Honduras: entre a democratização e o poder familiar
Nueva Sociedad Outubro 2022
Xiomara Castro se tornou a primeira presidenta da história de Honduras pelo Libre, o partido fundado por seu marido, José Manuel «Mel» Zelaya, depois do golpe de Estado que o destituiu em 2009. Castro prometeu um novo futuro para o país após 12 anos de autocracia do Partido Nacional, mas, nesses primeiros meses de mandato, o passado voltou na forma de uma anistia que rima para muitos com impunidade.
José Manuel «Mel» Zelaya deixou de ser presidente de Honduras há 12 anos, mas a Casa Presidencial voltou a ser seu gabinete. Desde que Xiomara Castro, sua esposa e atual presidenta do país, o nomeou assessor, dezenas de pessoas visitam diariamente o Palácio José Cecilio del Valle na esperança de que Mel escute suas queixas e demandas, ou que até mesmo assine uma carta de recomendação para obter trabalho no governo. Na última sexta-feira 18 de março, no entanto, sua agenda se concentrou na visita de apenas um homem. Com conferência e comida incluída, ele recebeu com honras até tarde da noite – ainda que sem a companhia da presidenta – Enrique Flores Lanza, seu ex-ministro da Presidência que retornava ao país após uma década de exílio na Nicarágua.
Em 27 de janeiro, antes de Xiomara Castro prestar juramento como a primeira presidenta constitucional de Honduras, em um ato simbólico, devolveram a Mel a faixa presidencial que lhe haviam tomado em 2009, quando foi destituído por meio de um golpe de Estado e acabou embarcando em um avião vestido de pijama sob a mira de fuzil. Agora, o Liberdade e Refundação (Libre) – partido que fundou e dirige – além de levar sua esposa à Presidência, controla o Congresso. Castro chegou ao poder prometendo um futuro para Honduras distante dos 12 anos de «narco-Estado» e autocracia do Partido Nacional encarnados no ex-presidente Juan Orlando Hernández, extraditado para os Estados Unidos por tráfico de drogas. Contudo, as medidas tomadas nesses quatro meses de governo apontam mais para uma reciclagem do passado. Além da influência de Mel, ocupam importantes cargos no governo vários membros da família Zelaya, e a anistia aprovada apenas uma semana depois da posse de Castro garantiu as condições para o retorno de velhos aliados do clã com contas pendentes com a Justiça.
Flores Lanza foi acusado em 30 de julho de 2009 – um mês depois do golpe – de falsificação de documentos públicos, abuso de autoridade e fraude em um processo que incluía também o ex-presidente Zelaya (beneficiado por uma anistia depois dos Acordos de Cartagena, que permitiram em 2010 que ele retornasse ao país), Jacobo Lagos, então ministro-chefe da equipe presidencial e gerente da Empresa Hondurenha de Telecomunicações (Hondutel), e Rebeca Santos, então ministra das Finanças, esses dois últimos dispensados pela Justiça hondurenha. Lanza também foi acusado dos crimes de abuso de autoridade, desvio de dinheiro público e usurpação de funções pela subtração de 10 milhões de lempiras (pouco mais de 575.000 dólares estadunidenses naquele momento) dos cofres do Banco Central de Honduras (bch).
A imagem de um homem retirando um carrinho de mão cheio de dinheiro do banco em 26 de junho de 2009 ficou gravada no imaginário da população. Cinco anos depois, Flores Lanza confessou que esses 10 milhões, que pediu para a Guarda de Honra presidencial, foram na verdade utilizados para pagar a aposta da «Quarta Urna»: Zelaya e seu grupo pretendiam perguntar aos cidadãos se estavam de acordo com a instalação de uma quarta urna nas eleições que seriam realizadas seis meses depois. Basicamente, eles buscavam uma reforma constitucional para permitir a reeleição presidencial. A consulta foi declarada ilegal pelo Tribunal Administrativo de Primeira Instância, satanizada pelos meios de comunicação de massa, pela Igreja e pelo Alto Comando do Exército, e acabou desembocando no golpe de Estado.
Berta Oliva, diretora do Comitê de Familiares de Detidos e Desaparecidos em Honduras (Cofadeh) – organização de referência na luta pelos direitos humanos e que possui legalmente uma palavra determinante no processo de anistia –, afirma que o próprio Flores Lanza e seu advogado, Milton Jiménez, apoiaram a revisão legal do projeto de lei de anistia finalmente aprovado. Consultada sobre o envolvimento de Lanza como beneficiário da nova lei, Oliva assegura que ele é um defensor dos direitos humanos, um argumento que o advogado do ex-ministro apresentou ao Cofadeh e que a organização estendeu em um documento. «Ele representava grupos camponeses, defendeu gratuitamente Renato, o jornalista ameaçado na década de 1980», afirma em alusão às ameaças então sofridas pelo apresentador de televisão Renato Álvarez.
O outrora homem forte de Zelaya não possui cargo oficial, mas a influência do assessor e marido da presidenta e de vários de seus antigos altos funcionários no governo é enorme. Rixi Moncada, que foi ministra do Trabalho e gerente da Empresa Nacional de Energia Elétrica, é agora ministra das Finanças; Rebeca Santos, ex-ministra das Finanças, é presidenta do bch; Edmundo Orellana, ex-ministro da Defesa, é ministro da Transparência. A lista segue: Edwin Araque, ex-presidente do bch, ocupa agora o cargo de presidente do Banco Hondurenho para Produção e Moradia (Banhprovi, no acrônimo em espanhol), e Enrique Reina, ex-assessor presidencial de Mel, é hoje chanceler.
Ao retornarem ao poder, os Zelaya parecem querer concluir uma tarefa inacabada. Durante seu discurso de encerramento de campanha, Xiomara Castro disse que seu mandato seria uma continuação do «Poder Cidadão», o projeto de seu marido interrompido pelo golpe. A agora presidenta prometeu também uma Assembleia Constituinte. Em suas aparições públicas, Mel segue mencionando a «Quarta Urna» como o pretexto utilizado por militares, empresários e políticos golpistas para interromper um país «repleto de esperança». «Volta hoje um dos dirigentes do governo Liberal do Poder Cidadão, coordenador da Quarta Urna, que desempenhou um papel fundamental na transformação de Honduras», ele declarou em 18 de março sobre Flores Lanza, que diferentemente do passado, quando se apresentava sempre com a barba feita e ternos costurados sob medida, retornou com barba e camisa branca.
Os Zelaya e os militares
Há apenas duas semanas no cargo como a primeira mulher na Presidência de Honduras, Castro enviou três parentes próximos a uma reunião com o Estado-Maior do Exército. A primeira comandante-geral não se reuniu com os principais líderes de seu Exército; em seu lugar, chegaram três emissários que partilham do mesmo nome e sobrenome. No comando oficial da comitiva ia José Manuel Zelaya, ministro da Defesa, seguido de José Manuel Zelaya Castro, assessor, e José Manuel «Mel» Zelaya, transformado agora em assessor presidencial.
Que três «José Manuel» apareçam em um ato oficial do novo governo hondurenho passou de uma aparente coincidência para se tornar a regra do poder repartido em uma família: Mel é assessor presidencial; seu filho mais velho Héctor Manuel é secretário privado de sua mãe, a presidenta; Xiomara Hortensia, a segunda filha, é deputada no Congresso Nacional; José Manuel, o filho mais novo, afirma ser assessor ad honorem. Do lado de Mel está seu irmão, Carlos Zelaya, secretário do Congresso Nacional, e o filho deste, José Manuel Zelaya, no comando do Ministério da Defesa. Ainda que possa parecer, isso não é considerado nepotismo do ponto de vista legal, uma vez que essas nomeações e a participação política de deputados estão previstas na legislação hondurenha. E as críticas são respondidas com a afirmação de que é importante contar com pessoas de confiança no círculo de poder mais próximo à Presidência para evitar outro golpe de Estado.
«Nunca é ruim contar com alguém de confiança onde estão as armas, e as Forças Armadas detêm as armas e as estratégias vitais. Portanto, é necessário alguém de extrema confiança do presidente da República», justifica Edmundo Orellana, que era ministro da Defesa quando Zelaya foi derrubado. O mesmo foi dito publicamente por Carlos Zelaya, irmão do ex-presidente, quando consultado sobre o novo cargo de seu filho: «Colocamos alguém de confiança nesse cargo porque golpes de Estado são forjados na Defesa». O ministro da Defesa é um advogado de 33 anos em sua primeira experiência como funcionário público. Muitos ativistas do partido Libre o reconhecem como um quadro técnico mais que político. Marco Ramiro Lobo, prefeito de Catacamas, cidade dos Zelaya, o descreveu como «técnico, sobretudo na área das comunicações». A lembrança do golpe é uma ferida aberta. Para Arístides Mejía, antecessor de Orellana, a destituição de Zelaya foi «o golpe dos idiotas, porque fez o país afundar completamente, e isso poderia ser solucionado pela via institucional». «Nenhuma instituição era controlada pelo presidente. Ao contrário do presidente anterior, que controlava todas, [Zelaya] não controlava a Suprema Corte, as Forças Armadas, a Procuradoria, o Tribunal Eleitoral, o Tribunal de Contas nem o partido. Qual era o medo então?», afirma Mejía. O general Romeo Vásquez Velásquez, líder militar que executou o golpe, está hoje na reserva. Ele tentou sem sucesso se tornar político e escreveu um livro com sua versão da história. Sentado em um sofá na sala de sua casa, nos arredores de Tegucigalpa, ele ri ao olhar a foto de Mel ao lado de seu filho e sobrinho reunidos com o Alto Comando das Forças Armadas. «Alguns dizem que o primeiro-cavalheiro tirou a Presidência da presidenta e a utiliza apenas de parapeito. Para mim, há uma regra simples de jogo de poder: nunca faça sombra a seu líder ou seu amo, nunca faça sombra a seu líder superior».
Doze anos depois do golpe, os Zelaya ainda temem, ou talvez se blindam.
Anistia ou «pacto de impunidade»
Durante a campanha eleitoral, Xiomara Castro falou da necessidade da anistia, mas não indicou que beneficiaria os ex-altos funcionários do «Poder Cidadão». A aprovação da lei de anistia foi duramente questionada dentro e fora de Honduras. O Conselho Nacional Anticorrupção (cna) e o Conselho Hondurenho da Empresa Privada (Cohep) classificaram a iniciativa como um «pacto de impunidade»1 e declararam em um comunicado conjunto:
Embora não possamos ignorar que alguns dos altos funcionários que atuaram entre 2006 e 2009 tivessem e têm o direito à liberdade de expressão para manifestar sua oposição ao golpe de Estado, isso não implica que devam ficam impunes caso tenham realizado atos de corrupção ou crimes contra a Administração Pública, o que geraria um precedente que poderia ser aplicado a fatos futuros a 2009, beneficiando dessa forma os que hoje são responsáveis pelas cifras expressivas que o Estado perde anualmente devido à corrupção.
Para Oliva, as investigações judiciais contra os antigos altos funcionários de Zelaya não têm valor por terem ocorrido em um Poder Judiciário que se curvou à «ditadura» depois do golpe.
Mas também surgiram críticas de pessoas próximas aos Zelaya. Edmundo Orellana, atual ministro da Transparência, criticou o decreto de anistia e chegou a denunciá-lo como um novo pacto de impunidade. Contudo, ele agora acredita ser injusto criticá-lo, porque «a lei veio da sociedade civil» e porque serão os juízes os responsáveis finais por decidir quem recebe ou não liberdade. «Esse decreto foi elaborado pelo Cofadeh, não pelo governo. Isso deve ficar bem claro. Mas o importante é que o decreto não foi questionado em sua parte relativa aos crimes políticos. Todos concordam que isso é inquestionável», diz hoje Orellana.
A anistia também favoreceu a família Zelaya Castro. A apenas 10 dias de sua vigência, Marcelo Chimirri Castro, sobrinho da presidenta, solicitou a um Tribunal de Execução a extinção de um processo de corrupção no qual era réu. Ele foi entre 2006 e 2007 subgerente da estatal Hondutel, e, segundo a Procuradoria, sua participação foi fundamental em uma rede de «tráfego cinza» (fraude realizada por meio de chamadas internacionais) na instituição que fez com que a estatal perdesse a fatia das chamadas internacionais e a rede celular2. Segundo a investigação, o acordo também provocou o colapso financeiro da Hondutel. Em 30 de junho de 2009, dois dias depois do golpe, Chimirri foi acusado dos crimes de abuso de autoridade, fraude e suborno por beneficiar, em troca de propinas, a empresa estadunidense Latin Node. Ele foi absolvido em 2013, mas o Ministério Público entrou com um recurso de anulação, e Chimirri foi condenado em 2018 a oito anos de prisão pelos crimes de abuso de autoridade e fraude. Ele cumpriu quatro anos de detenção até ser liberado este ano graças ao decreto de anistia.
O processo do caso de Chimirri Castro em Honduras possui 17 tomos e cerca de 7.000 fólios. Além de seu próprio levantamento, a Procuradoria hondurenha contava com prova processual da investigação feita pelo Distrito Sul da Flórida e diligências investigativas realizadas em colaboração com a Procuradoria da Guatemala. O processo está repleto de provas, entre elas, os pagamentos de 30.000 dólares estadunidenses efetuados pela Latin Node a uma empresa de Chimirri Castro em Honduras momentos antes do acordo com a Hondutel. Ele também contém mensagens de correio eletrônico que mencionam um pacto entre a Hondutel e a Latin Node, e vinculam outras figuras políticas como Carlos Eduardo Reina, filho do então ministro da Governança e figura muito próxima ao ex-presidente Zelaya. Reina chegou a ser pré-candidato à Presidência pelo Libre. «Diga-lhes que Carlos Eduardo trabalha para nós», escreveu um dos executivos da Latin Node em um correio eletrônico enviado a seu contato na América Central para facilitar o diálogo com Chimirri. Outros dos contatos, segundo essas mensagens, era Carlos Zelaya, irmão de Mel e atual secretário do Congresso Nacional que aprovou a anistia. Além disso, é apresentado no extenso processo um planejamento para fazer campanha política favorável ao governo do «Poder Cidadão» com a venda de cartões para chamadas internacionais com desconto em benefício de Mel Zelaya.
Chimirri recebeu anistia ampla, absoluta e incondicional no dia 3 de março de 2022. Foram duas as provas alegadas para libertá-lo: um extrato de relatório da Comissão da Verdade depois do golpe no qual é mencionado que os altos funcionários próximos a Zelaya foram perseguidos políticos e uma fotografia na qual Chimirri aparece ao lado do ex-presidente destituído para demonstrar um relacionamento entre ambos.
«A anistia foi duramente atacada, especialmente por aqueles que apoiaram o golpe de Estado e sempre se prostraram diante do fascismo enquanto massacravam e condenavam patriotas e lutadores, muitos dos quais entregaram a vida para ter um lugar digno, uma pátria livre e democrática», declarou a presidenta no discurso dos primeiros 100 dias de governo gravado previamente e transmitido em uma rede de rádio e televisão. O discurso na íntegra foi depois publicado em Poder Popular, o novo jornal e instrumento de propaganda de seu governo.
Em 18 de março, na festa de boas-vindas que Mel organizou para Flores Lanza, este disse que a anistia havia sido «criminalizada» e que beneficiará 7.000 pessoas judicializadas por protestar contra o golpe. «A anistia é uma correção de uma justiça que não funcionou neste país. Esta anistia permitirá que a justiça finalmente seja feita para muitos homens e mulheres que não puderam se defender do assassinato judicial encomendado», afirmou.
Mas os que realmente se beneficiaram, como Flores Lanza, retornaram com sede de vingança. Em uma denúncia coletiva, ele e outros ex-altos funcionários processaram o Estado de Honduras pelas ações do golpe. A denúncia foi admitida pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos (cidh) em agosto de 20213. Se ela avançar, caberá à cidh emitir uma sentença. «Queremos que nos devolvam o que nos roubaram, que nos devolvam a verdade, pois com a mentira criminalizaram a quarta urna», denuncia Lanza.
Lanza recebeu cinco cartas de liberdade, sendo a última de 4 de março, que o absolve dos crimes de falsificação de documentos públicos, três crimes de abuso de autoridade e fraude em detrimento da administração pública. Ao receber seu amigo, Zelaya lembrou em tom de deboche que também queriam acusá-lo por atos de corrupção «até pelo combustível que gastamos na Casa Presidencial. Só espero que não queiram me investigar agora pela comida servida às pessoas que recebemos aqui», disse.
De volta à fazenda
No dia 23 de abril, Mel Zelaya aterrissou em um helicóptero na pista El Aguacate, a poucos quilômetros de suas propriedades na comunidade El Espino, em Catacamas, Olancho, um dos maiores departamentos de Honduras, com extensão territorial superior à de El Salvador. Olancho faz divisa com Gracias a Dios e Colón, departamentos eminentemente rurais e localizados na rota do narcotráfico e da pecuária extensiva. As grandes extensões de terra encontram as montanhas e a floresta em uma região com pouca população e várias áreas protegidas que têm sido afetadas pelos conflitos gerados pelo tráfico de drogas e o abandono estatal.
O motivo de sua viagem foi uma negociação extremamente delicada. Por meio de Lucky Medina, titular da Secretaria de Recursos Naturais e Meio Ambiente (MiAmbiente), o governo de sua esposa tinha prometido no final de março destruir uma estrada ilegal que atravessou a Reserva da Biosfera de Río Plátano (uma área declarada Patrimônio da Humanidade) e beneficiou criadores de gado e indígenas ao permitir transportar produtos de Gracias a Dios a Olancho. Os moradores da região afirmam que a obra também beneficiou os narcotraficantes e, de fato, ainda hoje a chamam de «narcoestrada». Ela provocou um escândalo pela magnitude do desastre ambiental que significava e, embora tenha sido concluída em 2021, durante o último ano de Juan Orlando Hernández no poder, começou a ser construída em 2007 durante a presidência de Mel Zelaya4.
Não há ninguém melhor em Olancho para acalmar os ânimos do que Mel, um dos senhores do povoado e membro de uma família respeitada quase como nobreza. No vilarejo de El Espino, Zelaya tem atualmente registrados no sistema de propriedades vários lotes de terreno na estrada que vai até a Universidade Agrícola. Em 2016, o casal presenteou seu genro, o advogado Juan Carlos Melara, com um terreno de 13.454,13 metros quadrados na mesma região. Melara é marido da advogada Zoe Zelaya, filha mais velha do casal e a única da família direta sem cargo em instituições públicas. Melara foi assistente de Zelaya na época do «Poder Cidadão», mas Mel o exonerou em 2007 para «evitar» o nepotismo5.
Quando era presidente, Zelaya doou um de seus terrenos em El Espino à Teletón e construiu um edifício de salas de aula na Universidade Agrícola. Posteriormente, o ex-presidente Porfirio Lobo Sosa do Partido Nacional realizou outra construção similar. Ambos os edifícios foram construídos como demonstração dos dois caciques proprietários de terras de Olancho e de suas respectivas tradições políticas. Apenas um mês depois da promessa do ministro do Meio Ambiente, Zelaya chegou a negociar com os pecuaristas de La Moskitia. Segundo o acordo firmado, em troca de interromper a destruição da estrada, os criadores de gado da região se comprometeram a deter a pecuária extensiva. Poucos dias depois, um grupo de líderes misquitos chegou a Tegucigalpa para exigir que o governo os considerasse. «Que não continuem ignorando o povo misquito», protestou Orlando Calderón da organização misquita Masta. «O objetivo da estrada era atravessar o rio e chegar por Warunta (Wampusirpi), onde eles têm a maior parte das propriedades narcopecuaristas. Mas fica difícil se os militares estão entre os invasores. Eles também buscam agarrar um pedaço de terra e fazem parte do grupo. Ali não há controle». «Ficamos felizes quando o ministro disse que a estrada seria destruída por proteção e que os militares evitariam as invasões, mas logo veio a conferência de Mel com os criadores de gado prometendo que a estrada não será destruída e que eles apoiarão a ideia para que possam entrar em suas regiões de trabalho. Os criadores de gado são em sua maioria de Olancho; muitos são testas de ferro de pessoas que estão nas altas cúpulas políticas», denuncia Calderón. E Calderón não está errado. Na Casa da Cultura de Juticalpa, a capital departamental, há um homem grisalho que assegura conhecer muito bem a história da cidade e da família Zelaya. Seu nome é Darío Euceda Roque. Ele é escritor, ex-colega de colégio do ex-presidente e fazia parte da equipe que redigia seus discursos na Casa Presidencial. Euceda Roque afirma ter descoberto que a linhagem dos Zelaya remonta aos tempos da Conquista. «Os primeiros Zelaya, os irmãos Santiago, Miguel e Joseph, chegaram ao México vindos da Espanha com o conquistador Hernán Cortés. Há no México uma cidade chamada Celaya. Eles fundaram essa cidade, a conquistaram com sua espada. Só que lá se escreve com ‘c’», assegura. Segundo o escritor, os Zelaya gostaram tanto do Valle de Lepaguare de Juticalpa quando chegaram ao departamento de Olancho que o pediram ao rei da Espanha. «Foi uma espécie de prêmio por seu trabalho de conquista, e o rei o concedeu a título pessoal. O Valle de Lepaguare ainda é deles. Eles receberam em 1536 esse título assinado pelo rei da Espanha. Sou advogado e sei que esses títulos têm valor». Os Zelaya de Olancho nunca perderam sua influência. No século xviii, Olancho era a maior e mais extensa área de criação de gado da América Central. Segundo Euceda, o governador, prefeito ou comandante de armas sempre foi um Zelaya. «Este século tem agora dois presidentes: Mel e sua esposa Xiomara».
Mas nem todos em Olancho aprovam figuras como Zelaya e Lobo. Sergio Antonio Campos, que se candidatou à Prefeitura de Catacamas com um movimento independente chamado «Espanta ratos», garante que os membros da família Zelaya foram «endeusados». «Lembrem-se que antes do golpe de Estado houve aqui uma divisão de dinheiro com o projeto da Quarta Urna, e acredito que a existência desses seguidores se deve ao dinheiro que repartiram», acusou Campos.
Geralmente, os que tudo têm criam dinastias para preservar o que acumularam. E com os Zelaya, o sucesso político de Mel e a atual ocupação de sua família na esfera política remontam ao impulso inicial dado por seu pai, o primeiro José Manuel Zelaya de Catacamas. José Manuel Zelaya pai e Ortensia Rosales geraram quatro filhos homens, o ex-presidente Mel (o mais velho deles), Carlos (atual secretário do Congresso Nacional), Héctor (assassinado ainda jovem) e Marco, que se casou com uma das filhas do ex-presidente liberal Carlos Roberto Reina (1994-1998). A história do pai dos Zelaya Rosales o apresenta como um dos responsáveis, juntamente com um grupo de militares, de «Los Horcones», um dos massacres de camponeses mais lembrados de Honduras. Embora tenha sido preso no final da década de 1970 por esse fato, ele foi beneficiado tempos depois por um indulto.
Gerardo Torres, vice-chanceler da República, diz que o caso de Los Horcones «é algo que eles sempre carregaram, que particularmente o presidente Zelaya sempre carregou». Contudo, Torres separa Mel Zelaya das ações do pai afirmando que, em seu momento, «denunciou a base secreta dos Contras nicaraguenses no Aguacate, em Olancho»6. Mel ainda conserva a propriedade de Los Horcones em Juticalpa e vários lotes da colônia Castaño dessa mesma cidade, onde passou sua adolescência.
Mas o início de Mel Zelaya na política ocorreu nos anos 1980, quando um dirigente do Partido Liberal «caiu em desgraça» e deixou um lugar vago. Então, Armando Rosales, secretário do Congresso Nacional e parente próximo dos Zelaya, fez uma proposta ao pai de Mel. Assim conta Darío Euceda: «Mel, há um espaço político deixado por Benigno. Coloque o Melito». «Vou colocar sim!», teria respondido o pai de Mel. Mas Mel Zelaya precisava de um apoio para transcender nacionalmente e o encontrou rapidamente em Carlos Orbin Montoya, o então presidente do Congresso, depois de ter sido considerado o ideólogo do movimento que levou à vitória o ex-presidente liberal José Simón Azcona (1986-1990). Mel não se esquece daquelas velhas lealdades. Em 2006, o favor de outrora foi devolvido a Orbin Montoya com a designação de representante de Honduras diante do Banco Centro-Americano de Integração Econômica (bcie) e, depois, diretor do bch. Antes do golpe, Orbin Montoya era um dos coordenadores do projeto da «Quarta Urna». Em 2022, aos 76 anos, também não foi esquecido: Xiomara Castro o colocou na gerência da estatal Hondutel.
Mel, o astuto
O escritor Darío Euceda afirma que a principal característica de Mel Zelaya na política é ser astuto. «Ele aplica bem a astúcia, fareja tudo», diz. Euceda diz ter visto esse brilho de astúcia no pacto que Zelaya referendou com um grupo de deputados dissidentes do Libre depois do caos que protagonizaram pelo controle do Congresso Nacional. Mel controla o partido Libre, cujos estatutos lhe conferem, além do papel de representante legal, os de coordenador geral, presidente da coordenação nacional e integrante da comissão política. Todas as decisões tomadas pela Coordenação Nacional ou pela Assembleia Nacional devem passar pelo ex-presidente Zelaya. Desde sua inscrição em 2012, o Libre só teve um representante legal e um coordenador geral, e assim continuará sendo, pelo menos até 2025. Como os Bukele em El Salvador, os Zelaya também ocupam um espaço central no partido como fundadores. Mel é acompanhado pela presidenta e por seu irmão, sobrinho, pelo ministro da Defesa e por outras figuras com cargo no governo. Ganham destaque Rodolfo Padilla Sunsery, ex-prefeito de San Pedro Sula (que também foi beneficiado pela anistia com quatro cartas de liberdade após acusações de corrupção); Rixi Moncada, atual ministra das Finanças; Juan Barahona, então sindicalista e hoje deputado; Rafael Alegría, dirigente camponês e atual subdiretor do Instituto Nacional Agrário; Rafael Edgardo Barahona, atual presidente do Instituto Hondurenho de Transporte Terrestre; e Beatriz Valle, congressista atualmente distanciada de Mel Zelaya.
Nas últimas eleições legislativas, Valle e Jorge Cálix, dois líderes indiscutíveis do m28, movimento impulsionado por Mel após a fundação do partido em 2012 e que faz parte do Libre, se tornaram os deputados mais votados da história do país. Mas a crise durante a eleição do conselho de administração no Congresso Nacional fez com que eles passassem a ser considerados líderes «traidores». Contra o que poderia ser esperado, a histórica vitória de Xiomara Castro e a avalanche de votos do Libre nas legislativas não significaram unidade para o partido. Valle considera agora que foram vítimas de rearranjos políticos que já envolviam relações desgastadas. Ela, por exemplo, assegura que sua relação com Zelaya foi quebrada desde que se candidatou a deputada. «Notei que Mel já quase não falava comigo. Falava muito pouco. Achei estranho, mas depois de 23 anos, como vou desconfiar dele? Eu nem imaginava».
Em Honduras, é comum que os líderes do Congresso se tornem cartas eleitorais viáveis para futuras eleições presidenciais ou que, pelo menos, obtenham cargos-chave de direção no Congresso. Com suas vitórias, Cálix e Valle apontavam para esse caminho, mas surgiram rixas antigas e pactos pré-estabelecidos. E assim, enquanto Cálix reivindicava o comando do Congresso com apoio de Valle e outros deputados, a presidenta eleita exigia outro caminho e o respeito de um pacto que tinha feito com o Partido Salvador de Honduras, que apoiou sua candidatura. Nesse acordo, a Presidência estava destinada ao deputado Luis Redondo, do Partido Inovação e Unidade Social-Democrata (pinu-sd), e assim foi acertado finalmente em um pacto firmado por Mel Zelaya com Jorge Cálix na Casa Presidencial sem a presença da presidenta.
Mais de 100 dias depois do cisma no Libre, os Zelaya só se fortaleceram. Carlos Zelaya acabou nomeado secretário do Congresso Nacional, um cargo-chave no âmbito operacional do hemiciclo e, na prática, um presidente do Legislativo de fato. Para chefe de bancada do Libre foi nomeado Rafael Sarmiento, familiar direto da presidenta.
O tempo passa muito rápido em Honduras. Em Catacamas e nos corredores do Congresso e da Casa Presidencial, já há quem tente identificar qual será o próximo movimento dos Zelaya e se isso inclui promover algum membro do clã como o futuro sucessor de Xiomara. Dassaev Aguilar, atual diretor de Relações Públicas da Casa de Governo, publicou no último 9 de maio uma foto de Héctor Zelaya, o filho-secretário privado de Xiomara7. Aguilar disse que se encontrava «com o próximo presidente de Honduras». Diante dos questionamentos, ele tentou escapar afirmando que não dizia que isso ocorreria no próximo processo eleitoral. Fato é que os Zelaya acumularam poder e não querem que os episódios de junho de 2009 se repitam.
Berta Oliva, do Cofadeh, diz que não quer nem repetir as palavras «golpe de Estado» por não desejar que a história se repita, mas insiste que as estruturas que deram o golpe continuam intactas. «Quem são os que tiram e colocam presidentes? Quem dá golpes de Estado no mundo todo? Os Estados Unidos», ela mesma responde. E argumenta:
O que os poderes de fato querem demonstrar agora é que o governo de Xiomara é frágil. Quiseram fragilizá-lo com as críticas à anistia e, no início, com o ocorrido no Congresso. Sobre Zelaya ter o controle e exercer o poder, se ele faz parte do poder e ergue o país, qual é o problema? Quando se instalou a ditadura, esse homem [Juan Orlando Hernández] tinha seu irmão no Congresso, sua irmã como ministra, seu irmão de assessor em segurança, toda a família no governo, e isso não era visto como um problema.
Doze anos depois do golpe de Estado, sentado em sua cadeira, minúsculo na enormidade de sua casa, o general Romeo Vásquez analisa a Honduras hoje dirigida por aqueles que provocaram nele um medo tal que preferiu romper as normas constitucionais para frear a incorporação do país a um «regime como o da Venezuela». «Eles voltaram e ganharam um partido por essa situação de 2009. Deveriam estar felizes», afirma.
Na opinião de Vásquez, a presidenta pode ter uma história diferente. «Ela entrou com o voto do povo em uma ação bonita, democrática e transparente.» Ainda que não concorde com os primeiros passos, ele acredita que é preciso dar espaço para um governo que acaba de começar.
Nota: uma versão deste artigo foi publicada em espanhol em Nueva Sociedad No 300, 7-8/2022, disponível em
na revista Contra Corriente, 27/5/2022, com o título «El retorno del clan Zelaya», disponível em www.nuso.org
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1.
«Pronunciamiento ‘Pacto de impunidad’», 3/2/2022, disponível em www.cna.hn/pronunciamiento-pacto-de-impunidad/.
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2.
«Espionaje, tráfico gris, abusos, traición» em La Prensa, 26/1/2008.
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3.
«Informe No 382/21 Petición 100-10 Informe de Admisibilidad José Manuel Zelaya Rosales y otros, Honduras», disponível em www.oas.org/es/cidh/decisiones/2021/hoad100-10es.pdf.
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4.
«Descubren misteriosa carretera en la Biosfera de Río Plátano» em Proceso Digital, 28/9/2007.
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5.
«Mel Zelaya despide a su hermano y a su yerno» em La Prensa, 28/1/2007.
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6.
Contras foram grupos armados apoiados pelos eua para combater a Revolução Sandinista.
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7.
Rony Martínez: «Con el próximo presidente…», tuíte, 10/5/2022, disponível em https://twitter.com/ronymartinezhn/status/1523855693790564352.