A «Europa geopolítica» e a América Latina
Uma oportunidade para a autonomia estratégica?
Nueva Sociedad Outubro 2022
Nos últimos anos, a aposta europeia na «autonomia estratégica» vem assumindo uma visão restrita, mais apegada à defesa, e outra mais ampla, de caráter multidimensional. Essas visões incidem na percepção sobre os vínculos com a América Latina, em um contexto de crise e dependências que está redefinindo a geopolítica global.
A irrupção da pandemia de covid-19 e o padrão de interrupções das cadeias de abastecimento globais que estão sendo registradas nos últimos anos – desde a guerra comercial entre os Estados Unidos e a China até o bloqueio do canal de Suez – possibilitaram uma compreensão ampliada da autonomia estratégica europeia, com uma agenda que considera outras dimensões que não somente a militar. Além disso, essa leitura multidimensional na busca de uma maior resiliência das sociedades europeias está estreitamente vinculada ao plano de transformação aprovado pela União Europeia para os próximos anos em torno da transição digital e ecológica. Ambas as transições são eixos estruturais do plano de recuperação empreendido pela ue por meio do fundo NextGenerationeu após o impacto socioeconômico provocado pela pandemia.
Entre os principais desafios envolvidos na aposta nessas transições, denominadas no jargão comunitário «transições gêmeas» (twin transitions) e suas inter-relações com a autonomia estratégica, cabe destacar o receio de deixar para trás a dependência dos combustíveis fósseis para passar a depender de matérias-primas fundamentais. Como adverte a Agência Internacional de Energia (aie) em seu World Energy Outlook, há um desajuste entre as metas do Acordo de Paris e a disponibilidade dos minerais essenciais para cumpri-las. Dessa forma, se o Acordo Verde Europeu já alertava sobre os riscos, a nova estratégia industrial da ue reconhece diretamente que o acesso aos recursos é uma questão de segurança estratégica para o sucesso das transformações rumo a uma descarbonização produtiva.
Para a relação da ue com a América Latina, a maior demanda por esse tipo de matérias e seu caráter estratégico são ilustrados com os casos mais sintomáticos do lítio e do nióbio: ambos são componentes essenciais para a produção de baterias elétricas e de alta tecnologia, como condensadores e supercondutores, importados respectivamente 78% do Chile e 85% do Brasil. Também não se pode ignorar o peso do cobre, proveniente em boa medida do Chile, Bolívia e Peru, ou a bauxita e o minério de ferro no caso do Brasil. Por sua vez, os países europeus também são fornecedores de matérias-primas fundamentais, como o estrôncio (na Espanha) ou o háfnio (na França), além de cobalto, bauxita, berílio, bismuto, gálio, germânio, índio ou borato, somados a potenciais reservas detectadas pelo programa Copernicus.
Além da escassez de fornecedores e fontes, cabe acrescentar que a demanda por essas matérias-primas vai aumentar nas próximas décadas, como no caso do lítio, cujas estimativas indicam que poderia se multiplicar praticamente por dez, passando das 43.000 toneladas de 2017 para 415.000 toneladas em 2050. Por isso, entende-se que as matérias-primas fundamentais podem ser objeto de possíveis tensões e desabastecimentos nos próximos anos e, ao mesmo tempo, representar uma oportunidade para os países que as possuem em reserva, já que, caso possam industrializar esses setores e lhes conferir maior valor agregado, esses países poderiam se beneficiar das transições em andamento.Como estabeleceu a ue em diferentes documentos sobre a questão, o ideal é que não exista uma dependência de nenhum país nem fornecedor responsável por um abastecimento superior a 33%. Por isso, além de implementar um Plano de Ação sobre as matérias-primas fundamentais e revisar sua estratégia industrial – aprovada antes da pandemia e revisada após as falhas observadas –, tratou-se de identificar em que âmbitos há maiores riscos e com quais países, além de determinar os setores e eixos-chave.A respeito desse último ponto, assim como explicitou a Comissão Europeia, alcançar uma ue com capacidade e liberdade para atuar passa por reforçar sua autonomia estratégica aberta, que se articula em torno de dez eixos:
(a) assegurar um sistema de alimentação e saúde sustentável e resiliente; (b) garantir energia descarbonizada e acessível; (c) fortalecer a capacidade na gestão de dados, inteligência artificial e tecnologias disruptivas; (d) garantir e diversificar o fornecimento de matérias-primas fundamentais; (e) assegurar a liderança no momento de configurar os padrões globais; (f) construir um sistema econômico e financeiro resiliente e preparado para desafios futuros; (g) desenvolver e reter as habilidades e os talentos que respondem às ambições da ue; (h) fortalecer as capacidades em segurança e defesa, bem como o acesso ao espaço; (i) trabalhar com parceiros globais para promover a paz, a segurança e a prosperidade para todos; e (j) fortalecer a resiliência das instituições. Esses dez âmbitos abrem espaço para o diálogo de políticas entre a ue e a América Latina na busca de uma convergência regulatória entre as duas regiões que permita implementar o denominado «Efeito Bruxelas».
No contexto de renovação da estratégia industrial da ue, a Comissão tornou público em 5 de maio de 2021 um estudo sobre dependências estratégicas e capacidades. Com uma análise de mais de 5.000 bens importados pelo bloco, observou-se que há em 137 deles uma alta dependência de países terceiros. Entre os países dos quais a ue mais depende, da maior para a menor dependência, estão a China (que representa cerca da metade desses produtos), o Vietnã e o Brasil. Os principais setores nos quais são constatadas essas dependências externas são os ecossistemas da indústria de energia intensiva – matérias-primas e processadas, e também químicos – e alguns produtos da indústria farmacêutica, assim como os mencionados componentes-chave para a transição digital e ecológica. Por isso, longe de aspirar a uma autossuficiência, na busca de maior autonomia estratégica aberta – embora às vezes também se classifique como soberania ou resiliência –, a pretensão é, segundo o comissário Thierry Breton, «ter opções, contar com alternativas, que haja uma concorrência; evitar as dependências forçadas, tanto no plano econômico como no geopolítico». Ou, o que é o mesmo, que impere a livre concorrência diante de mercados presos a lógicas monopolísticas ou cartelizadas, dado que a abertura (openness) estimula a prosperidade, o dinamismo e a estabilidade. Por isso, dentro da estratégia para alcançar maior diversificação de fornecedores desses tipos de matérias-primas fundamentais e garantir o abastecimento, além de uma aposta em mais industrialização, extração e reutilização (circularidade) ad intra, a Comissão está desenvolvendo associações estratégicas internacionais relacionadas com matérias-primas fundamentais não encontradas na Europa.
Essas associações estratégicas já começaram a ser tecidas em formato piloto desde 2021 com o Canadá, e há contatos abertos com alguns países africanos e vizinhos. Portanto, espera-se que a revitalização da associação estratégica entre a ue e a América Latina integre essa problemática em encontros birregionais futuros. Como acontece com o restante dos sócios, a Comissão deve articular essa associação de acordo com princípios de transparência e práticas de mineração sustentáveis e responsáveis. Nessa matéria, cabe celebrar que uma iniciativa mais avançada como a Aliança Europeia para as Matérias-Primas (erma, na sigla em inglês), centrada primeiramente nas necessidades mais urgentes – como o abastecimento de terras raras para ímãs e motores, baterias e pilhas de combustível –, já tenha incorporado empresas latino-americanas como as brasileiras Companhia Brasileira de Metalurgia e Mineração (cbmm) e Aurüm Assets sa, além da chilena BioLantánidos. Por seu caráter inclusivo, é de se esperar que possam ser incorporados igualmente outros atores relevantes, como entidades públicas, centros de pesquisa, universidades, organizações não governamentais, instituições financeiras, sindicatos e associações.
Essas alianças com a América Latina são um espaço propício para revitalizar a associação estratégica birregional, conectando as necessárias «alianças verdes» derivadas do Acordo Verde Europeu àquelas necessárias para atingir a autonomia estratégica buscada. Após a invasão russa da Ucrânia a partir de 24 de fevereiro passado, e com a maior consciência da dependência energética da ue, parece vislumbrar-se uma convergência de ambos os eixos. O plano repowereu, lançado pela Comissão em março de 2022 como resposta, busca liberar a ue de sua dependência energética da Rússia com uma redução de dois terços das importações de gás desse país.Isso supõe um ímpeto renovado para as energias renováveis no médio prazo e um reajuste de fornecedores no curto prazo custoso, mais contaminante e nocivo ao se reorientar em direção ao gás natural liquefeito (gnl) extraído com métodos de fraturação hidráulica (fracking). Portanto, será preciso acompanhar até que ponto esse ímpeto para as energias renováveis se confirma, de modo que os imperativos de segurança energética não eclipsem os objetivos de descarbonização. Também não se pode ignorar o uso da política energética por parte da ue como ferramenta ativa de influência externa nem os efeitos nocivos que ela pode ter para países terceiros e, portanto, de forma agregada. Com a alta nos preços do gás natural produzida pela guerra na Ucrânia, nota-se uma aposta renovada no carvão por ser um recurso mais econômico, embora menos sustentável.Abre-se definitivamente um novo ciclo de uma ue geopolítica e que busca a autonomia estratégica, com novas oportunidades de cooperação e rearticulação de laços com a América Latina. Uma ferramenta indispensável nesse aspecto é a rede de Acordos de Associação que vem sendo articulada em escala birregional nas últimas duas décadas. Longe de serem entendidos como meros acordos de livre comércio, eles têm um acentuado caráter geopolítico que não pode ser ignorado, com um grande potencial para abrir um espaço compartilhado de diálogo de políticas e de convergência regulatória para a mudança dos modelos de produção e consumo. Igualmente, vale acompanhar boas práticas no âmbito birregional que têm sido capazes de abordar problemáticas de interesse compartilhado e que se inserem em uma lógica de autonomia estratégica.
A iniciativa bella marca um caminho
Como apontou José Antonio Sanahuja, uma ue geopolítica que deseja maior autonomia estratégica implica um envolvimento construtivo com relação à América Latina, juntamente com a promoção de coalizões flexíveis, abertas e efetivas. Segundo o autor, há três exemplos de uma atuação mais autônoma e flexível por parte da ue ou, o que é o mesmo, de amostras incipientes da «Doutrina Sinatra» na América Latina: (a) a tradicional rejeição das sanções da Lei Helms-Burton contra Cuba; (b) o posicionamento da ue na crise da Venezuela; e (c) a atuação coordenada dos Estados membros da União que são parte do Banco Interamericano de Desenvolvimento (bid), impulsionada por Josep Borrell, alto representante da ue para Assuntos Exteriores e Política de Segurança e vice-presidente da Comissão Europeia. Essa atuação coordenada foi motivada pela eleição de um novo diretor do organismo após a decisão do governo de Donald Trump de não respeitar a regra não escrita que concede esse cargo a um candidato de um país latino-americano.
Além disso, deseja-se neste artigo destacar outra iniciativa que pode se alinhar dentro da cooperação entre a ue e a América Latina de uma perspectiva de autonomia estratégica, embora sua origem seja prévia à própria agenda da União: o programa Building the Europe Link to Latin America (bella), que conecta as duas regiões por um cabo submarino.
Esse programa, que dá continuidade ao estudo Europe Link do Latin America (ella) iniciado em 2011, habilitou o sistema de cabo submarino de última geração Ella-Link com 6.000 quilômetros de extensão que conecta a ue a partir de Sintra (Portugal) – com interconexão prévia em Lisboa e Madri – à América Latina via Fortaleza (Brasil), com interconexões interoceânicas previstas com a Guiana Francesa, ilha da Madeira, ilhas Canárias e Cabo Verde, e interconexões terrestres com outros nós como Marselha (França) no caso europeu e nós latino-americanos como São Paulo, Porto Alegre, Buenos Aires, Santiago do Chile, Bogotá e Lima.O programa vem acompanhado de um direito irrevogável de uso (iru, na sigla em inglês) para uma rede birregional de pesquisa e educação que se beneficiará de uma menor latência para os projetos conjuntos (menos de 50%), o que permitirá alcançar maior velocidade para o trabalho remoto em âmbitos que demandam grandes volumes de dados, como a astronomia, a física de partículas e de altas energias e a observação da terra. A rede é composta por cinco redes de pesquisa europeias – dfn (Alemanha), fct/fccn (Portugal), garr (Itália), RedIris (Espanha) e renater (França) – e quatro latino-americanas – cedia (Equador), renata (Colômbia), reuna (Chile) e rnp (Brasil) –, lideradas no primeiro caso pela géant como consórcio europeu e a Redclara, formada por 11 redes nacionais latino-americanas que vinculam mais de 2.000 instituições educacionais e científicas na Argentina, Brasil, Chile, Colômbia, Costa Rica, Equador, Guatemala, Honduras, México, Nicarágua e Uruguai.
Deve-se ter em mente que os cabos submarinos de comunicações são uma infraestrutura crítica, já que 97% do tráfego mundial de comunicações, longe de ser realizado por satélite ou via aérea, ocorre sob o oceano. Esses cabos contam com um importante componente geopolítico, posto que sua ausência pode gerar vulnerabilidades e dependências perante países terceiros quanto a padrões regulatórios, como em matéria de proteção de dados. No caso da ue e da América Latina, trata-se do segundo cabo habilitado entre as regiões, já que existe o antecedente do Atlantis-2 entre a Argentina e Portugal. Contudo, por sua capacidade bruta (40 gigabits por segundo), esse primeiro já se tornou limitado para transmissões de voz e não é suficiente para dar resposta ao maior número de usuários e às tecnologias surgidas desde então, que exigem maior capacidade, o que acabava tornando a interconexão de ambas as regiões dependente de infraestruturas que passavam pelos eua.
A iniciativa bella, que tem um importante componente em ciência e pesquisa, conforme já mencionado, é um exemplo paradigmático do que no Latin American Economic Outlook – não sem certos paralelismos com a «economia de missão» promovida pela economista Mariana Mazzucato – se denominou «aliança internacional orientada por uma missão» (mission-driven international partnership). Assim, o programa conta com um foco multidimensional que transcende o científico-educacional e abarca também um componente geopolítico. Ele exigiu uma abordagem integral de governo (whole of government approach) que aposta em uma colaboração intersetorial – três diretorias gerais da ue foram envolvidas: Redes de Comunicação, Conteúdo e Tecnologias (dg-connect), Associações Internacionais (antes dg-devco, hoje dg-intpa) e a Diretoria Geral de Indústria de Defesa e Espaço (dg-defis) – e público-privada (o consórcio EllaLink), tudo isso com um horizonte de longo prazo, considerando os 25 anos de vida útil previstos para o projeto. Sua construção foi iniciada em 2018 e inaugurada em 2021 com um custo estimado em 40 milhões de euros, dos quais 25 milhões provêm da ue e o restante, da comunidade de redes latino-americanas, inclusive contribuições em espécie por meio de suas infraestruturas que equivalem a 25 milhões de euros. Cabe lembrar, além disso, que a implementação desse programa foi a única menção da América Latina por parte da presidenta Ursula Von der Leyen durante seu discurso sobre o estado da ue de 2021.
Pelo momento que o regionalismo latino-americano atravessa, fortemente debilitado (chega-se a falar de «esvaziamento») – entre outros motivos, pela polarização que a região sofreu, com o consequente bloqueio de qualquer iniciativa de caráter político –, parece oportuno propor um programa de cooperação com um componente mais funcional, técnico e pragmático. Por isso, uma cooperação inter-regional que siga o exemplo do programa bella pode interpretar adequadamente o momento político latino-americano, ajudando ao mesmo tempo a fortalecer as respectivas autonomias e a cooperação em seu conjunto. Nessa linha, uma iniciativa a explorar seria a difusão e o aproveitamento de dados proporcionados pelo programa Copernicus, por meio de plataformas como a Academia Copernicus, e chega-se inclusive a avaliar uma cooperação mais estreita que permita ampliar o conhecimento e o monitoramento dos recursos naturais da região, além da gestão ambiental.
Um eixo para revitalizar a associação estratégica birregional?
A partir de uma aproximação ampliada ou de «autonomia estratégica aberta», responde-se a uma tensão distinta, mais focada na resiliência da ue e em reconciliar quem defende um fortalecimento das políticas industriais e os que desejam preservar a abertura como garantia de competitividade e inovação. Essa leitura não só é mais cooperativa e apegada à gestão das interdependências, mas também coloca a América Latina como um sócio estratégico no momento de responder com uma lógica de benefício mútuo às transições que ambas as regiões devem empreender nos planos ecológico, digital e produtivo. Por seu caráter multidimensional, e considerando as dependências estratégicas advertidas nessas agendas de mudança, é de se esperar uma revitalização da associação estratégica entre a ue e a América Latina com uma agenda que integre essas problemáticas para próximos encontros birregionais.
A ue geopolítica iniciada após o 24 de fevereiro ucraniano, na qual parece unir as duas aproximações – restrita e ampliada – da autonomia estratégica, implica um envolvimento construtivo com relação à América Latina e também a promoção de coalizões flexíveis, abertas e efetivas. Existem boas práticas nesse sentido que marcam um caminho apropriado para articular a cooperação entre a ue e a América Latina de uma perspectiva de autonomia estratégica, como é o caso do programa bella. Como um componente mais funcional, técnico e pragmático que condiz bem com o momento vivido pelo regionalismo latino-americano, surge uma aliança internacional orientada por uma missão que inclui um componente geopolítico que possibilita autonomia para ambas as regiões, envolvendo um leque amplo de atores e interesses.
Nesse sentido, entre as várias opções que se abrem de uma perspectiva ampliada da autonomia estratégica, cabe propor um programa similar ao bella, que difunda e aproveite mais os dados do programa Copernicus, proporcione maior conhecimento e monitoramento dos recursos naturais da América Latina e melhore ao mesmo tempo a gestão ambiental na região. Também se espera uma incorporação de outros atores para além do setor privado na erma que, no âmbito das matérias-primas fundamentais, integre princípios de transparência e práticas de mineração sustentáveis.
Nota: este artigo é um extrato de «La autonomía estratégica de la Unión Europea: ¿en qué lugar queda América Latina?», Documento de Trabajo No 65, Fundación Carolina, Madri, 2022, disponível em e foi publicado em espanhol em Nueva Sociedad No 299, 5-6/2022, disponível em www.nuso.org. Tradução de Luiz Barucke.