Tema central

O futuro de uma ilusão: classes médias na América Latina


Nueva Sociedad Dezembro 2020

Os governos comemoram quando os indicadores refletem o aumento das classes médias, e os cidadãos tentam logo se autoqualificar como classe média quando existe alguma possibilidade para isso. Quanto de realidade e quanto de ilusão há na classe média? Qual é a diferença entre as novas classes médias e as tradicionais? O que dizem os dados sobre as classes médias latino-americanas?

O futuro de uma ilusão: classes médias na América Latina

Houve uma linda época… A América Latina sonhava em se tornar uma região de classes médias. Deixaria de ser vista como parte do mundo pobre, atrasada, subdesenvolvida e terceiro-mundista (todos adjetivos politicamente incorretos, mas que persistem no imaginário coletivo). O crescimento econômico e as políticas sociais semeavam esperanças de natureza econômica (aumento do consumo, oportunidades de negócios e empreendimentos), social (superação da pobreza e redução da desigualdade), política (aprofundamento e consolidação das democracias, e reconhecimento de novos direitos) e cultural (visibilização de novas identidades).A ideia de classe média operava como prêmio e conquista; era superado um desafio político e social histórico da região como a pobreza, e havia no imaginário coletivo a aspiração a uma melhoria generalizada. Todos eram conscientes de que, embora complexa e indeterminada, a ideia de classe média era atrativa e necessária para acreditar em um futuro e construí-lo.Tradicionalmente, a classe média é esboçada como um grupo social heterogêneo que inclui pessoas com posições muito diferentes na estrutura produtiva1, mas que, de alguma forma, são consideradas unificadas por identidade social, características culturais e/ou certo nível de renda média. A categoria «novas classes médias» adiciona mais complexidade à matéria ao se referir aos que deixaram de ser pobres e experimentaram mobilidade social ascendente graças a programas de transferência condicionada de renda, mas cuja situação é inconsistente, precária ou vulnerável. Trata-se de lares em que a renda familiar total é superior à dos pobres (seus integrantes podem comprar uma motocicleta ou novos eletrodomésticos, ou sair de férias), mas que, de forma geral, dependem do autoemprego ou de um trabalho não regido por contrato e sem cobertura de seguridade social, e com capacidade de poupança muito limitada, quando não inexistente2. Os governos sabiam que a melhoria no poder aquisitivo não transforma automaticamente a estrutura social, mas ainda assim se sentiam orgulhosos por suas conquistas e pressagiavam bem-estar futuro com a apresentação de dados: três de cada dez pessoas podiam ser consideradas de classe média em 2009 (Banco Mundial)3; os lares de classe média tinham passado de 26% em 1996 para 32,5% em 2006 (Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe, Cepal)4 e 70% dos cidadãos se reconheciam como de classe média ou média baixa em 2011 (Latinobarómetro). A tabela a seguir ilustra a evolução atual das classes médias na região. Em termos objetivos, parece se confirmar a tendência ao aumento das classes médias, mas não se pode dizer o mesmo em termos subjetivos. Sabemos que a compulsão em se qualificar como de classe média obedece à necessidade de não se sentir pobre nem rico, e a um critério de distinção utilizado para se diferenciar culturalmente, mas pouco se sabe sobre os mecanismos que levam um sujeito a se sentir de classe média. Que representação social, razões ou motivos levam um indivíduo a definir a si próprio nessa categoria? É especialmente interessante o caso da Argentina, onde a percepção de pertencer à classe média se reduz de forma mais intensa que no restante da região, ao mesmo tempo em que cresce a percepção de ser de classe média baixa (v. gráfico). Os dados sugerem uma espécie de transferência da classe média para a média baixa.

No final do século passado, falava-se na Argentina de queda escalonada, fragmentação e pauperização das classes médias, e da transformação de boa parte delas em «novos pobres». Essa dualidade ou ruptura dentro da classe média era associada aos ganhadores e perdedores da globalização, assim como ao desenvolvimento de políticas neoliberais5.

Evolução da autofiliação de classe na Argentina (2011-2018)6

Para além da perda de atrativo dos relatos globais em torno da ideia de classe média, um elemento explicativo para a queda na autopercepção pode se relacionar com a frustração de expectativas sociais («tenho muita formação educacional, mas não encontro trabalho») e a desilusão política («a democracia prometeu muito mais do que cumpriu»)7. De outra perspectiva, também pode ser que exista, entre aqueles que sabem que fazem parte da classe média, um desejo de ativar uma nova referência identitária e se libertar dos rótulos negativos associados à «psicologia» ou ao «arquétipo» histórico das classes médias tradicionais (pretensiosas que aparentam ser o que não são8, conformistas, individualistas e superficiais)9.Nos próximos parágrafos, caracterizamos as «novas» classes médias latinoamericanas segundo perfis, atitudes, comportamentos e demandas. Tal abordagem possui múltiplos objetivos. Primeiramente, interessa destacar as peculiaridades das novas classes médias em termos culturais e identitários, diferenciando-as das classes médias tradicionais. Em segundo lugar, são descritas as razões estruturais que motivam as classes médias a se sentirem de «meia classe»10. Depois são apresentadas as percepções e atitudes das classes médias, concentrando-se em seu descontentamento diante da ineficiência institucional, da baixa qualidade dos serviços públicos, da corrupção e da insegurança. Finalmente, descreve-se seu comportamento político pragmático e errático11.

As novas classes médias: o jogo das diferenças

Os trabalhos recentes sobre classes médias contrapõem as classes médias novas ou «emergentes» às classes médias tradicionais. A bibliografia econômica se refere às primeiras como «vulneráveis», ao passo que a de corte sociológico introduz conceitos como o de «classe média divergente». Isso nos leva a questionar se há entre esses estratos sociais apenas diferenças quantitativas ou de grau (de consumo, renda, poupança) ou também diferenças qualitativas (de identidade, preferências ou comportamento político). Apresentamos a seguir dados que permitem supor que as novas classes médias são parecidas e, ao mesmo tempo, diferentes das classes médias tradicionais quantitativa e qualitativamente. Elas possuem opinião e visão semelhantes com relação aos problemas sociais, mas são mais frágeis em termos estruturais, vivem o dia a dia mais preocupadas e apresentam um comportamento mais imprevisível.

Diferenças culturais e estruturais

Comecemos pelas diferenças: as novas classes médias têm uma construção cultural e identitária diferente das apresentadas pelas classes médias tradicionais. Embora tenham igualmente aspirações, as novas classes médias não buscam se equiparar ao modelo cultural das classes altas nem têm em seu horizonte o consumo característico da modernidade ilustrada apresentado pelas classes médias tradicionais. Seu consumo se concentra em tecnologia, educação privada, roupas ou produtos de determinadas marcas, verificando-se uma combinação de capitais simbólicos que funde elementos ancestrais e modernidade. Sua exibição de riqueza se distancia da apresentada pela classe média tradicional, que gasta em viagens ou compra artigos finos. Seu momento de ostentação de poder econômico está nas festas infantis e nas roupas de marca, em se informar sobre os novos avanços tecnológicos (computadores, telefones celulares, televisores, sistemas de áudio, jogos). O interesse cultural é substituído pelo saber como destreza e habilidade para desenvolver um empreendimento profissional12.Se as «velhas» classes médias estão integradas por trabalhadores não manuais (especialmente funcionários públicos), moradores urbanos, ocidentalizados, que moram em bairros tradicionais perto das classes altas, as «novas» classes médias incorporam trabalhadores manuais, que vivem nos arredores da cidade ou em novos bairros, e possuem gostos ocidentais matizados por um toque cultural e racial reivindicativo. O componente racial indígena está muito mais presente que nas classes médias tradicionais.Boa parte da nova classe média cresceu sem dar satisfação aos governos e, portanto, contenta-se com que a deixem funcionar à sua maneira. Para seus integrantes, não existe diferenciação entre trabalhador e empregado; eles desempenham diversas atividades e se veem como «donos» mais que como empresários, ao mesmo tempo em que utilizam aporte de trabalho por meio de troca entre amigos e vizinhos.Na Bolívia, as pesquisas sustentam que a nova classe média tem a aspiração de possuir um negócio próprio (66,3%) e pouco desejo de um emprego formal (17,2%) ou com alta remuneração (16,5%). A grande maioria daqueles que se definem como de classe média se considera mestiça (78,3%), e 13,2% se autoidentificam como indígenas; a característica coletivista os diferencia da classe média tradicional, esta mais individualista13.Os ponchos, as polleras e wiphalas que inundaram as instituições e espaços públicos como a arquitetura «com identidade própria» que combina iconografia, cores e desenhos ancestrais em El Alto (os chamados cholets) refletem visualmente a hibridização de estilos e códigos que caracteriza as novas classes médias andinas ou a pequena burguesia chola,14. Isso se reflete em critérios musicais, modas e formas de convivência específicas15. Há um acesso à cultura global que lhes permite seguir padrões internacionais de moda e comportamento, combinados ao mesmo tempo com tradições e modos de ser mais coletivistas herdados de seus pais. Integram essa classe média «divergente» tanto os migrantes rejeitados – pessoas que, ao chegarem à cidade, se sentem desprezadas pelas classes médias tradicionais e pelos governos, instalando-se nas periferias – como seus filhos, chamados de mestiços citadinos e educados a partir de duas influências: a tradicional de seus pais e a moderna da cidade16.Como comprovam estudos realizados no Brasil, a «classe c» (camadas médias emergentes) pode ser mais conservadora com relação a muitos dos pontos da agenda pós-materialista, como o aborto, o divórcio e a homossexualidade17. Mas, em termos de percepções sociais, há uma notável semelhança com as classes médias tradicionais, como veremos mais adiante. O segundo traço característico e diferencial daqueles que integram a nova classe média em relação à classe média tradicional é a sensação de vulnerabilidade. Seus integrantes ampliaram sua capacidade de compra e melhoraram o bem-estar, mas sua capacidade de poupança é baixa (no melhor dos casos) e seu acesso a serviços básicos, muito relativo. Essa sensação de que sua alegria está por um fio – e que tudo pode se perder a qualquer momento – é consequência da inter-relação de fatores estruturais e conjunturais.O contexto de emergência das novas classes médias é o crescimento econômico vivido na região durante a primeira década do século xxi e está associado ao valor internacional das commodities. Os modelos produtivos continuam sendo pouco competitivos, e seus ganhos provêm de estratégias primário-exportadoras. Mais que as outras, as novas classes médias dependem de que os recursos naturais sejam demandados e bem pagos internacionalmente18. O modelo primário-extrativista como fator do crescimento econômico e das novas classes médias de cidades como Quito gerará novas tensões no seio de sociedades multiculturais que aspiram a integrar o «bem viver» em seus modelos produtivos19.O crescimento econômico reduz os índices de desemprego, mas a informalidade ainda predomina no mercado de trabalho20. Em sua maioria, os integrantes das novas classes médias desenvolvem uma ocupação manual que depende do autoemprego (autônomos ou empreendedores precários) ou têm um emprego não regido por contrato. Tampouco contam com cobertura de seguridade social (é possível que apenas uma parte de sua jornada de trabalho conte para fins de contribuição previdenciária e o restante seja pago de modo informal, ou que simplesmente nenhuma parte de sua receita conte para contribuição). Sua renda per capita está acima da linha de pobreza, mas abaixo do limiar de 10 dólares diários21.Embora os integrantes da nova classe média atribuam seu bem-estar a seu próprio esforço e dedicação – e não às políticas sociais dos Estados –, as transferências sociais condicionadas implementadas pelos governos progressistas da região foram fundamentais para explicar a saída da pobreza por parte de milhões de latino-americanos22. Essas políticas sociais redistributivas e o maior crescimento econômico experimentado elevaram o piso da expectativa social e são responsáveis por muitas famílias terem saído da pobreza. Contudo, cresce o ritmo das políticas sociais focadas em detrimento das políticas universais. Aqueles que escaparam da pobreza já não podem receber as transferências destinadas aos lares pobres, mas, sem algum tipo de apoio, podem ser incapazes de manter e consolidar sua nova condição. Não obstante, somente com o apoio das classes médias é possível pensar na criação de uma coalizão social a favor de políticas públicas redistributivas23.Sustentar políticas focadas ou implementar políticas universais supõe vários dilemas em termos de sustentabilidade quando o ritmo do crescimento se torna mais lento. As fontes fiscais dos programas dependem dos ventos favoráveis dos preços internacionais e da continuidade da receita por meio de exportações. Os sistemas tributários continuam sendo regressivos e capturando boa parte da renda das mesmas classes baixas e médias por meio de impostos indiretos sobre o consumo. São necessários mais impostos diretos sobre a renda e o patrimônio para redistribuir melhor e não pressionar quem está saindo da pobreza24.

Semelhantes em percepções sociais: desconfiança, desesperança e descontentamento generalizado

Como é evidente, são necessárias mudanças que alterem a estrutura produtiva e os sistemas fiscais, transformações profundas e lentas que não se ajustam aos ciclos eleitorais e reivindicam políticas de Estado. Experimentar vulnerabilidade se traduz em fragilidade e debilidade, e a capacidade de resiliência é muito limitada. Sentir-se de «meia classe» se reflete em uma série de demandas por serviços públicos de qualidade que não podem ser satisfeitos na família ou pelo mercado. Nesse aspecto, as novas classes médias se assemelham às classes médias tradicionais: ambas manifestam uma profunda insatisfação com os serviços públicos.Em média, e exceto para o caso da educação, a satisfação com quaisquer dos serviços públicos é sempre inferior a 50%. A média para a região indica que apenas 52% dos latino-americanos que se identificam como de classe média baixa estavam satisfeitos com a educação, 44% com o funcionamento dos hospitais, 45% com o serviço de transporte público, 32% com o funcionamento da polícia, e somente 29% com o funcionamento da Justiça em 201125. A desconfiança com relação às instituições também é notavelmente semelhante entre as classes médias tradicionais e as emergentes, embora um pouco maior entre quem se autoidentifica como de classe média baixa. Se considerarmos os dados do Latinobarómetro de 2011, 65% daqueles que se autoidentificam como de classe média têm pouca ou nenhuma confiança no Congresso e, no caso de quem se autoidentifica como de classe média baixa, o percentual chega a 68%; e o mesmo ocorre com o Poder Judiciário (67% e 71%, respectivamente), os partidos políticos (76% e 78%) e a administração pública (43% e 68%).A preocupação com a insegurança apresenta um comportamento semelhante: 64% daqueles que se identificam como de classe média consideram que a insegurança aumentou, índice que alcança 85% entre quem se identifica como de classe média baixa. Com a corrupção, as diferenças também não são tão amplas, e há uma maioria bastante insatisfeita: 54% daqueles que se identificam como de classe média consideram que as instituições do Estado progrediram pouco ou nada na redução da corrupção nos últimos dois anos, e esse índice é de 39% entre aqueles que se veem como de classe média baixa.Esses três conjuntos de dados permitem intuir um descontentamento social generalizado com o funcionamento das instituições públicas e uma avaliação negativa da eficácia e da capacidade dos governos em fornecer serviços públicos essenciais e responder às demandas e aos problemas concretos das pessoas, à sua vida cotidiana. As ineficiências do sistema de saúde, a baixa qualidade da educação pública, o caos do transporte e o medo de sair de casa (e até mesmo a sensação de insegurança dentro de casa) irritam os cidadãos. As condições de vida são melhores, mas não se acredita que a sociedade funcione melhor.Esses dados levam a pensar que a participação nos protestos sociais dos últimos anos poderia estar associada a uma demanda das novas classes médias por serviços públicos que permitam estabilizar sua condição. Em outras palavras, os protestos refletiriam uma reivindicação por direitos que garantam as conquistas econômicas alcançadas (luta pela significação e pelo sentido da classe média emergente, que deseja se consolidar), bem como uma demanda pela abertura do sistema de governo (uma reivindicação por transparência e um julgamento do desempenho, da eficiência e da capacidade de resposta por parte dos governos que funcionam segundo o esquema de democracia representativa). Sendo assim, poderíamos pensar nas novas classes médias como cidadãos críticos que questionam as instituições em busca de sua melhoria.Contudo, o que se observa é que se sentir de classe média não é um fator que pressuponha a participação em protestos, o que sim vale para o maior nível educacional. Em outras palavras, quem se considera de classe média não tem maior participação nos protestos do que aqueles que se sentem de classes altas ou baixas, mas ter mais formação educacional aumenta a probabilidade dessa presença. Além disso, cabe notar que as pessoas que participam de protestos não questionam a democracia nem o sistema; ao contrário, buscam aperfeiçoá-los, já que também participam de canais políticos formais como o voto e são as que confiam nos governos e em instituições como os sindicatos26.Em quarto lugar, cabe mencionar o comportamento político: em que medida as classes médias emergentes se alinham com os partidos ou governos cuja gestão contribuiu para – ou simplesmente presidiu – seu processo de emergência? Os autores concordam que as preferências políticas das novas classes médias não são previsíveis: elas podem apoiar tanto a esquerda como a direita, concordar que a democracia é o melhor sistema de governo, mas estar contra a ampliação de direitos civis como o casamento igualitário ou o aborto. O apoio recebido pelos governos associados à esquerda na região diminui, assim como o apoio ao sistema democrático, se as classes médias se sentem insatisfeitas e os que estão abaixo veem limitadas ou reduzidas suas oportunidades de ascensão.Ambas as questões estariam relacionadas com o efeito túnel formulado por Albert Hirschman e Michael Rothschild27 e com a frustração de expectativas dos estratos médios. Em etapas de crescimento econômico, a tolerância à desigualdade pode ser alta. A frustração daqueles que ficaram para trás durante uma primeira fase de crescimento não se manifesta imediatamente, pois sua crença em uma futura ascensão os mantém satisfeitos. Já em uma segunda fase, quem não conseguiu ascender perde suas esperanças e se torna inimigo da ordem. O passar do tempo é o fator-chave nesse tema e aumenta a sensação de privação relativa.A maior disponibilidade de crédito e o consumo subsidiado das novas classes médias podem ser insuficientes se a pressão inflacionária ou as intervenções do governo na vida econômica e social forem percebidas como ameaças a um estilo de vida, se as prejudicarem como consumidoras, poupadoras e pensionistas, ou se não se concretizarem políticas públicas que melhorem a qualidade de vida do dia a dia oferecendo serviços públicos essenciais como segurança e transporte. Liliana de Riz sustenta que, na Argentina, embora não se afiliem a partidos, as novas classes médias são pragmáticas e tendem a «tomar partido» por lideranças desideologizadas, em um contexto no qual diminui a proporção de pessoas que dizem estar afiliadas ou têm simpatia pelos partidos28. Seus integrantes se diferenciam entre aqueles que aspiram a um futuro melhor lutando para ascender na escala social e outros que reivindicam conservar o que adquiriram. Para a autora, os primeiros votam em Mauricio Macri, e os últimos apoiam o kirchnerismo. A ênfase na gestão, uma agenda flexível de governo sem respostas ideológicas predefinidas e um uso inovador das redes sociais deram vitória à Proposta Republicana (pro) em 2015. À luz dos resultados das eleições de 2019, seria possível supor que a hipótese se mantém válida e que, diante do aumento da inflação e do desemprego, as classes médias mudaram suas perspectivas e preferências políticas, e buscam resistir apoiando a alternância e confiando no peronismo.No Brasil, as camadas médias jamais se manifestaram como uma força social e política unificada. Estiveram presentes tanto nas manifestações que clamaram pelo impeachment como nas que defenderam a permanência de Dilma Rousseff na Presidência do país. Entretanto, e para além das diferenças políticas e ideológicas, partilharam com os manifestantes e grupos organizados da mesma desconfiança e ambiguidades com relação à política institucional, suas regras e formas de proceder29. Na Bolívia, afirma-se que as classes médias podem não ter uma ideologia política pré-constituída, mas têm um posicionamento de centro, atitudes políticas moderadas e são medianamente conservadoras, o que condiz com sua situação de relativo privilégio na sociedade boliviana30.

Resumindo…

Quando alguém viveu um bom tempo em determinada cultura e fez esforços frequentes na investigação de suas origens e do percurso de seu desenvolvimento, chega o dia em que também sente a tentação de voltar o olhar na outra direção e perguntar qual o destino mais remoto que aguarda essa cultura e por quais transformações ela está destinada a passar.31Sigmund Freud inicia com esse parágrafo seu trabalho tentando entender a origem e o papel das ilusões religiosas nas sociedades atuais. Segundo o autor, a ilusão não é um erro nem precisa ser falsa ou irrealizável. A ilusão parte do impulso à satisfação de um desejo que prescinde de sua relação com a realidade e guarda reminiscências históricas, gerando uma ação conjunta do passado e do futuro.Há quem sustente que a classe média é uma ilusão estatística que esconde em seu seio uma profunda heterogeneidade. Uma ilusão que parte de um desejo de bem-estar e busca deixar para trás a cicatriz da pobreza, embora essa operação possa gerar uma construção discursiva que torna invisíveis diferenças estruturais como as de gênero, étnicas ou territoriais, desencoraja a tomada de consciência popular e desarticula a luta. Os governos comemoram quando os indicadores refletem o aumento das classes médias, e os cidadãos tentam logo se autoqualificar como classe média quando há alguma possibilidade para isso. Ambos se agarram à ilusão.Sentir-se de classe média tem uma importância fundamental em termos individuais, supõe estar coberto na satisfação de certas necessidades básicas de alimentação e moradia, ter acesso a bens de consumo que conectam com o restante do mundo, como um telefone celular, ou bens que permitem um deslocamento mais rápido pela cidade. Ser de classe média liberta do estigma de pobre e confere uma identidade que adquire consciência de certos direitos a serem exigidos política e socialmente; supõe sonhar com a mobilidade social, alimentar esperanças de futuro para os filhos, imaginar que a desigualdade poderia deixar de ser herdada. A partir do momento em que se autoqualifica como pertencente à classe média, o pobre e excluído que sempre se sentiu fora passa a ter a ilusão de fazer parte do presente e do futuro. Claro que todas essas expectativas são ameaçadas por mudanças na economia global ou uma guinada dos governos, momento em que a ilusão se transforma em frustração e raiva.Tudo parece indicar que o foco superador da ilusão deve ser colocado na redistribuição da capacidade de consumo e na distribuição mais igualitária de oportunidades, rendas e riquezas. Trata-se de imaginar um novo pacto social e político que não se concentre somente em retirar as pessoas da pobreza, mas também em combater a desigualdade e a crescente vulnerabilidade dos precarizados, construindo relatos coletivos inclusivos a partir da aceitação da diferença.

  • 1.

    A classe média se assemelha em parte aos trabalhadores (por estar excluída dos meios de produção), mas também aos capitalistas (por exercer autoridade supervisora e, portanto, participar na função global do capital), e destacam-se suas «posições contraditórias» nas relações de classe. Val Burris: «La síntesis neomarxista de Marx y Weber sobre las clases» em Zona Abierta No 59-60, 1992; Eric Olin Wright: «Reflexionando, una vez más, sobre el concepto de estructura de clases» em Zona Abierta No 59-60, 1992.

  • 2.

    L. Paramio: apresentação do seminário internacional «Clases medias y agenda política en América Latina», Centro de Ciências Sociais e Humanas - Conselho Superior de Pesquisa Científica, Madri, 14/2/2013; e L. Paramio: Clases medias y gobernabilidad en América Latina, Fundación Pablo Iglesias, Madri, 2010.

  • 3.

    Eram considerados de classe média todos aqueles que tinham um consumo de 10 a 50 dólares por dia. Francisco H. G. Ferreira, Julian Messina, Jamele Rigolini, Luis-Felipe López-Calva, Maria Ana Lugo e Renos Vakis: La movilidad económica y el crecimiento de la clase media en América Latina, Banco Mundial, Washington, dc, 2013.

  • 4.

    A Cepal considera de classe média os lares nos quais a renda supera quatro vezes a linha da pobreza per capita urbana e é inferior ao valor do percentil 95. Os dados refletem a média dos 10 países incluídos no relatório: Argentina, Brasil, Chile, Colômbia, Costa Rica, Honduras, México, Panamá, Peru e República Dominicana. Rolando Franco e Martín Hopenhayn: «Las clases medias en América Latina: historias cruzadas y miradas diversas» em R. Franco, M. Hopenhayn e Arturo León (coords.): Las clases medias en América Latina: retrospectiva y nuevas tendencias, Cepal - segib / Siglo Veintiuno, Cidade do México, 2010.

  • 5.

    Alberto Minujin e Gabriel Kessler: La nueva pobreza en la Argentina, Planeta, Buenos Aires, 1995; Maristella Svampa: «Clases medias, cuestión social y nuevos marcos de sociabilidad» em Punto de Vista No 67, 2000; Manuel Mora e Araujo: «La estructura social de la Argentina: evidencias y conjeturas acerca de la estratificación actual», Serie Políticas Sociales No 59, Cepal / Nações Unidas, Santiago, 2002.

  • 6.

    O enunciado formulado na pesquisa do Latinobarómetro é: «As pessoas descrevem a si mesmas algumas vezes como pertencentes a uma classe social. Você se descreveria como pertencente à classe:». As opções de resposta são: alta, média alta, média, média baixa e baixa. A classe alta não é incluída no gráfico, pois os valores são inferiores a 0.

  • 7.

    Liliana de Riz: «El apetito de progreso de las clases medias: un tiempo de reformas para Argentina» em L. Paramio e C. Güemes: Las nuevas clases medias: ascenso e incertidumbre, cepc, Madri, 2017.

  • 8.

    Os autores empregam o termo «mediopelo»; no contexto dos estratos sociais, o termo possui carga pejorativa e refere-se a quem tenta aparentar uma condição social superior à que possui na realidade [n. do t.].

  • 9.

    Sergio Visacovsky e Enrique Garguin (eds.): Moralidades, economías e identidades de clase media. Estudios históricos y etnográficos, Antropofagia, Buenos Aires, 2009.

  • 10.

    Os autores empregam o termo «clase a medias». A locução em espanhol a medias é utilizada para caracterizar algo incompleto, pela metade [n. do t.].

  • 11.

    C. Güemes: «Aurea mediocritas: crecimiento, características y papel de las nuevas clases medias en Latinoamérica» em L. Paramio e C Güemes: Las nuevas clases medias latinoamericanas: ascenso e incertidumbre, cit.

  • 12.

    Ana Wortman: «Las clases medias argentinas, 1960-2008» em R. Franco, M. Hopenhayn e A. León (coords.): op. cit.

  • 13.

    Roberto Laserna: «Clases medias en la Bolivia urbana» em Daniel Moreno et al.: Chicha y limonada. Las clases medias en Bolivia, ceres / Plural, La Paz, 2018.

  • 14.

    Os termos ponchos e polleras se referem a vestimentas características de grupos indígenas bolivianos; whipala é a bandeira utilizada por alguns povos andinos e representa o Estado Plurinacional da Bolívia fundado com a Constituição de 2009; chola é um termo utilizado, por vezes de forma pejorativa, para se referir a grupos indígenas e mestiços do altiplano boliviano [n. do t.].

  • 15.

    María Teresa Zegada: «Clases medias emergentes» em D. Moreno et al.: op. cit.

  • 16.

    Rolando Arellano Cueva: «Valores e ideología: el comportamiento político y económico de las nuevas clases medias en América Latina» em Alicia Bárcena e Narcís Serra (eds.): Clases medias y desarrollo en América Latina, Nações Unidas, Santiago, 2010.

  • 17.

    María Hermínia Tavares de Almeida e Emmanoel Nuñes de Oliveira: «Nuevas capas medias y política en Brasil» em L. Paramio: Clases medias y gobernabilidad en América Latina, cit.

  • 18.

    ocde e Cepal: Perspectivas económicas de América Latina 2013. Políticas de pymes para el cambio estructural, lc/g.2545, ocde / Cepal, 2012.

  • 19.

    Jorge Resina: «Clases medias en Ecuador. Entre la ilusión del Buen Vivir y el mito del desarrollismo» em L. Paramio e C. Güemes: Las nuevas clases medias: ascenso e incertidumbre, cit.

  • 20.

    ocde: Latin American Economic Outlook 2011: How Middle-Class Is Latin America?, oecd Publishing, Paris, 2010.

  • 21.

    R. Franco e M. Hopenhayn: op. cit.; Glenita Amoranto, Natalie Chun e Anil Deolalikar: «Who Are the Middle Class and What Values do they Hold? Evidence from the World Values Survey», Working Paper No 229, Asian Development Bank, Manila, 2010.

  • 22.

    Miguel Székely Pardo: «Transferencias condicionadas y cohesión social en América Latina» em Guillermo Fernández del Soto e Pedro Pérez Herreros (coords.): América Latina: sociedad, economía y seguridad en un mundo global, ielat / caf / Marcial Pons, Madri, 2013.

  • 23.

    L. Paramio: «Conclusiones» em L. Paramio e C. Güemes: Las nuevas clases medias latinoamericanas: ascenso e incertidumbre, cit.

  • 24.

    Cepal: Panorama social de América Latina 2014, Nações Unidas, Santiago, 2014.

  • 25.

    María Esther del Campo, C. Güemes e L. Paramio: «‘I Can’t Get No Satisfaction’. Servicios públicos, democracia y clases medias en América Latina» em América Latina Hoy vol. 77, 2017.

  • 26.

    John A. Booth e Mitchell A. Seligson: The Legitimacy Puzzle in Latin America: Political Support and Democracy in Eight Nations, Cambridge up, Nova York, 2009; C. Güemes e L. Paramio: «‘Knockin’ on Heaven’s Door?’ Desempeño de las democracias, protesta social y clase medias en América Latina» em El impacto electoral de las clases medias emergentes en América Latina, Centro de Estudos Políticos e Constitucionais, Madri, 2015; Jaime Fierro: «Clase media y democracia en América Latina» em Perfiles Latinoamericanos vol. 23 No 46, 2015.

  • 27.

    A. Hirschmann e M. Rothschild: «The Changing Tolerance for Income Inequality in the Course of Economic Development» em The Quarterly Journal of Economics vol. 87 No 4, 1973. O efeito túnel se refere à sensação experimentada por um indivíduo em contextos de crescimento econômico no tocante à sua possibilidade de mobilidade social. O indivíduo que tem pouca informação sobre seu futuro enquanto seus familiares, conhecidos e amigos melhoram de posição econômica e social se sente como se estivesse preso em um congestionamento dentro de um túnel e visse avançar os carros da fila ao lado. Diante disso, o sujeito tem expectativas de que, em algum momento, chegará a sua vez de avançar e, portanto, se alegra com o crescimento dos demais, gratificação que suspende momentaneamente a inveja. Se, após um período, a pessoa não consegue avançar enquanto as demais já conseguiram, isso a coloca em pior posição, já que ela se sentiu alegre por um período, mas agora se sente muito pior. Sua posição relativa piorou, ela perderá esperanças e se transformará em um inimigo da ordem.

  • 28.

    L. de Riz: op. cit.

  • 29.

    M. H. Tavares de Almeida: «Capas medias, protesta y agenda pública» em L. Paramio e C. Güemes: Las nuevas clases medias latinoamericanas: ascenso e incertidumbre, cit.

  • 30.

    D. Moreno: «Aspiracionales, reales o imaginarias: las clases medias en Bolivia» em D. Moreno et al.: op. cit.; M. T. Zegada: op. cit.

  • 31.

    Sigmund Freud: O futuro de uma ilusão. [1927], l&pm, 2018.

Este artículo es copia fiel del publicado en la revista
ISSN: 0251-3552
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