Tema central
NUSO Nº Outubro 2022

O MAS boliviano já não dança só ao ritmo de Evo

A vitória de Luis Arce Catacora em 2020, após a destituição de Evo Morales depois de três mandatos presidenciais, propiciou uma situação inédita para o Movimento ao Socialismo (mas): pela primeira vez, o líder do governo não é também o líder do partido. Ainda que mantenha um forte domínio do mas, Evo Morales já não controla o Estado, e suas tensões com Arce e o vice-presidente David Choquehuanca são cada vez mais abertas.

O MAS boliviano já não dança só ao ritmo de Evo

Em 29 de março de 2022, o Movimento ao Socialismo (mas) comemorou na cidade mineira de Oruro o 27o aniversário de sua fundação. Estiveram presentes seus três principais dirigentes: Evo Morales, considerado o «líder indiscutível» do movimento; Luis Arce, presidente do Estado e ex-ministro da Economia de Morales, autor do modelo econômico vigente no país desde 2006; e David Choquehuanca, atual vice-presidente e ex-chanceler de Morales, de quem está distanciado desde 2017. O evento ocorreu sem percalços. Não fosse apenas pela insistência dos discursos na necessidade da «unidade», ninguém notaria os sérios problemas pelos quais passa o partido governista da Bolívia.

Em seu discurso, Morales destacou com razão que seu movimento era «único», e não só por se constituir como a organização direta de uma grande variedade de sindicatos de camponeses e trabalhadores, aspecto por ele mencionado. A singularidade do partido se deve também ao fato de ter representado por quase 27 anos a unidade da esquerda boliviana, um sonho impossível de concretizar para essa corrente durante todo o século xx. Mas a condição do mas de frente única da esquerda, possível graças a um conjunto muito particular e irrepetível de circunstâncias históricas, está hoje em questão. Cada um dos personagens que se sentaram juntos no palco do evento de aniversário representava uma ala partidária diferente.

Desde que voltou ao país em novembro de 2020, depois de seu exílio no México e na Argentina, Morales controla ferreamente o aparato partidário. Arce foi eleito presidente pouco antes com surpreendentes 55% dos votos e formou um governo que, embora tenha implicado uma distribuição do poder entre as diferentes organizações e blocos do mas, possui um núcleo «arcista» e incorporou apenas tangencialmente os principais colaboradores de Morales no passado, o «entorno» que controlou as rédeas do poder entre 2006 e 2019.

No interior do mas, as demandas por renovação se sobrepõem a disputas de facções que têm dificultado a liderança de Morales. O principal defensor dessa renovação é, no entanto, um membro da velha guarda e considerado por muito tempo uma das pessoas mais próximas e sucessor natural do ex-presidente: David Choquehuanca. No discurso após seu juramento como vice-presidente, em 8 de novembro de 2020, Choquehuanca disse que o poder deveria «fluir». Além disso, ele incentiva constantemente os jovens a assumirem o bastão. Choquehuanca é a referência de alguns dirigentes intermediários que, por uma razão ou outra, se distanciaram do mas ou se sentem afastados por sua direção nacional, dominada por Morales. A defesa da renovação, portanto, o beneficia na mesma medida que prejudica o ex-presidente.

Choquehuanca confrontou Morales após o referendo de 2016, que deveria habilitar o então presidente para uma terceira reeleição. O mas perdeu, e o atual vice-presidente começou a se movimentar como seu possível substituto. Como resposta, Morales o retirou do comando do Ministério das Relações Exteriores em 2017; posteriormente, ele foi «exilado» em um cargo diplomático secundário, e todos os seus colaboradores diretos foram para a «geladeira». Morales acabou obtendo uma controversa habilitação para disputar um quarto mandato presidencial por meio de uma sentença do Tribunal Constitucional.

A reação contra Choquehuanca ocorreu porque o grupo «evista» não poderia permitir o surgimento de um novo presidente e, portanto, um novo grupo de poder. As agrupações políticas na Bolívia possuem uma lógica fundamentalmente caudilhista. Como a queda de um líder implica a saída do poder de todo um grupo, este é fortemente motivado a impedi-la. O inverso também é verdadeiro, ou seja, o surgimento de um novo dirigente gera a ascensão de um novo grupo, como ocorreu após o juramento de Arce como presidente. E isso aconteceu mesmo com Arce tendo sido próximo a Morales e se tornado candidato à Presidência por uma decisão pessoal deste. O candidato escolhido na Bolívia pelo mas para as eleições de 2020 era Choquehuanca. Morales e o núcleo de exilados na Argentina priorizaram Arce por acreditarem ser um melhor nome para o momento de crise econômica vivido no país e porque não desejavam que um rival – além do mais, indígena – ocupasse o posto principal. Choquehuanca perdeu assim a oportunidade de ser presidente do país, o que obviamente o afastou ainda mais de Morales. O ex-presidente atua de forma extremamente comedida, e isso lhe permitiu sobreviver aos maus momentos, mas tem muitas razões para tentar minar a influência de seu antigo amigo.

No ato de comemoração do aniversário do partido, Morales e Choquehuanca se cumprimentaram friamente, e a imprensa seguiu com atenção esse encontro, pois é muito raro que ambos se apresentem juntos em público. Em contraste, Arce e o ex-presidente se abraçaram e trocaram sorrisos. Os atritos de seus grupos ainda não se tornaram tão pessoais (ou ao menos tão publicamente pessoais), embora se saiba que Morales considera, em âmbito privado, o governo ineficiente. No entanto, poucos acreditam que isso vá continuar por muito tempo.

Causas das fissuras

«O principal inimigo do mas é a direita que busca nos confrontar com traições, ambições e mentiras. Nossa obrigação é preservar a unidade», tuitou Morales em 25 de março. Dias antes, um comunicado do governo de Arce instava os governistas bolivianos a resistirem às «táticas não convencionais [que], utilizando todo o poderio da guerra multidimensional, [esperam] implodir as forças internas de nosso Processo de Mudança»1.

Essas declarações permitem inferir tanto o medo da cisão no mas – e, portanto, admitir a possibilidade de sua divisão – como a tendência a atribuir sua responsabilidade a um terceiro: a direita boliviana e suas «táticas não convencionais» de guerra. Para um observador neutro, as causas dos problemas do mas são mais internas, embora isso não signifique que a oposição não acompanhe com especial interesse a briga entre diferentes facções, já que o futuro do partido depende de seus desdobramentos. Também é verdade que os principais meios de comunicação, que adotam uma linha anti-mas, expõem em grandes manchetes qualquer atrito ou desencontro entre dirigentes de esquerda. Depois da comemoração do aniversário do mas, Página Siete, o jornal mais abertamente opositor ao partido de esquerda, noticiou: «Apesar das fraturas, o mas se esforça por mostrar unidade». Nos últimos meses, a política boliviana tem consistido quase unicamente nas vicissitudes da disputa governista.Mas quais são as causas dessa disputa? Primeiro, falta uma forte institucionalidade ao mas, assim como a todos os partidos políticos bolivianos. Ainda que na Bolívia vários partidos tenham sido ideológicos e tido uma certa vida interna, sua principal tendência foi sempre a personalista, e isso se relaciona com a forma predominante das relações sociais no país, não totalmente modernas e mediadas pelos resquícios da colonização. O Estado boliviano é fraco, sempre foi cooptado e manipulado por diferentes setores sociais e nunca pôde se impor totalmente sobre a sociedade nem abarcar todo o território nacional. Sendo assim, ninguém pode ter certeza de que as normas e os direitos serão aplicados de forma objetiva e permanente, uma condição imprescindível para o pleno funcionamento das instituições.No final do século xix, Eliodoro Camacho, fundador do Partido Liberal, elogiava sua criação como o «primeiro partido impessoal» do país, mas não foi bem assim. Logo depois que chegou ao poder, a legenda se dividiu em facções segundo os diferentes presidentes que, em sua representação, se sucediam no poder. Quando não existem respaldos seguros para a institucionalidade e as instituições são frágeis, somente os indivíduos esclarecidos podem proporcionar a ordem e a certeza necessárias. O dirigente se torna assim um «caudilho». Geralmente um conceito mal definido, o caudilhismo tem uma longa tradição literária na América Latina. René Zavaleta, o mais célebre sociólogo marxista boliviano, chegou a dizer que, na Bolívia, «a forma de organização das massas é o caudilho»2.

Apesar de reunir uma ampla rede de sindicatos e organizações sociais de todo o país, o mas se formou em torno da figura de Evo Morales, o que exigiu o distanciamento de outros aspirantes à máxima direção, como o dirigente camponês Alejo Véliz ou Román Loayza, outro dos fundadores do «Instrumento Político», como o partido também é chamado. No contexto das ameaças de divisão, Morales voltou a se referir recentemente a esses dirigentes que optaram por sair e fazer parte de outras forças políticas: «Nosso primeiro candidato a presidente era Alejo Véliz, mas ele apoiou em 2002 [a candidatura presidencial de] Manfred [Reyes Villa e se tornou seu] deputado. Essa foi a primeira traição, mas não gerou divisão». E logo enfatizou: «Eu diria que o segundo traidor foi Román Loayza, que era candidato a presidente por outro partido, mas tampouco nos dividiu»3.

A subordinação do partido a seu chefe funcionou muito bem (nenhum dissidente conseguiu dividir o mas, como lembrou Morales) na medida em que ele tinha uma enorme popularidade eleitoral e que sua presença na cédula assegurava a vitória a seus seguidores. Essa subordinação também foi bem-sucedida enquanto o governo de Morales contava com muitos recursos econômicos, o que lhe permitia ampliar constantemente os canais de acesso ao Estado e manter o vínculo clientelista com grandes massas de seguidores.

Como destacaram há vários anos Pablo Stefanoni e Hervé Do Alto, a «liga» do mas tem sido «a perspectiva de acesso ao Estado»4, perspectiva descoberta graças à invenção de um «instrumento político» que permitia a participação eleitoral dos pobres e indígenas. Morales disse há pouco tempo que nem ele acreditava no futuro do mas até 2002, ano em que ficou inesperadamente em segundo lugar nas eleições. O motivo? Ele pensava que nunca poderia ser presidente, pois o acusavam de ser traficante de drogas5. Portanto, o próprio movimento não se concretizaria. Essa é a dimensão pragmática da política na Bolívia. Quando a maioria indígena e popular descobriu entre 2002 e 2009 que o «Instrumento» funcionava, passou a apoiá-lo completamente. Foi estabelecido de fato um pacto que, embora utilitário, foi de grande importância: a maioria empobrecida e discriminada votava no mas-Evo («neles mesmos»), e em troca, o mas-Evo concedia a essa maioria o acesso ao poder «material e simbólico»6. Isso transformou Morales no maior caudilho da história de um país repleto deles. Além disso, como seu modelo econômico estatista funcionou bem, especialmente entre 2006 e 2015, houve prosperidade e mobilidade social. Desse modo, Morales conseguiu governar mais tempo do que qualquer outro boliviano, inclusive Víctor Paz Estenssoro, líder da Revolução Nacional e quatro vezes presidente (se considerarmos sua efêmera reeleição de 1964, quando foi destituído por um golpe de Estado) e Andrés de Santa Cruz, o fundador da Bolívia. E assim ele conseguiu, como já mencionado, que o seguissem quase todos os sindicatos camponeses (que no início o viam unicamente como um líder setorial dos cocaleiros); os sindicatos de trabalhadores e de classe média (que eram trabalhadores urbanos e resistiam à possibilidade de apoiar um dirigente rural); a maioria dos aimarás (que o consideravam inicialmente alguém distante, pois, embora nascido em uma comunidade aimará, tinha vivido em uma região quéchua de Cochabamba); a maioria dos quéchuas (que preferiram um dos seus); muitos indígenas guaranis (que o percebiam como «colla», ou do ocidente andino); e a maioria dos cenáculos e intelectuais de esquerda, desde os neomarxistas mais sofisticados (como seu vice-presidente Álvaro García Linera) até os mais dogmáticos grupos comunistas, guevaristas e maoístas existentes no país (pois o sucesso de Morales também é explicado parcialmente pelo colapso prévio, na década de 1980, dos grupos marxistas que monopolizaram o espaço da esquerda no século xx).

Ao se transformar em um caudilho com amplo apoio, Morales demonstrou grande habilidade como estrategista político, o que posteriormente impediu que o mas perdesse muito sangue pelas várias batalhas que precisava lutar no poder e também pelos diversos erros que cometia, entre os mais importantes deles, os de natureza personalista e de «culto à personalidade».Stefanoni recorda a condição sui generis desse partido. Ele explica que se trata de «uma espécie de confederação de sindicatos urbanos e rurais, comunidades indígenas e diferentes tipos de organizações populares, com escassa organicidade, mas muita capacidade para a representação corporativa de uma ampla variedade de interesses sociais dos de ‘baixo’». Dessa forma, o mas está sempre em «um permanente e instável equilíbrio: por exemplo, no norte de Potosí, deve articular ayllus originários, sindicatos de mineiros e organizações camponesas; todos devem ter seus representantes nas listas de candidatos, seja a deputados, senadores, prefeitos, etc.»7. E o mesmo ocorre em outras regiões do país.

Em sua «época de glória», Morales soube manter esse equilíbrio com maestria. Um estudo de Fernando Mayorga sobre seu estilo de governo evidencia isso8. Ele mostra que o ex-presidente precisava negociar com os dirigentes do Pacto de Unidade (o conglomerado de sindicatos afiliados ao mas) as principais decisões governamentais, que podiam tratar de políticas públicas, legislação, projetos de investimento ou, muitas vezes, de cargos e honrarias, o que Morales fazia para assegurar cotidianamente um mínimo de coordenação entre os grupos internos e o alinhamento do partido como governo.Com esse esforço, Morales renovava – e recriava – constantemente o «pacto de unidade» (sem maiúsculas) dos diferentes setores que compunham o «evismo». Simultaneamente estratégico e clientelista, desse pacto emergia um bloco de poder no sentido gramsciano do termo, isto é, um ator histórico com projeção hegemônica e, ao mesmo tempo, uma aliança social «populista», ou seja, capaz de incluir diversas demandas e uma ampla variedade de posicionamentos ideológicos.

As condições que possibilitavam o governo «decisionista» de Morales foram interrompidas em novembro de 2019, quando o chefe do mas foi derrubado por um movimento da classe média e dos descendentes brancos9 que contou com o apoio decisivo de policiais e militares, e que obrigou o ex-presidente e sua cúpula a passarem para a clandestinidade e depois saírem do país na busca de proteção estrangeira. Ele acabou perdendo parcialmente o controle de um partido que tinha se tornado imenso, com quase um milhão de afiliados, a maioria deles jovens e ansiosos por receber os benefícios do poder. A corrupção nem sempre está incluída, mas também não está fora desses cálculos. Uma vez afastado o caudilho, ocorreu o que temiam – real ou retoricamente – os defensores da constante reeleição de Morales: a fragmentação. Isso apontava, por exemplo, García Linera: «Sigo reafirmando que Evo era a única garantia pessoal da unidade de uma sociedade plebeia, subalterna e popular muito fragmentada; se não fomos em 2020 [com Evo Morales como candidato], a unidade se deu pelo golpe»10.

Surgiram então vários caudilhos regionais que intensificaram a volatilidade organizacional inerente ao mas, uma vez que resistiam a se alinhar automaticamente a Evo. Começaram as recriminações contra ele e seu entorno que, em um gesto muito interessante para a análise política, não foram criticados por seu caudilhismo ou por terem buscado se perpetuar no poder, mas por outras ações, como terem «fugido» do país, se dado por vencidos perante a classe média, deixado os dirigentes intermediários sozinhos, etc. Em uma situação de fragilidade extrema, Morales foi obrigado a aceitar a candidatura de alguém contrário a ele como Choquehuanca, algo impensável em outras circunstâncias. O ex-presidente só conseguiu impedir que ele fosse o primeiro da chapa e colocou nesse papel alguém relativamente próximo e sem base social própria: Luis Arce Catacora, seu ministro por mais de uma década e um homem que não havia demonstrado particulares ambições (mas tampouco qualidades) políticas.

Se no período 2019-2020 ele não tivesse apresentado credenciais internacionais tão elevadas e não tivesse contado com o histórico respaldo incondicional dos sindicatos cocaleiros, Morales poderia ter sido completamente afastado, como aconteceu na história com outros «grandes destituídos» como Andrés de Santa Cruz ou José Ballivián, poderosos caudilhos e presidentes do século xix. Em vez disso, ele conseguiu manter parte de sua influência sobre o mas, e este, perseguido e assediado por seus inimigos, compreendeu que deveria aceitá-lo se quisesse sobreviver, assim como aceitar todos os grupos surgidos em seu seio, o que acabaria lhe permitindo voltar ao poder. Assim expressou García Linera: «Na verdade, o que uniu [o mas depois de Morales] foi o golpe. Essa brutal retirada dos setores populares do poder é o que voltou a uni-los»11.

Após ter retornado ao país admirado por multidões em novembro de 2020, Morales tratou de recuperar sua centralidade. Com fortes e inéditas resistências, ele definiu as listas dos candidatos a prefeitos e governadores para as eleições de março de 2021. Morales ajustou as contas com os caudilhos regionais mais rebeldes: afugentou a popular Eva Copa, ex-presidenta do Senado pelo mas durante o governo de Jeanine Áñez, e a pressionou a se candidatar à prefeitura de El Alto por outro partido (ainda assim, Copa se saiu muito bem nas eleições) e expulsou do mas há pouco tempo Rolando Cuellar, dirigente do Bloco Oriente na normalmente adversa região de Santa Cruz, porque não parava de antagonizar com ele. No entanto, Morales não pôde recuperar todas as posições e prerrogativas que tinha no passado simplesmente com a vitória do mas nas eleições de outubro de 2020, que – embora fosse algo de que ele necessitasse desesperadamente para que parassem de persegui-lo e poder voltar ao país – entregou o Poder Executivo, o mais significativo dos poderes de um país presidencialista como a Bolívia, a duas pessoas que não eram ele, sendo uma delas seu adversário declarado. Por outro lado, o atrativo eleitoral e político de Morales já não é o mesmo, tendo sido «corroído» pelos anos de exercício quase absoluto do poder, pelas acusações de todo tipo feitas pela oposição e, sobretudo, por sua obstinação em ocupar o lugar mais alto da política nacional por tempo indeterminado. Ele aparece nas pesquisas com menor popularidade e intenção de voto que Arce, e um pouco melhor que os dirigentes opositores.A impossibilidade de que o poder volte completamente a suas mãos é a principal causa das fissuras no mas. Contudo, o ex-presidente já demonstrou que pretende voltar ao poder em 2025. Por saber que selaria seu fim político, Choquehuanca trabalha contra essa possibilidade e trata de acumular forças próprias. Já Arce busca manter um equilíbrio entre os dois antagonistas, já que precisa de ambos para que sua gestão tenha sucesso. Uma rebelião de Choquehuanca ou um ataque frontal de Morales contra seu governo, que ainda tem três anos pela frente, seria muito complicado para o presidente. A oposição teria então uma oportunidade de ouro para fragilizar o mas ou fazer algo pior: afastá-lo do poder, o que não consegue fazer pela via eleitoral desde 2005. Por outro lado, desentender-se com Arce enquanto seja presidente significaria para os outros dois dirigentes deixar de participar do governo, mesmo que parcialmente, algo que preferem evitar até o momento decisivo, que ainda não chegou.

A presidência transformou Arce em um caudilho automaticamente, por assim dizer. As organizações e blocos do mas precisam dele para obter empregos no governo, que são o principal objeto de desejo dos políticos bolivianos (não somente do mas; de fato, foi descoberta recentemente uma enorme rede de negociação de cargos públicos em Santa Cruz de la Sierra, a maior prefeitura do país e que nunca foi governada pelo partido de esquerda). Arce se acostumou a «negar Evo» na campanha eleitoral, quando os especialistas do marketing político lhe pediram que não falasse dele, e também não o mencionou no discurso de aceitação do cargo diante do Parlamento. O presidente começou a se encontrar com Morales após seu retorno ao país, mas deixando claro que os assuntos governamentais seriam de sua exclusiva responsabilidade. Ele não incorporou a sua equipe os membros do grupo «evista», nem mesmo nos bastidores, não atendeu à solicitação pública de Morales de substituir alguns ministros e não afastou os altos funcionários «choquehuanquistas» que, em contraste com a natureza calculista de seu chefe, atacaram publicamente o ex-presidente. Sabe-se que Arce não gostou quando Morales organizou a Marcha pela Pátria, uma caminhada multitudinária e épica para defender seu governo dos ataques da oposição, mas que claramente significava uma mobilização de sua força social. Até agora, Arce tem respaldado Eduardo Castilho, ministro do Governo, apesar de ter despertado a fúria de Morales e dos cocaleiros por supostamente seguir a «agenda da dea» (Drug Enforcement Administration, a agência antidrogas dos Estados Unidos) quando, em janeiro deste ano, promoveu a prisão de um ex-chefe de combate às drogas do último governo de Morales influenciado por uma investigação prévia dessa agência estadunidense que o havia vinculado a uma rede de proteção ao narcotráfico. Castillo também criticou os dirigentes que supostamente se beneficiam das permissões de produção de coca.Todos esses acontecimentos públicos, o que é possível saber pelo que se fala nos círculos íntimos do governo, indicam que Arce deseja projetar sua gestão – e para sustentá-la, reiteramos, ele precisa hoje de Choquehuanca e Morales – para além de 2025, embora tenha dito no início que não o faria. Ele tem conseguido até agora estabilizar o país após a enorme crise causada pela pandemia e a irrupção do governo de Añez (que hoje ninguém na política boliviana defende), mas não muito mais que isso. Em público, Morales elogia a gestão de Arce, mas, em conversas particulares, diz considerá-la ineficaz; dessa visão provém sua demanda por troca de ministros, algo negado pelo presidente, como já mencionado.A isso se referia García Linera quando identificava «uma separação entre a liderança política e estatal que recai sobre Arce e Choquehuanca, e a liderança social representada por Morales, como algo novo que poderia se manifestar em candidaturas separadas». O ex-vice-presidente prossegue: «Teoricamente, eles têm a possibilidade e todo o direito de propor sua candidatura em 2025, mas não sabemos qual será a posição de Arce e Choquehuanca em termos das eleições, se serão ou não candidatos pelo mas»12.

Um futuro incerto

Em suma, «as tendências centrífugas [dentro do mas] são grandes»13. Existirá o «algoritmo» buscado pelo ex-copiloto de Morales para fazer com que os diferentes grupos do mas sigam atuando dentro de uma mesma orientação organizacional? Quem sabe? Se tivéssemos de apostar com base na história política da Bolívia e, concretamente, da esquerda boliviana, que sempre foi cismática14, responderíamos que não. Entretanto, o mas já surpreendeu diversas vezes rompendo as formas tradicionais de pensar e atuar na política nacional. Nenhum de seus militantes nega que sua divisão daria uma vantagem enorme à oposição, que aproveitaria para tentar vencer e depois destruir o partido de esquerda, como já ocorreu após a destituição de Morales no final de 2019. E o instinto de sobrevivência, somado ao desejo de seguir no poder, pode conseguir finalmente o que hoje parece impossível.

  • 1.

    Ministério da Presidência: «La unidad del pueblo es la garantía de la democracia intercultural», 3/2022.

  • 2.

    R. Zavaleta: «La creación de la conciencia nacional» em Obras completas I. Ensayos 1957-1974, Plural, La Paz, 2011.

  • 3.

    Agencia de Noticias Fides: «Evo anuncia registro de nuevos militantes en el mas por la existencia de ‘muchos traidores’», 21/3/2022.

  • 4.

    P. Stefanoni e H. Do Alto: La revolución de Evo Morales. De la coca al Palacio, Capital Intelectual, Buenos Aires, 2006.

  • 5.

    Radio Kausachun Coca: «27 aniversario del MAS-IPSP», 29/3/2022.

  • 6.

    P. Stefanoni: «El MAS puede ganar sin Evo» em El País, 19/10/2020.

  • 7.

    Ibid.

  • 8.

    F. Mayorga: Mandato y contingencia. Estilo de gobierno de Evo Morales, CESU / FES, La Paz, 2019.

  • 9.

    Esse conceito permite englobar as diferentes transformações e miscigenações por que passaram os bolivianos descendentes, ainda que remotamente, dos crioulos coloniais. Por outro lado, estão os descendentes indígenas, que também passaram por transformações sem deixar de manter sua condição subalterna, enquanto os primeiros continuam possuindo um ethos senhorial. Ver F. Molina: Racismo y poder en Bolivia, Oxfam / FES, La Paz, 2021.

  • 10.

    Gabriel Romano: «García Linera advierte sobre una ‘fragmentación popular’ en el MAS para 2025» em Agência Efe, 6/3/2022.

  • 11.

    Ibid.

  • 12.

    G. Romano: ob. cit.

  • 13.

    Ibid.

  • 14.

    O Movimento Nacionalista Revolucionário (MNR) e o Movimento da Esquerda (MIR), dois partidos de base popular anteriores, perderam a influência que possuíam: o primeiro se transformou em meia dúzia de agrupamentos, e o segundo se dividiu em três partidos. A diferença entre o mas e essas legendas é que, por sua extração social e sua fortaleza, o atual partido no poder não recorreu a concessões ideológicas com a elite senhorial do país.

Este artículo es copia fiel del publicado en la revista Nueva Sociedad , Outubro 2022, ISSN: 0251-3552


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