ramos Allup, novo presidente da Assembleia Nacional e membro da tradicional Ação Democrática (ad). Sintomaticamente, tanto López como Ramos Allup se definem como «social-democratas», e o segundo atua como vice-presidente da Internacional Socialista (um organismo que enfrenta hoje diversos questionamentos internos e perda de peso em âmbito mundial). Em um cenário de unidade formal e fortes tensões em seu interior, Henrique Capriles, ainda que não se descuide da pressão das ruas, trata de instalar sua estratégia de apostar principalmente nas urnas, com a certeza de que a polarização da população acabará beneficiando Maduro. Recentemente, Capriles declarou que se opõe ao impeachment de Dilma e que, tanto no Brasil como na Venezuela, a saída para a crise deve passar pelas eleições; de fato, isso é o que propõe o pt, em uma versão do século xxi do movimento das «Diretas Já», empreendido nos últimos anos da ditadura brasileira.

Nesse contexto, a oposição venezuelana aposta em conseguir chegar a uma revogação do mandato presidencial antes de 10 de janeiro de 2017: a lei estabelece que, se Maduro for retirado do cargo previamente a essa data, devem ser convocadas novas eleições. Mas se for ultrapassado o prazo de quatro anos do mandato atual (contado desde que Chávez assumiu seu último mandato, continuado por Maduro após este vencer por uma estreita margem em 2013), assumiria o vice-presidente Aristóbulo Istúriz. Por isso, a mud pressiona para que o órgão eleitoral verifique rapidamente as assinaturas que reuniu para poder cumprir o primeiro passo rumo à consulta popular. E é pelo mesmo motivo que o governo demonstra muito pouca pressa para levar adiante essa tarefa.

A vocação democrática da oposição venezuelana é questionável, o que pode ser demonstrado pelo frustrado golpe de 2002. Mas, ao mesmo tempo, o referendo revogatório é um instituto constitucional – não da Constituição «moribunda» sobre a qual jurou Chávez no início de 1999, mas da Carta Magna bolivariana que «refundou» a Venezuela. Para o chavismo, trata-se de uma questão problemática: se o referendo for realizado em 2016, suas bases deverão sair em campanha pelo presidente, em um contexto de decepção política que invade as forças bolivarianas e da existência de um «chavismo não madurista»; e se a consulta ocorrer posteriormente, isso poderia servir para reorientar o processo com Istúriz à frente… Mas haveria ainda margem para isso? Por diversas vezes, pareceu que o chavismo estava acabado, mas essa sobrevida continua.

No entanto, os níveis de crise – econômica, de segurança, de desorganização estatal, de corrupção – parecem levar o país a um ponto sem retorno, com riscos de violência política potencializados pela quantidade de armas que circulam em seu território. E, nesse cenário, a mera denúncia de elementos desestabilizadores com apoio externo não é capaz de explicar a situação atual, basicamente porque, em grande parte, os atos especulativos (contrabando de gasolina para a Colômbia e enriquecimento graças às diferentes taxas de câmbio) são realizados por setores da própria situação, sejam eles civis ou militares. Os saques, a crise elétrica que praticamente paralisa o Estado e a insegurança galopante fazem com que «socialismo» (na realidade, uma forma de neorrentismo socialista) volte a ser relacionado não só com filas e desabastecimento, mas também com uma crise sistêmica das bases do regime bolivariano. Como destacou Víctor Álvarez, ex-ministro de Indústrias Básicas e Mineração da Venezuela durante o governo Chávez:

Em 2010, o presidente Chávez celebrou a contração de 5,8% do pib como o ‘velório do capitalismo’. Àqueles que consideraram aquela queda o ‘fracasso do governo’, Chávez respondeu afirmando que ‘a economia que está ruindo na Venezuela é a economia capitalista’. Mas destruir a economia capitalista sem construir simultaneamente uma eficiente economia socialista acabou sendo o atalho perfeito para afundar o país nesse círculo vicioso de escassez, monopolização, especulação e inflação que atormenta toda a população. Uma verdadeira revolução é um processo de destruição criativa: destrói o velho e inferior, e o substitui pelo novo e superior. Mas as pessoas que hoje sofrem com os estragos da escassez, especulação e inflação chegaram à conclusão de que ‘se esta calamidade é o socialismo, prefiro continuar com o capitalismo’. Passará muito tempo para que a população humilde volte a acreditar no socialismo como via para chegar a uma sociedade livre de desemprego, pobreza e exclusão social. Esse mesmo fenômeno já ocorreu nos países do chamado socialismo do século xx, mas a vanguarda chavista não aprendeu essa lição.

Além disso, a tendência de Maduro de governar por meio de instrumentos de exceção (e discursos nos quais assinala que «a Assembleia Nacional da Venezuela perdeu vigor político. É uma questão de tempo para que ela desapareça») projeta um cenário autogolpista. Esses desvios, somados a manifestações dignas de gângsteres no interior do próprio regime, colocam em risco toda a esquerda continental. Um golpe como o que significou a derrota sandinista em 1990 (movimento que passou por uma forte decadência moral, mas que efetivamente enfrentou uma brutal agressão imperial) é hoje perfeitamente possível, e ele não será enfrentado com sucesso restringindo-se linhas discursivas, tampouco com atuações épicas e exageradas.

Hoje, a direita latino-americana denuncia a Venezuela e apoia a conspiração antidemocrática brasileira, e a esquerda «anti-imperialista» atua como um espelho invertido. Este é, sem dúvida, um difícil cenário para as esquerdas do continente, em um clima de fim de ciclo cada vez mais evidente.

Não se trata de buscar equilíbrios ideais, tampouco de ser «belas almas» ou radicais de salão, mas sim de pensar de forma honesta (embora não menos radical) que tipos de instituição a mudança social requer e pensar seriamente a democracia (sem jogar o bebê democrático na água suja da bacia liberal). De maneira geral, as formas de «democracia popular direta» se transformaram em instrumentos pouco democráticos, sendo a Yamahiriya líbia a combinação mais grotesca de despotismo personalista sob um verniz de poder popular. Mas, além disso, a crise se relaciona com as formas de construção política – é perceptível a escassa capacidade de convocação do pt diante da suspensão de Dilma ou a desorientação do kirchnerismo após sua saída do governo argentino – e com a corrupção, seja para construir maiorias e comprar coalizões (Brasil) ou em sua versão mais caótica (Venezuela).

Em última análise, as perspectivas de radicalização da democracia promovem isso (sua radicalização), e não a transformação dos processos de mudança, sob formas de regime que sufocam o debate interno, alinham militarmente os militantes e recompensam mais as lealdades oportunistas do que a eficiência e a honestidade intelectual, em um simulacro «leninista» que não só poderia ser indesejável, mas que basicamente não é eficaz diante das «novas direitas» cada vez mais fortes na região. Depois, só poderemos nos contentar com a consoladora «épica da derrota».

Este artículo es copia fiel del publicado en la revista Nueva Sociedad , Agosto 2016, ISSN: 0251-3552


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