Tema central

O processo constituinte no Chile

Entre a utopia e uma realidade em constante mudança


Nueva Sociedad 305 / Mayo - Junio 2023

O Chile realiza sua terceira tentativa de superar a Constituição de 1980, após o fracasso da proposta de Michelle Bachelet e do processo constituinte iniciado após as tensões sociais de 2019. Se o problema da Convenção anterior era estar «à esquerda» no Chile, a atual corre o risco oposto: estar muito «à direita». Uma nova derrota na tentativa de superar o problema constitucional levaria o país de volta ao ponto de partida. 

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El proceso constituyente en Chile  Entre la utopía y una realidad cambiante

O Chile embarcou na terceira tentativa de substituição da Constituição de 1980, herdada da ditadura militar. A primeira, liderada pelo governo de Michelle Bachelet, foi sepultada com a vitória da coalizão de direita nas eleições presidenciais de 2017. A segunda, iniciada em resposta aos protestos sociais de outubro de 2019, fracassou quando em 2022, após um ano de trabalho, 62% do eleitorado rejeitou em plebiscito a proposta progressista da Convenção Constitucional. O terceiro processo surgiu de um acordo político que procurou responder à grave crise de legitimidade que afeta a Constituição, texto que muito poucos defendem abertamente1. De fato, a campanha pela Rejeição no plebiscito não se baseou em manter a antiga Carta Magna, mas em criticar a Convenção e o novo texto, propondo fazer «uma melhor», «uma que nos una» em vez do «mamarracho» [coisa mal feita] produzido por um órgão constitucional que parecia «um circo»2.

Não era evidente que o acordo para esta terceira oportunidade fosse prosperar. Com uma direita que se fortaleceu pela Rejeição no plebiscito constitucional e que teve notória repercussão eleitoral nas eleições parlamentares de novembro de 2021, era possível que a questão constitucional fosse mais uma vez relegada ao esquecimento. No entanto, o compromisso de «rejeitar para reformar», por um lado, e a convicção de alguns setores conservadores de que manter o status quo apenas prolongaria a instabilidade, por outro, levaram à assinatura de um novo acordo político em dezembro de 2022 para substituir a Constituição.

No entanto, o contexto do novo processo é diametralmente oposto ao do anterior. A última Convenção Constitucional partiu de uma folha em branco e da sensação de que quase tudo poderia ser discutido3. Já o novo parte do anteprojeto elaborado por uma «Comissão de Especialistas» designada pelos partidos conforme seu peso político nas eleições parlamentares de 2021. O simbolismo reformista do primeiro processo, que frequentemente extrapolava a capacidade real de mudança institucional, deu lugar a um processo marcado pela formalidade das sessões e acompanhado de pouco debate público. 

Dois meses após o plebiscito de 4 de setembro de 2022, uma pesquisa do instituto Ipsos e do centro de estudos Espacio Público indicou 74% de apoio à afirmação de que o país precisava de uma nova Constituição. Além disso, 90% das pessoas entrevistadas consideraram muito importante incluir direitos sociais como saúde, educação, previdência e habitação, e 81% se mostraram a favor da consagração da proteção ao meio ambiente. Mas a pesquisa já dava sinais de uma mudança de prioridades na agenda pública. Apenas 40% das pessoas consideraram que o assunto era de alta urgência, enquanto 31% avaliaram como moderadamente urgente e 23% disseram que não era urgente. Ante a pergunta: «Você acha que o país terá uma nova Constituição nos próximos dois anos?», 51% disseram que sim e 30% que não. Mais tarde, no final de abril de 2023 e pouco antes da eleição do novo Conselho Constituinte em 7 de maio, a pesquisa Pulso Ciudadano mostrou uma queda acentuada no apoio à mudança constitucional: 49% dos entrevistados disseram estar de acordo, contra 27% que se declararam indiferentes e 24% em desacordo. Apenas 26% disseram estar interessados e 16,6% expressaram confiança no processo. Nesse cenário, e ao contrário da maior parte da experiência comparativa sobre mudança constitucional, não parece descabido imaginar um terceiro fracasso nas tentativas de superar o longo problema constitucional que o país arrasta desde o retorno à democracia.

Um processo nascido do fracasso

O triunfo do «Não» à proposta de uma nova Constituição no plebiscito de 4 de setembro de 2022 foi interpretado como uma tripla rejeição: ao projeto, à Convenção Constitucional e ao governo de Gabriel Boric. O fracasso do processo deveu-se a uma combinação de problemas com as regras de procedimento e fatores de contingência política4. O fato é que, entre 2019 e o fim dos trabalhos do órgão constituinte, o país viveu as traumáticas consequências sociais e econômicas dos protestos e da pandemia de covid-19, uma inflação sem precedentes desde a transição para a democracia e uma crise de segurança pública. Nesse contexto, as reivindicações de mudanças institucionais ficaram em segundo plano.

A crise política que levou às mobilizações de 2019 foi marcada pelo questionamento das elites e das instituições políticas. Quando, após muita negociação, os partidos políticos chegaram ao acordo de 15 de novembro, que buscava diminuir a pressão dos protestos com a mudança da Constituição, setores da esquerda, incluindo o Partido Comunista e alguns integrantes da Frente Ampla, rejeitaram o acordo por considerar que deixava de fora as organizações sociais, verdadeiras protagonistas da revolta. O próprio Boric, então deputado pelo Convergência Social, assinou o documento a título pessoal e contra a maioria de seu partido, correndo o risco de ser expulso. Mas essa decisão o catapultou para a Presidência da República. E finalmente, dois anos mais tarde, o Partido Comunista – agora na coalizão de governo – acabou apoiando um novo acordo para a mudança constitucional muito menos vantajoso para as ambições reformistas.

Em 2019, quando parecia que «o Chile havia mudado », o temor era que o acordo dos partidos fosse insuficiente para reduzir os protestos. Por isso, buscando aumentar a base de legitimidade social, foram aprovadas três reformas que ampliaram o espaço de representação na futura Convenção Constitucional: a norma que permitiu aos independentes concorrer em listas em igualdade com os partidos, a paridade de gênero e a reserva de 17 cadeiras para os povos originários5. As normas sobre os povos originários emanadas da Convenção e o papel exercido pelos independentes foram duramente julgados após a derrota no plebiscito de 2022. O mesmo não ocorreu com a paridade de gênero, mecanismo que replicou o novo processo constitucional iniciado em 2023 para seus três órgãos: Comissão de Especialistas, Comitê Técnico de Admissibilidade e Conselho Constituinte.

A presença de tantos independentes, muitos deles com preferências intensas sobre temas específicos e com pouca ou nenhuma experiência em trabalhos legislativos, dificultou a negociação na Convenção. Por outro lado, certas posições percebidas como maximalistas foram reforçadas pelo reduzido poder negociador da direita, que obteve somente 20% das cadeiras na Convenção6.

Vários fatores contribuíram para a rejeição do texto da nova Constituição: o voto-castigo para punir as elites agora identificadas com a Convenção Constitucional; o tom às vezes desmedido do debate; o desprestígio do órgão constituinte, alimentado por sua fragmentação e por vários escândalos; a pouca representação da direita; e o medo da mudança e de um eventual enfraquecimento do direito de propriedade e das tradições no novo cenário institucional, discurso amplificado por uma campanha de comunicação que incluiu notícias falsas. Também foi decisivo o voto obrigatório acordado para essa etapa final do processo, que somou pela primeira vez 4,7 milhões de pessoas que, em sua grande maioria, inclinaram-se pela Rejeição.

O fato é que, enquanto 78% dos eleitores haviam aprovado o processo constituinte no plebiscito de outubro de 2020, desta vez 62% rejeitaram a proposta, num universo eleitoral que aumentou de 51% para 86% de um eleitorado de 15 milhões de pessoas, fruto da obrigatoriedade do voto. A campanha pela Rejeição, contudo, não se baseava em manter a Constituição de 1980, mas em abrir um novo processo constituinte, mais moderado. Diante desse resultado, que fortaleceu a direita, e de seu controle do Congresso após as eleições de 2021, a negociação da nova Constituição ocorreu em condições desfavoráveis para os setores reformistas.

Após o triunfo da Rejeição, o debate sobre um novo processo constituinte ficou restrito aos partidos políticos e ao Congresso. Depois de quase 100 dias de negociações, os partidos assinaram em 12 de dezembro o «Acordo pelo Chile», um documento de cinco páginas que incluía negociações anteriores sobre «bases» ou «princípios» constitucionais e estabelecia as instituições e procedimentos para o início de um novo processo. Essas negociações haviam acordado 12 pontos que seriam excluídos da discussão, assim como a criação de um comitê que atuaria como árbitro encarregado de zelar por seu cumprimento.

O acordo de dezembro de 2022 finalmente propôs uma comissão de 24 especialistas nomeados proporcionalmente à representação dos diferentes partidos no Congresso e um Conselho Constituinte de 50 pessoas escolhidas conforme a norma eleitoral do Senado. Frisou-se que haveria paridade de gênero de entrada e de saída, além de cadeiras reservadas supranumerárias na proporção do voto indígena – elementos que foram regulamentados por uma reforma constitucional aprovada em janeiro de 20237. Mas as cadeiras reservadas aos povos originários, que no primeiro Conselho eram 17 em 155, foram reduzidas, no novo esquema, a uma em 51. A regra sobre candidaturas independentes foi eliminada.

Dois novos partidos de direita nascidos em 2019, o Partido Republicano e o Partido de la Gente, rechaçaram o novo acordo constitucional assinado pela direita tradicional agrupada na coalizão Chile Vamos, argumentando que a Constituição não deveria ser modificada. Por outro lado, no campo da esquerda os partidos apoiaram formalmente o processo. Mas algumas organizações sociais questionaram sua legitimidade, considerando que o processo foi cooptado por partidos políticos8. Setores da esquerda manifestaram o medo de que um processo controlado pela direita acabasse chancelando, com reformas mínimas, o modelo social e político instaurado pela ditadura. Poucos dias antes da eleição do Conselho Constituinte, alguns parlamentares independentes pediram a anulação da votação.

O calendário do novo processo estabelecia que uma Comissão de Especialistas eleita pelo Congresso trabalharia entre março e junho na elaboração do pré-projeto. Após aprovar um primeiro rascunho, em meados de abril teve início a discussão de mais de 900 indicações. O texto foi expedido para que o Conselho Constituinte, eleito em 7 de maio, começasse sua discussão em 7 de junho. No início de novembro, o Conselho deverá apresentar sua proposta constitucional para o plebiscito de ratificação em 17 de dezembro. Além disso, entre 7 de junho e 7 de julho, será realizado um processo de participação cidadã coordenado pela Universidade do Chile e pela Universidade Católica, em colaboração com todas as universidades credenciadas que desejem participar.

Estado social cambaleante

Uma das 12 «bases», e talvez a principal razão do apoio da esquerda ao processo num momento eleitoralmente adverso, é o Estado social e democrático de direito. Esperava-se que essa definição permitisse superar o Estado subsidiário implícito na Constituição de 1980, que relega a prestação pública de serviços sociais a um segundo plano frente à primazia do mercado. No entanto, os debates na Comissão de Especialistas levantaram dúvidas sobre a possibilidade de materialização desse princípio. 

As mobilizações sociais das últimas décadas, o surgimento de novos partidos e movimentos de esquerda e a reivindicação de uma nova Constituição tiveram como fator comum a politização da desigualdade, traduzida em demandas por proteção social frente ao aumento do endividamento privado para satisfazer necessidades básicas como educação e saúde, num contexto de pensões baixas e de percepção de sistemáticos abusos em relação aos consumidores9.

Em sua primeira prestação de contas no Congresso Nacional, no início de junho de 2022, o presidente Boric anunciou mais de 30 iniciativas de lei concentradas nas áreas de saúde, educação, previdência, habitação e trabalho. Mas essa agenda se enfraqueceu com a vigência, após o plebiscito de setembro, da Constituição de 1980 e de suas travas institucionais às políticas redistributivas. Além disso, a reação conservadora provocada pelo resultado do plebiscito reduziu a disposição da direita de buscar acordos. Na discussão sobre a reforma da previdência, ganhou força a recusa em estabelecer um pilar contributivo numa pequena fração dos fundos de capitalização individual, e a ideia de legislar uma reforma tributária, essencial para a agenda social, foi rejeitada.

Em meio à menor disposição dos setores conservadores para negociar, as administradoras de fundos de pensão (AFP) e as instituições de saúde previsional (ISAPRES) vinham desenvolvendo, desde o primeiro processo, importantes ofensivas de comunicação em defesa da «liberdade de escolha», da propriedade individual e da herdabilidade dos fundos de pensão.

Embora as negociações iniciais da Comissão de Especialistas tenham dado sinais de um acordo transversal sobre a necessidade de garantir a prestação mista de serviços públicos, por meio de prestadores públicos e privados, as divergências surgem quanto à liberdade de não contribuir para a sua prestação pública. No Estado subsidiário, tal como essa liberdade de escolha foi entendida sob a Constituição de 1980, as pessoas podem decidir onde depositar os seus fundos de pensões de saúde e seguridade social, o que torna inconstitucional o componente solidário nos serviços sociais.

Ante a possível eliminação das Leis Orgânicas Constitucionais instituídas pela Constituição de 1980, protegidas por maiorias qualificadas de quatro sétimos, a Comissão de Especialistas tem dado sinais de querer incluir no texto constitucional elementos que se encontravam nas leis orgânicas, ou de querer explicitar as práticas do Estado subsidiário, argumentando que não são incompatíveis com o Estado social e democrático de direito. Nesse debate, acadêmicos de direita chegaram a questionar que se defina o Chile como um «Estado social e democrático»; afirmam que o país «é organizado» como Estado, mas não é Estado em sua essência, e propõem uma definição de «Estado social e subsidiário de direito». Essa plasticidade conceitual gera dúvidas legítimas de que prevalecerá o compromisso de superar a subsidiariedade com o processo constitucional.

Na disputa ideológica pela nova Constituição, há pelo menos quatro posições. No campo da esquerda, alguns gostariam de resgatar o máximo possível do projeto constitucional rejeitado no plebiscito de 2022, algo que parece improvável diante dos resultados eleitorais de 7 de maio. A centro-esquerda busca realizar reformas que habilitem um jogo democrático que tem sido fortemente restringido pela Carta Fundamental. Setores conservadores esperam superar o problema da ilegitimidade democrática da Constituição, mantendo seu conteúdo da forma mais fiel possível. Por último, a extrema direita gostaria que o exercício fracassasse e que a atual Constituição continuasse em vigor.

Em paralelo ao debate sobre o Estado social, a Comissão de Especialistas dedicou grande energia ao abordar o sistema político, tendo em vista a alta fragmentação partidária que o país vive desde a reforma eleitoral de 2015. Embora haja consenso de que a presença de mais de 20 partidos na Câmara de Deputadas e Deputados e a falta de disciplina partidária, entre outros fatores, atentam contra a capacidade negociadora das forças políticas, as medidas que vêm sendo propostas (como o estabelecimento de um limiar de 5% para os partidos poderem integrar o Congresso) não parecem suficientes para superar os problemas de funcionamento do sistema de partidos.

Uma população profundamente cética e uma agenda pública centrada na criminalidade, na crise migratória e na economia contrastam com a esperança de que o novo processo constituinte gere estabilidade e avance na democratização do sistema político. Os partidos, a cargo do processo, continuam com baixíssimo apoio popular.

A ameaça populista

A eleição do Conselho Constituinte de 7 de maio foi organizada em cinco listas. À esquerda, a lista da Unidade para o Chile incluía os partidos da Frente Ampla, o Partido Comunista, o Partido Socialista, a Frente Regionalista Verde Social e o Partido Liberal. Na centro-esquerda, a aliança Todo por Chile reuniu o Partido pela Democracia, a Democracia Cristã e o Partido Radical. A aliança Chile Seguro foi formada pelos três partidos do Chile Vamos: União Democrata Independente (UDI), Renovação Nacional e Evolução Política (Evópoli). O Partido Republicano e o Partido Popular competiram em listas separadas. As campanhas políticas pela integração do novo Conselho encarregado de redigir a Carta Magna despertaram pouco interesse e se concentraram mais na contingência – prometendo segurança, defesa das tradições e apoio aos Carabineros – do que em uma proposta constitucional. Finalmente, a extrema direita (Partido Republicano) obteve 35,4% dos votos e 23 cadeiras em 51, enquanto a esquerda ficou com 28,6% e 16 cadeiras. A direita (Chile Seguro) conseguiu 21% e 11 cadeiras, e a centro-esquerda do Todo por Chile, a grande derrotada, não conseguiu cadeiras.

Se a queixa em relação ao processo anterior era que a configuração da Convenção Constitucional havia ficado à esquerda do eleitor médio, o novo Conselho Constituinte ficará à direita. A mudança no cenário político fez com que agendas redistributivas e de inclusão política, resumidas pela revolta de 18 de outubro de 2019 como uma demanda por «dignidade», ficaram marginalizadas por discursos de segurança e pulso firme. A própria tensão social e a contração econômica provocada pela pandemia contribuíram para transformar os protestos maciços de 2019 num imaginário de violência criminosa e descontrole. O aumento da taxa de homicídios, a crise migratória e os ataques em Araucanía ficaram associados à desordem dos protestos de 2019. A confiança nos Carabineros, que havia despencado devido a escândalos de corrupção, violações de direitos humanos e ocultação de informações, começou a se recuperar à medida que a agenda de segurança pública se tornava a primeira prioridade nacional. No início de abril de 2013, o Congresso aprovou uma lei de fortalecimento da polícia, conhecida como Lei Naín-Retamal em homenagem a dois carabineiros assassinados (rejeitada por grande parte da esquerda). No final daquele mês, o Congresso Nacional deu prioridade a outros 31 projetos de lei relacionados à segurança pública. Tudo isto num clima de desconfiança em relação às elites e às instituições, especialmente o Congresso e os partidos.

Com partidos programaticamente fracos, desconectados de suas bases e com cada vez menos militantes, os discursos de «pulso firme» têm pago dividendos à direita populista. Em 2019 surgiu o Partido de la Gente, legalizado em 2021. Essa formação se declara «nem de esquerda nem de direita», mantém um discurso antipartidário e apela ao bom senso. Em pouco tempo, tornou-se o partido com mais militantes do país. Seu candidato, o empresário Franco Parisi, obteve 13% dos votos no primeiro turno presidencial de 2021. Já o candidato do Partido Republicano (extrema direita), José Antonio Kast, ex-militante da UDI, venceu o primeiro turno presidencial com quase 28% dos votos. Mas enquanto o partido de Katz venceu as últimas eleições para o Conselho Constituinte, o de Parisi sofreu uma dura derrota: 5,5% dos votos e nenhuma cadeira.
A mesma distância entre representantes e cidadãos que antes alimentava a agitação social hoje nutre os grupos de extrema direita. Cristóbal Rovira considera que as elites políticas e econômicas não conseguiram se conectar com as exigências dos cidadãos, cimentando assim o caminho para o populismo10. No campo da direita, o Partido de la Gente e o Partido Republicano oferecem duas alternativas supostamente «antielite». Já no campo da esquerda, Pamela Jiles também reproduz um discurso de superioridade moral do povo sobre dirigentes corruptos. Nesse cenário, uma pergunta relevante é se os atores políticos institucionais poderão processar as demandas cidadãs e se diferenciar desses projetos populistas, ou se cederão à tentação de ajustar seus discursos a essas agendas lucrativas. 

Assim como a esquerda parece ter exagerado na interpretação de seu mandato reformista após a vitória esmagadora nas eleições da Convenção Constitucional em 2021, existe hoje um perigo oposto caso a direita decida replicar a falta de diálogo político num momento de retomada conservadora. Como adverte a cientista política Valéria Palanza, a direita triunfante em 2022 não deu sinais de ter aprendido com a experiência anterior e avança no processo constitucional como se as reivindicações que em 2019 deram lugar ao processo constituinte não tivessem existido11.

A construção de uma Constituição que possa ser respeitada por todas e todos exige um diálogo generoso, que inclua as demandas dos diversos setores políticos do país. Um novo fracasso na tentativa de superar o problema constitucional chileno só enfraqueceria a capacidade de canalizar o conflito institucionalmente e promoveria projetos populistas que podem prejudicar ainda mais a convivência democrática.

Tradução: Eduardo Szklarz.

  • 1.

    A Chile Vamos – coalizão que inclui o partido União Democrata Independente (UDI), fundado pelo principal ideólogo da Constituição, Jaime Guzmán – afirmou que a opção pela Rejeição no plebiscito visava redigir um melhor texto. À direita da Chile Vamos, surgiu em junho de 2019 o Partido Republicano. Sua posição, diferente da defendida pela UDI, foi rejeitar para pôr fim ao processo constituinte e manter a Constituição de 1980.

  • 2.

    Para uma descrição de elementos que contribuíram para o desprestígio da Convenção Constitucional, v. Jennifer Piscopo e Peter Siavelis: «Chile’s Constitutional Chaos» em Journal of Democracy vol. 34 N° 1, 1/2023.

  • 3.

    O conceito de «folha em branco» visava garantir que o processo constituinte não fosse uma reforma à Constituição de 1980. No entanto, tinha importantes limitações estabelecidas na lei 21.200, que proibia a Convenção de se atribuir o exercício da soberania (por exemplo, não levando em conta os poderes constituídos), modificar o caráter de República do Estado do Chile, seu regime democrático, as sentenças judiciais transitadas em julgado e os tratados internacionais ratificados pelo país e que estivessem em vigor.

  • 4.

    Guillermo Larraín, Gabriel Negretto e Stefan Voigt: «How Not to Write a Constitution: Lessons from Chile» em Public Choice vol. 194 N° 3-4, 2023.

  • 5.

    Julieta Suárez-Cao: «Reconstructing Legitimacy after Crisis: The Chilean Path to a New Constitution» em Hague Journal on the Rule of Law vol. 13 N° 2-3, 2021.

  • 6.

    C. Heiss: «¿Por qué se rechazó la propuesta de nueva Constitución en Chile?» em Blog Revista Derecho del Estado, 2/11/2022.

  • 7.

    Ley 21.533 em Diario Oficial, 17/1/2023.

  • 8.

    V., por exemplo, Nicolás Quiñones: «‘Encuentro nacional contra el fraude constitucional’: organizaciones se reúnen para ‘impugnar’ el proceso constituyente» em La Tercera, 25/3/2023.

  • 9.

    Nicolás Somma, Matías Bargsted, Rodolfo Disi Pavlic e Rodrigo Medel: «No Water in the Oasis: The Chilean Spring of 2019-2020» em Social Movement Studies vol. 20 N° 4, 2021.

  • 10.

    «Cristóbal Rovira: La clase política debe hacer un mea culpa sobre el motivo por el que las ideologías populistas prenden en la población» em diarioUchile, 25/4/2023.

  • 11.

    V. Palanza: «La importancia de la memoria en política» em La Tercera, 24/4/2023.

Este artículo es copia fiel del publicado en la revista
ISSN: 0251-3552
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