Tema central
NUSO Nº 2019 / Dezembro 2019

Solidariedade cidadã em democracias violentas

Solidariedade cidadã em democracias violentas

Imaginemos que o México fosse governado por uma ditadura que tivesse assassinado 140.000 pessoas nos últimos 15 anos. Que o país estivesse sob um regime que praticasse tortura, sequestro e extorsão de forma sistemática. Que exibisse suas vítimas em praças públicas, as enforcasse em pontes, as abandonasse em caminhonetes, desnudas, amordaçadas, mutiladas. Que armazenasse em seus necrotérios aproximadamente 16.000 corpos sem identificação. E que fizesse desaparecer dezenas de milhares de seus cidadãos enterrando-os em covas comuns ou dissolvendo-os em barris de ácido.

Isso seria obviamente um horror, uma situação intolerável, um escândalo mundial. Felizmente, não é esse o caso. Desde 2000, o México é regido por uma democracia. Uma democracia deficiente e decepcionante, mas uma democracia em última análise. Infelizmente, os números e casos de violência são reais. Não são números e casos de um governo ditatorial, mas de uma guerra civil econômica (não política) que descrevemos habitualmente como «guerra contra as drogas» ou «narcoviolência».

Nas últimas duas décadas do século xx, o México transitou lenta e pacificamente rumo a uma democracia, após 70 anos de hegemonia do Partido Revolucionário Institucional (pri). E, na primeira década do século xxi, o país caiu vertiginosamente em uma guerra civil. Não se trata de uma guerra pelo Estado ou em nome de uma ideologia. A guerra mexicana é uma das chamadas «novas» guerras civis, conflagrada na busca por ganhos materiais, e não por razões políticas. É uma guerra que engloba várias guerras em si mesma. Uma guerra opaca na qual convivem, se misturam e se reforçam a violência criminosa de empresas privadas ilegais e a de agentes do Estado; a violência entre organizações criminosas e dentro delas; a violência exercida contra combatentes e contra a população civil. Diante da vertiginosa escalada de atrocidades organizadas, a maioria dos cidadãos mexicanos tem reagido com uma combinação de espanto e indiferença. Tem tido uma reação semelhante à que temos habitualmente quando vemos notícias terríveis no plano internacional: elas talvez nos espantem, entristeçam ou enfureçam por um momento, mas nada além disso. Salvo de maneira excepcional, essas notícias não nos fazem levantar do sofá diante do televisor. Elas não nos empurram ao espaço público nem à ação política.

Nas «democracias violentas»1 da América Latina, temos visto os cidadãos responderem de muitas maneiras à violência e à injustiça que os rodeiam, desde o êxodo centro-americano até o «voto pela ordem» (sobrepujando os limites legais) nas eleições presidenciais brasileiras de 20182. No entanto, a paralisia dos cidadãos mexicanos diante da violência criminosa não parece ser um fenômeno excepcional; ao contrário, parece ser uma atitude bastante comum e que expressa uma profunda contradição nas democracias dilaceradas pela violência do crime. Por um lado, os cidadãos são atores fundamentais, imprescindíveis, de qualquer solução para a violência endêmica. Em um regime democrático, os cidadãos fazem a diferença, e talvez sejam ainda mais importantes em uma democracia vitimada pela violência organizada. Por outro, as condições estruturais de uma guerra civil tornam muito difícil que eles se mobilizem. A opacidade da violência, sua ambiguidade moral e a brutal assimetria de poder entre grupos armados e a população civil criam enormes obstáculos para o envolvimento dos cidadãos. A construção do Estado de direito exige que os cidadãos se mobilizem, mas a violência organizada tende a paralisá-los.

A relevância da opinião pública

Em um contexto de violenta concorrência entre grupos armados ilegais, em uma situação na qual a tortura, a morte organizada e o desaparecimento de pessoas ocorrem às dezenas de milhares, por que deveríamos pensar que os cidadãos comuns podem ter alguma ingerência sobre o curso dos acontecimentos? Que diferença eles podem fazer? Em que incidem suas atitudes e ações? Por que deveríamos pensar que a opinião pública importa? Por que vale a pena estudá-la? Segundo um ditado africano, na guerra a população civil é como o pasto sob os pés de elefantes em luta. Mas não completamente. Os elefantes não estão por toda parte. E mesmo onde estejam, pastando ou lutando, os civis contam com recursos de mobilização e resistência civil que não possuem em um contexto ditatorial. Eles gozam de direitos políticos e liberdades civis; têm acesso ao espaço público, podem votar, militar em partidos e associações civis, manifestar-se nas ruas e levantar a voz. Certamente, tudo isso pode ocorrer submetido a restrições, mas também com certas margens de ação. Mesmo sob a sombra da violência do crime organizado, os cidadãos comuns possuem três vias principais de influência:

a) A opinião pública pode influenciar a discussão pública e as políticas públicas. No México, diante da escalada da «narcoviolência», temos falado muito sobre falhas do Estado e do governo, mas pouco sobre as falhas da democracia. Contudo, o simples fato de a «guerra total contra o crime organizado» não ter sido um tema de destaque nas eleições presidenciais de 2006 antes de seu lançamento oficial e tampouco em 2012, mesmo 60.000 mortos depois, é preciso considerar um fracasso maior da democracia. Quando falha a democracia, muitos atores estão falhando: o governo e a oposição, os partidos políticos, os meios de comunicação e a sociedade civil. Em uma democracia, supõe-se que todos esses atores devem responder às preferências e reivindicações dos cidadãos. Em última instância, são os cidadãos que podem sancionar e corrigir as falhas democráticas.

b) A opinião pública pode influenciar o crime organizado. A ideia convencional segundo a qual os grupos armados dependem da população civil para obterem «os recursos necessários para construir uma organização» não se aplica para os cartéis da droga3. Os cartéis não necessitam que a população civil lhes forneça teto e alimentação. Eles compram seus produtos no supermercado e adquirem suas casas de alguma empresa imobiliária. Mas eles precisam de duas coisas: pessoas e silêncio. Necessitam recrutar gente para ocupar todos os postos necessários na divisão do trabalho criminoso e necessitam que os cidadãos civis, quando tomem conhecimento de fatos criminosos, não os denunciem às autoridades ou à imprensa. Quase inevitavelmente, as opiniões que os cidadãos tenham sobre os atores criminosos afetam tanto a facilidade para arregimentar pessoas como a probabilidade de que ocorram denúncias.

c) A opinião pública pode afetar a sociedade civil organizada. Diante do enorme fracasso do Estado em proteger seus cidadãos de seus próprios cidadãos (e de si mesmo), nos últimos anos familiares de vítimas da violência vêm formando diversos movimentos de protesto em diversos pontos do país. É muito provável que a opinião pública exerça efeitos significativos tanto sobre os esforços e as capacidades de mobilização das associações de vítimas quanto sobre a sensibilidade de políticos e funcionários públicos de alto escalão para suas reivindicações.

Tudo isso é um rosário de belas possibilidades. Contudo, não é fácil que o potencial de intervenção cidadã se materialize. No México, as tendências de violência endêmica que prevalecem nesses últimos anos têm sido a normalização da violência e a passividade dos cidadãos diante dela. Os episódios de mobilização de cidadãos a favor das vítimas, embora impressionantes e comoventes, foram passageiros. É preciso entender, no entanto, que os imperativos morais e políticos de solidariedade cidadã enfrentam obstáculos muito poderosos que a inibem na prática.

A normalização da violência

A escalada da violência organizada nos últimos dez anos pegou o país de surpresa. O México parecia se encaminhar para uma normalidade democrática, mas o declínio à normalidade criminosa foi vertiginoso. Diante da difusão aterrorizante da violência extrema, podemos constatar que a resposta que prevalece tem sido a normalização. Muito rapidamente, tanto o governo como a sociedade deixaram de se surpreender.

O governo de Felipe Calderón (2006-2012), ao ver o país explodir em suas mãos, declarou um tipo de estado de emergência nacional ao mesmo tempo em que tratava de dar tranquilidade aos cidadãos em geral. Essencialmente, o governo descrevia a violência como conflito entre grupos criminosos rivais que se matavam entre si. As heroicas forças de segurança se encarregariam de salvar a pátria desses criminosos. As pessoas decentes, ou simplesmente as pessoas – os cidadãos, o povo, o país, nossa sociedade, as comunidades, as famílias mexicanas –, não precisariam fazer nada nem teriam nada a temer4.

O governo de Enrique Peña Nieto (2012-2018) substituiu o discurso da negação pela negação pura e simples. Em lugar de dizer «temos um grande problema, mas não se preocupem, pois é um assunto entre pessoas más que nós, as pessoas boas, resolveremos», o governo dizia essencialmente: «temos um problema, mas não é preciso se alarmar tanto, pois há necessidades mais importantes a atender». Em lugar de externalizar a violência como assunto de criminosos simbolicamente expulsos da nação, o novo governo tentava minimizar a violência. As fórmulas eram diversas: a violência é pior em outros países, sempre existiu, afeta somente algumas partes do território nacional, está se reduzindo. A mensagem aos cidadãos era a mesma do governo anterior: vocês podem ficar tranquilos, pois nós nos encarregamos disso.

Durante esses anos, enquanto a violência crescia, havia muitos sinais de sua normalização também no âmbito individual. Com rapidez osmótica e uma agilidade que às vezes parecia festejar a transgressão de todos os limites civilizatórios, a linguagem cotidiana foi um lugar privilegiado de normalização da violência. No México, foram mobilizados muitos recursos linguísticos para transformar o horror extraordinário em um fato trivial. Foi sendo adotada a própria linguagem do mundo do crime para descrever seus atores (el cartel, el capo, el sicario, el halcón, la mula, el pozolero), os atos criminosos (la ejecución, el levantamiento, el cobro de piso), os dispositivos criminosos (la casa de seguridad, el cuerno de chivo) e as vítimas da violência (los descabezados, colgados, encobijados, encajuelados, enteipados)5. Absorvendo esse universo de eufemismos e falsos tecnicismos, criou-se um mundo onde a violência é um fenômeno delimitado, compreensível e esperável. A ampla categoria dos «narcotraficantes» e o uso extensivo do prefixo correspondente (narcoviolência, narcocova, narcomanta, narcopolicial, narcopolítico, narcofesta, narcocasa) servem ao mesmo propósito: criar uma distância simbólica entre o mundo civilizado e um mundo de barbárie em que a violência é algo normal6.

A normalização simbólica foi reforçada por diversas estratégias de adaptação individual. Talvez a mais importante delas foi o autoconfinamento. Com o espaço público transformado em território violento, os cidadãos se refugiaram em seus espaços privados. Segundo dados do Instituto Nacional de Estatística e Geografia (inegi), «por medo de se tornar vítima de algum crime», mais da metade dos mexicanos já não saem à noite, e duas em cada três crianças são proibidas de sair às ruas7.

Mobilização excepcional

É um lugar comum pensar que a sociedade civil mexicana é relativamente frágil. Também tem sido uma observação comum que a sociedade civil em seu conjunto não tenha se mostrado ativa com relação à segurança pública8. Quem certamente se mobilizou foram as vítimas da violência. Inicialmente, foram somente algumas figuras individuais que surgiram no espaço público nacional, como o empresário Alejandro Martí, transformado em ativista proeminente contra a insegurança depois que seu filho Fernando foi sequestrado e assassinado. Depois, no entanto, vimos duas grandes ondas de mobilização coletiva a favor das vítimas da violência do crime.

Já desde o início da chamada «guerra contra as drogas», começaram a surgir diversos movimentos de vítimas em muitas partes do território mexicano. Durante vários anos, entretanto, esse caleidoscópio de movimentos locais permaneceu praticamente invisível para a capital da república. Foi com o Movimento pela Paz com Justiça e Dignidade, iniciado na primavera de 2011 pelo poeta Javier Sicilia após o assassinato de seu filho por policiais locais, que o conjunto rico e diverso de movimentos locais de vítimas se fez ver e ouvir em escala nacional (ao menos durante alguns meses de atenção midiática)9.

O movimento de Sicilia não conseguiu produzir transformações estruturais no Estado e na sociedade mexicana (seria pedir muito). Sua grande conquista histórica foi simbólica: o reconhecimento público das vítimas como vítimas e como seres humanos, e não como números, danos colaterais, produtos de queima de arquivo, criminosos procurados. Pelo menos durante alguns poucos meses de 2011, as vítimas tiveram presença pública e faces expostas para quem quisesse ver, escutar suas histórias e compartilhar de suas lágrimas10. Mesmo antes de Sicilia decidir que já não aguentava mais e que precisava parar de marchar, o tema das vítimas já havia saído outra vez da agenda pública. No ano seguinte, os eleitores deixaram o Partido Ação Nacional (pan) – o partido do presidente que havia vestido uniforme militar – em terceiro lugar nas eleições presidenciais. Durante toda a campanha eleitoral, os partidos e candidatos evitaram falar da violência. E como havia sido uma estratégia vencedora nas eleições, ao assumir seu mandato em dezembro de 2012, o presidente Peña Nieto promoveu o silêncio como política governamental. Ele tratou de direcionar a discussão pública para as chamadas reformas estruturais na economia, na educação e nas telecomunicações.

A estratégia do silêncio eloquente funcionou por um tempo. Foi possível mantê-lo até início de 2014 durante a chamada crise das autodefesas em Michoacán, que levou o Poder Executivo federal a substituir o sistema político daquele estado por um tipo de emissário presidencial com plenos poderes. Mas a gestão governamental do silêncio foi quebrada finalmente com a chacina de Iguala, o desaparecimento de 43 estudantes da escola normal rural de Ayotzinapa por criminosos estatais (policiais municipais) e seu provável assassinato posterior por parte de criminosos privados (os agentes de repressão do cartel local dominante)11. Graças à capacidade de ação coletiva dos estudantes de Ayotzinapa, a clara inocência das vítimas e a participação direta de agentes do Estado, o crime de Iguala despertou a sociedade civil mexicana. A onda de solidariedade foi ampla e maciça, alcançando quase todos os estados do país e transcendendo inclusive suas fronteiras.

O movimento de solidariedade com Ayotzinapa gerou grandes expectativas. Tanto na discussão pública como nas conversas privadas, percebiam-se uma crise dramática e a necessidade imperativa de mudanças radicais. Havia quem falasse em refundação do Estado, da república, da sociedade mexicana. A retórica da revolução pairava no ar, e parecia que estávamos diante de uma profunda ruptura de atitudes, discursos e políticas perante a violência organizada. Contudo, o outono da indignação dos cidadãos durou pouco. Depois de apenas três meses de mobilização, foram impostos os limites estruturais inerentes ao movimento: sua agenda limitada ao caso dos estudantes desaparecidos, a ausência de um programa mais amplo de transformação, o âmbito relativamente estreito de sua base social, a falta de estruturas organizacionais em escala nacional, sua recusa a se coordenar com outros movimentos de vítimas, seu antagonismo em relação aos partidos políticos e seu fácil descrédito midiático devido às táticas disruptivas empregadas por suas parcelas radicais.

Todas as mobilizações cidadãs são difíceis de sustentar. É sempre difícil converter a força dos grandes números em transformações políticas e institucionais substantivas. Muitas vezes, ocorre o que ocorreu nesse caso: a onda de mobilização se esgota, as energias dos cidadãos se dissipam, a indignação ativa volta a se transformar em resignação passiva. O entusiasmo dos cidadãos cede à frustração, e as mudanças exigidas deixam apenas rastros na memória. Seis meses depois do crime de Iguala, parecemos estar de volta ao statu quo ante. Enquanto o caso dos estudantes de Ayotzinapa continua envolto em uma densa teia de suspeitas, mantém-se também – longe da opinião pública – a organização cotidiana de assassinatos e desaparecimentos. Tanto o governo como os cidadãos voltamos a nos ocupar de outras coisas.

Os obstáculos para a solidariedade

Nas ditaduras, sabemos que os cidadãos não são cidadãos. Eles não têm voz nem voto, não elegem o ditador nem aprovam suas políticas, não têm responsabilidade direta na repressão estatal e são objetos de violência, não seus executores. De qualquer forma, mesmo nas ditaduras, os indivíduos são mais que vítimas passivas do regime; de muitas maneiras, eles podem colaborar para sua reprodução e, de muitas maneiras, podem minar seu funcionamento. Todos os dias, eles se veem diante de escolhas difíceis entre imperativos morais e riscos pessoais. Com toda a distância existente entre os mundos da violência a partir «de cima» e da violência «de baixo», nas guerras civis os cidadãos enfrentam dilemas morais semelhantes aos enfrentados em ditaduras. O que eles sabem sobre atos ou campanhas de violência criminosa? O que querem saber? Que postura tomam diante dela? O que fazem para impedir a violência criminosa? Eles fazem tudo o que podem? Não há respostas fáceis, nem diante das ditaduras nem nas guerras civis.

A dificuldade da solidariedade cidadã, sua exigência e precariedade são notadas de forma muita clara quando analisamos seu fracasso em contextos fáceis. Ficamos incomodados quando os cidadãos abrem mão de intervir diante de atrocidades em grande escala, como genocídios ou campanhas ditatoriais de repressão política. Mas nos irrita também quando eles abrem mão de intervir perante ataques ordinários contra seus cidadãos. A sociologia e a psicologia social analisam há décadas o papel dos bystanders, dos espectadores passivos diante de injustiças cotidianas que ocorrem à sua frente sem que intervenham para interrompê-las. O caso paradigmático que inspirou centenas de estudos foi a morte violenta de Catherine «Kitty» Genovese em 1964 na cidade de Nova York. Em uma noite de inverno, essa jovem foi brutalmente agredida e esfaqueada na entrada de seu edifício. Durante os 40 minutos em que buscou se defender contra seu assassino, pelo menos três dezenas de vizinhos puderam ouvir seus gritos; 38, segundo a reconstituição jornalística. Mas ninguém pegou o telefone para chamar a polícia (exceto um deles, quando já era tarde demais)12. O caso se tornou uma poderosa ilustração da frieza e indiferença dos moradores urbanos modernos diante do sofrimento de seus concidadãos. A recusa dos vizinhos de «Kitty» Genovese a atender a seus gritos de socorro causou profunda irritação pública, considerando a facilidade que tinham para tomar uma atitude. O caso reunia praticamente todas as condições estruturais que permitem que os cidadãos acudam de maneira segura e eficaz para proteger seus concidadãos em situações de perigo ou injustiça:Informação: possivelmente, como era uma noite gelada de inverno, os vizinhos estavam dormindo com as janelas fechadas. De qualquer maneira, eles se encontravam suficientemente perto para acordar com os gritos de «Kitty» Genovese. Também era difícil que os gritos desesperados de ajuda fossem interpretados como sintoma de um desentendimento normal de casal. Estava claro que alguém corria sério perigo. Havia pouca margem para ambiguidades.

Injustiça: a divisão de papéis e responsabilidades entre perpetrador e vítima era inequívoca. Não havia nenhuma dúvida sobre a responsabilidade pessoal e moral do agressor que apunhalou a jovem várias vezes e a atacou sexualmente. Também não havia dúvida da inocência da vítima indefesa. A condição moral do assassinato era clara: não se tratava de um ato de legítima defesa nem de um crime com conotações políticas. Era um simples ato criminoso, agravado por seu caráter fortuito e sem motivo.

Intervenção: as testemunhas auditivas do ataque tinham várias opções para intervir. Algumas abriram a janela e gritaram algo, sem que isso impressionasse muito o assassino. Elas também poderiam calçar os chinelos e descer as escadas. Mas sobretudo, poderiam fazer algo simples como ligar para a polícia. É possível que um telefonema pudesse salvar a vida de «Kitty». Essa teria sido uma intervenção eficaz que não implicaria nenhum risco e praticamente nenhum custo para os vizinhos.

Essas três dimensões são fundamentais para a solidariedade ativa dos cidadãos. Para que ajam em socorro de outras pessoas, eles necessitam ter certas informações mínimas sobre os fatos, ver que representam injustiças concretas que merecem sua intervenção e ter expectativas razoáveis de que podem intervir de maneira minimamente segura e eficaz. Quando não sabem bem o que está acontecendo, se não notam claramente quem são os vilões e as vítimas, e quando não percebem que podem fazer algo que ajude a vítima sem se exporem a graves riscos, torna-se muito improvável que saiam de seu papel de espectadores passivos. A grande irritação do caso «Kitty» Genovese decorreu do fato de que aparentemente todas as condições eram favoráveis para a intervenção dos cidadãos: era um caso claro de emergência criminosa, havia informações suficientes e opções fáceis de intervenção. Em contextos de violência do crime organizado, entretanto, nada disso pode ser considerado garantido. Ao contrário, as condições estruturais conspiram contra a solidariedade ativa dos cidadãos.De maneira esquemática, a tabela compara as condições estruturais a que são expostos três diferentes tipos de bystanders: as testemunhas oculares que presenciam um ato de injustiça cotidiana, os sujeitos que vivem sob uma ditadura repressiva e os cidadãos imersos em uma guerra civil econômica como no caso mexicano. Para começar, a configuração básica de atores é muito diferente nas três situações. A clássica testemunha presencial de injustiças cotidianas se vê diante de um conjunto bem delimitado de atores, com responsabilidades e linhas divisórias claras. Há poucos perpetradores e poucas vítimas, e não há como confundir os respectivos papéis de cada um. Em um contexto democrático, o Estado aparece como aliado potencial das vítimas. Muitas vezes, não se espera que o cidadão espectador intervenha de maneira pessoal, mas que peça ajuda a um representante do Estado.

Já em uma ditadura, o número de atores é muito grande. O Estado é o perpetrador principal que opera de maneira especializada, com alta divisão do trabalho, embora a responsabilidade final se concentre na cúpula política do regime. Nas guerras civis, as responsabilidades são mais difusas, dispersas, opacas. Não há um ditador central nem uma burocracia repressiva que atuem como responsáveis pela violência criminosa. Em vez de um regime repressivo nacional, os cidadãos estão sujeitos a redes ditatoriais locais. Há muita variação territorial e social na violência privada exercida pelos grupos armados ilegais. Os atores da violência também são vários, mas estão geralmente ocultos. Além disso, as linhas divisórias entre eles tendem a não ser nebulosas. As redes criminosas se inserem no Estado e se expandem na sociedade. As reivindicações dos cidadãos por paz e justiça, portanto, não têm destinatários claros. Elas se direcionam ao Estado por seu fracasso de fornecer proteção, mas também aos atores sociais que surgem como soberanos privados sobre a vida e a morte.

Os três contextos paradigmáticos também se contrastam em suas estruturas de informação. A testemunha presencial vê tudo com seus próprios olhos. Ela não necessita de intermediários ou intérpretes. A situação é transparente, e o acesso à informação é direto. O cidadão desempenha o papel de espectador em um sentido literal: faz parte do público ao redor de um crime que está sendo cometido ao vivo. Ele não pode se desviar de suas responsabilidades alegando desconhecimento. Em contraste, tanto as ditaduras como as guerras civis formam mundos opacos. Quase toda a informação é indireta, mediada pelo governo, pelos meios de comunicação, pelos rumores. Muitas vezes, entre o que os atores da violência revelam, distorcem e ocultam, é muito difícil saber quem fez o que a quem e por quê. Para a testemunha que presencia uma agressão física na via pública, a avaliação moral do ato é geralmente clara. Há uma separação nítida de papéis entre o agressor culpado e a vítima inocente. O espectador casual não terá muita dificuldade para julgar a agressão como uma violação flagrante das normas de convivência cívica. Por sua vez, as campanhas ditatoriais de repressão política estão geralmente sujeitas a controvérsias. Todo democrata as condenará, ao passo que os partidários do regime autoritário as justificarão.

Nas guerras civis econômicas, a clareza dos julgamentos morais tende a se diluir ainda mais. Os observadores tendem a distinguir entre vítimas inocentes e pessoas culpadas. Os primeiros são os civis sem envolvimentos com o crime que, por azar, se tornam «vítimas colaterais» da violência. Já os culpados são os combatentes que entraram na guerra por vontade própria (e sem nenhuma justificativa política que lhes possa servir de atenuante) e pagaram o preço correspondente. Provavelmente, nas guerras civis econômicas, os observadores também tendem a distinguir entre perpetradores maus e bons. Os primeiros vão à guerra unicamente para enriquecer, ao passo que os perpetradores bons dividem com sua família ou comunidade as riquezas obtidas com o crime. Na medida em que são traçadas essas distinções morais entre vítimas e perpetradores, a violência criminosa surge como um fato moralmente ambíguo tolerado ou condenado somente de maneira frágil.

Finalmente, os «espectadores passivos» da violência contam com margens de intervenção muito diferentes nas três situações prototípicas. Sobretudo quando um simples telefonema para o serviço de emergência tem a possibilidade de resolver o problema, as clássicas testemunhas presenciais de crimes cotidianos contam com uma opção de intervenção que é eficaz para as vítimas e segura para si mesmas. Além disso, basta que intervenham de maneira individual. Elas nem sequer enfrentam problemas de ação coletiva13. Em contraste, tanto nas ditaduras como nas guerras civis econômicas, os cidadãos têm baixíssima capacidade de incidência individual, e muito do que possam fazer envolve riscos pessoais concretos.

Embora mais promissoras, as ações coletivas são sempre dispendiosas, ainda mais em contextos de violência criminosa, seja ela emanada do Estado ou de organizações privadas.

Conclusão

A violência organizada torna estruturalmente difícil que os cidadãos, como espectadores passivos, sejam solidários com as vítimas. Ela gera danos sistemáticos nos requisitos cognitivos da solidariedade cidadã (o conhecimento dos fatos), em suas bases normativas (a percepção de injustiça) e em seus fundamentos práticos (responsabilidades claras e opções de intervenção eficazes e seguras). A difusão de responsabilidades, a opacidade, a ambiguidade moral e a impotência não são um terreno fértil para a intervenção dos cidadãos. Na verdade, esses elementos atuam como um convite para a indiferença, a passividade e a negação. Eles convidam os cidadãos a lavarem as mãos e delegarem a solução do problema aos políticos profissionais, seja sob o manto do populismo penal que promete eliminar todos os criminosos (Bolsonaro), seja sob o manto do populismo caridoso que promete acabar com a violência eliminando a pobreza (López Obrador).


Nota: este artigo é o início adaptado e ampliado da introdução de A. Schedler: En la niebla de la
guerra. Los ciudadanos ante la violencia criminal organizada
, 2ª ed., CIDE, Cidade do México, 2018. A
versão original deste artigo foi publicada em espanhol em Nueva Sociedad Nº 282, 7-8/2019, disponível
em ‹www.nuso.org›. Tradução de Luiz Barucke.

  • 1.

    Enrique Desmond Arias e Daniel M. Goldstein (orgs.): Violent Democracies in Latin America, Duke UP, Durham, 2010.

  • 2.

    Ver Thomas Pepinsky: «Southeast Asia: Voting against Disorder» em Journal of Democracy vol. 28 Nº 2, 4/2017.

  • 3.

    Jeremy M. Weinstein: Inside Rebellion: The Politics of Insurgent Violence, Cambridge UP, Cambridge, 2006, p. 339.

  • 4.

    F. Calderón Hinojosa: «Sexto informe de gobierno», Cidade do México, 3/9/2012.

  • 5.

    Embora alguns desses termos tenham tradução direta e com sentido semelhante no contexto brasileiro, há outros que, por falta de correlatos no português, perderiam a intensidade que possuem em seu contexto local se fossem traduzidos. Sendo assim, optou-se por manter todos os termos como são mencionados pelo autor no artigo original e incluir nesta nota uma tradução ou explicação sucinta de seu significado. Cartel: organização criminosa, cartel de drogas; capo: chefe de cartel de drogas; sicario: assassino de aluguel, sicário; halcón: vigia; mula: pessoa que transporta drogas em pequenas quantidades; pozolero: encarregado de dissolver cadáveres em ácido; ejecución: execução, assassinato; levantamiento: sequestro; cobro de piso: espécie de tributo ilegal cobrado por meio da extorsão de moradores e comerciantes de uma região dominada por um cartel de drogas; casa de seguridad: local utilizado para armazenar drogas, armas, dinheiro e outros artigos relacionados com a atividade do tráfico de drogas; cuerno de chivo: fuzil ak-47; descabezados: decapitados; colgados: enforcados; encobijados: cadáveres embalados em cobertores; encajuelados: cadáveres abandonados em porta-malas de carros; enteipados: amordaçados com fita adesiva [N. do T.].

  • 6.

    Julieta Lemaitre: «Civilization, Barbarism, and the War on Drugs: The Normalization of Violent Death in Mexico and Colombia», trabalho apresentado na 109ª Reunião Anual da American Political Science Association (APSA), Chicago, 29 de agosto a 1o de julho de 2013; Lilian Paola Ovalle: «Imágenes abyectas e invisibilidad de las víctimas. Narrativas visuales de la violencia en México» em El Cotidiano Nº 164, 2010.

  • 7.

    INEGI: «Encuesta nacional de victimización y percepción sobre seguridad pública (ENVIPE) 2014. Principales resultados», INEGI, Aguascalientes, 2014, p. 39.

  • 8.

    Steven Dudley e Sandra Rodríguez: «Civil Society, the Government and the Development of Citizen Security», Working Paper Series on Civil Engagement and Public Security in Mexico, University of San Diego, San Diego, 2013, p. 5.

  • 9.

    Sobre o surgimento dos movimentos de vítimas no México, v. Lauren Villagran: «The Victims’ Movement in Mexico», Working Paper Series on Civil Engagement and Public Security in Mexico, University of San Diego, San Diego, 2013. Com o título de «locais pela paz», o portal de internet do Movimento pela Paz com Justiça e Dignidade oferece diversas conexões relevantes: www.mpjd.mx.

  • 10.

    O documentário Javier Sicilia: En la soledad del otro, de Luisa Riley (Canal 22, 2013) narra o início catártico do movimento.

  • 11.

    Ana Gabriela Rojas: «La ONU dice que la investigación de la desaparición de los 43 estudiantes de Ayotzinapa en México fue ‘afectada por torturas y encubrimiento’» na BBC em espanhol, 15/3/2018.

  • 12.

    As crônicas originais sobre o caso foram reeditadas em Abraham Michael Rosenthal: Thirty-eight Witnesses: The Kitty Genovese Case [1964], Melville House, Nova York, 1999.

  • 13.

    Ironicamente, quando o número de testemunhas aumenta, a facilidade da intervenção pode acabar bloqueando-a. Essa é a explicação mais plausível do fracasso coletivo dos vizinhos de «Kitty» Genovese. Como eles não precisavam se coordenar positivamente, acabaram coordenando-se negativamente. Ninguém fez nada, pois todos podiam esperar que os demais fizessem algo, já que parecia uma atitude tão simples. Quando o peso da responsabilidade se dilui entre muitos espectadores, cada um pode repeli-la dizendo: «E por que eu, se qualquer um dos demais pode fazer o mesmo sem nenhum problema?».

Este artículo es copia fiel del publicado en la revista Nueva Sociedad 2019, Dezembro 2019, ISSN: 0251-3552


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