Artículo
NUSO Nº Outubro 2008

O Brasil na África ou a África no Brasil? A construçao da política africana pelo Itamaraty

A política africana do Brasil começou há 50 anos e, apesar de ter passado por diferentes fases, jamais foi interrompida. Nos anos 90, as restrições orçamentárias e a crise econômica levaram a um enfoque mais seletivo, que centrou a atenção na África do Sul. Desde a chegada de Lula ao poder, em 2003, a política africana brasileira recuperou seu lugar. O presidente fez oito viagens ao continente africano e recebeu dezenas de visitas de alto nível. Essa reaproximação do Brasil com a África se baseia, sem dúvida, nos laços culturais e históricos mas também no crescente intercâmbio comercial e nas coincidências nos foros internacionais. O objetivo é contribuir para a diversificação das relações exteriores do Brasil como parte de uma estratégia que procura potencializar seu protagonismo internacional.

O Brasil na África ou a África no Brasil? A construçao da política africana pelo Itamaraty

Na segunda metade do século XX, o Brasil começou a se consolidar como potência regional através de um bem-sucedido processo de industrialização via substituição de importações. A política exterior foi um dos instrumentos para dar impulso a esse modelo. À medida que delineava seu perfil nacional em torno da definição de seus interesses, o Brasil avançava na sua inserção regional e global, desenvolvendo e afirmando sua política exterior através da ação do Itamaraty. Embora o período tenha sido marcado por governos civis e militares, a corporação diplomática conseguiu manter certa autonomia na formulação da política exterior e uma relativa continuidade na orientação dessa política.

Nesse contexto está situada a relação com os países do Sul, entre os quais os africanos, que foram se incorporando ao cenário mundial à medida que conseguiam sua independência. Para o Brasil, o incipiente desenvolvimento da cooperação Sul-Sul, em suas variantes política e comercial, implicava afiançar suas pretensões como potência média através de uma prática multilateral autônoma e da busca de mercados para a obtenção de matérias-primas e a colocação de manufaturas e serviços. A partir da década de 1960, o Itamaraty foi lentamente construindo uma política africana, com altos e baixos. Esse processo teve oscilações, que fazem parte de «uma linha histórica que combina oportunidades, esquecimentos e relançamentos».

Após um período inicial de aprendizagem, os anos 70 foram os anos dourados da política africana do Brasil. Mas essa política começou a se desvanecer nos anos 90, paralelamente ao aumento das restrições sistêmicas e dos problemas internos, tanto do Brasil quanto da África (o «custo África»). No final do século passado, e a despeito de um discurso que revalorizava a herança africana, as relações com os países dessa região – com poucas exceções – pareceram se diluir. Contudo, com Luiz Inácio Lula da Silva no governo, iniciou-se um período de renascimento da política africana do Brasil, no contexto de um Estado que procura ganhar um maior protagonismo internacional. Com uma infra-estrutura diplomática nada desprezível no que diz respeito a suas vinculações com a África e uma importante experiência acumulada, a política africana do Brasil ganhou novo impulso e novos ares.

O objetivo deste trabalho é, então, examinar as aproximações do Brasil com a África para poder compreender esse aspecto pouco trabalhado da política exterior brasileira e salientar o impulso dado pelo governo Lula. Os avanços na formulação de uma política africana

Embora o Brasil contasse com uma história colonial comum, plena de contatos intra-sul-atlânticos, após sua independência – e por imposição de Portugal – o país viu-se impedido de continuar as fluentes relações que mantinha com as colônias portuguesas na África. Esse afastamento involuntário começou a reverter no século XX, graças a um processo de recomposição gradual das relações com os novos Estados africanos, no contexto de sua política atlântica.

A aproximação em relação à África, ou melhor, a reaproximação, como definem Fernando Albuquerque Mourão e Henrique Altemani de Oliveira, foi conseqüência de um processo com alguns momentos emblemáticos. Iniciou-se com os países africanos de língua inglesa e francesa para alcançar depois os de língua portuguesa. O Brasil desenvolveu diferentes ações através de uma política incrementalista que foi se refletindo na densidade das vinculações e que se evidenciou no perfil e na quantidade de visitas, na assinatura de variados acordos de cooperação e no aumento das relações comerciais.

No Brasil, essa aproximação político-diplomática vinculou-se às estratégias de inserção do país, e é nesse contexto que os novos Estados africanos foram ganhando espaço. O principal agente foi o Itamaraty, conjuntamente com a Presidência, mas também participaram os militares e contribuíram empresários, parlamentares e acadêmicos (aquilo que Amaury de Souza chama de «comunidade de política externa»).

Naquele momento, as elites brasileiras aspiravam uma participação na emergente multipolaridade, com a idéia subjacente do Brasil como uma potência emergente. Aproximar-se dos países africanos foi uma questão de princípios e de interesses: o objetivo era promover a solidariedade entre os países do Sul e, ao mesmo tempo, aumentar a capacidade de influência do Brasil nos assuntos globais, a partir de uma diversificação de suas relações externas, tanto políticas como econômicas.Nas questões Sul-Sul, o Brasil se considerava parte do Terceiro Mundo sem ser terceiro-mundista. Portanto, o país nunca integrou plenamente – participando apenas como observador – o Movimento de Não-Alinhados. A política exterior brasileira se organizava em torno da hipótese dos «3D»: desarmamento, desenvolvimento econômico e descolonização.

À medida que a construção diplomática avançava, utilizou-se o discurso culturalista, centrado na familiaridade e na história comum a ambos os lados do Atlântico, como forma de seduzir os africanos. Nas palavras de Mourão, era a «diplomacia cultural». A influência africana no Brasil é extremamente relevante do ponto de vista étnico, cultural e lingüístico, e a herança africana molda parte do corpus social brasileiro. No entanto, a existência de raízes comuns não garantia o conhecimento das realidades africanas da segunda metade do século XX, sobre as quais os diplomatas tinham poucas referências, exceto por alguns contatos na Organização das Nações Unidas (ONU). Foi então o Itamaraty quem deu continuidade e fundamento a essas aproximações.

A política africana do Brasil foi, nesse sentido, uma política do possível, com importantes condicionamentos externos, em particular na sua vinculação com as colônias africanas de Portugal, dada a especialíssima relação que mantinha o Brasil com este país. Por isso, existiram ambigüidades nos vínculos com as colônias portuguesas até o momento em que se decidiu pela opção africana, com o imediato reconhecimento de suas independências.

Também houve ambigüidades com relação à África do Sul. Neste caso, as oscilações do Brasil traduziam certos interesses. Até meados da década de 1970, a relação bilateral se caracterizou pelo que foi definido como «ambigüidades», «vacilações», «contradições» ou ambivalências. Mais tarde, as relações com o governo do apartheid diminuíram à medida que se consolidavam os vínculos com os demais países africanos. Finalmente, com a nova democracia multirracial na África do Sul, o Brasil iniciou um inequívoco processo de construção de alianças estratégicas.

A política africana foi tomando forma com os diferentes governos que se sucederam no Brasil – dois democráticos, cinco militares e um governo de transição democrática – até a década de 90, na qual, por uma série de fatores condicionantes externos e internos, deu-se continuidade a esta estratégia de maneira muito seletiva, em função de um novo modelo de inserção internacional. Como contrapartida, ou talvez reação, a política africana foi retomada com a chegada de Lula ao governo.

Desde 1961, durante seu breve governo, Jânio Quadros implementou pela primeira vez, no quadro da chamada «política externa independente», uma estratégia global para a África que incluiu a abertura de embaixadas em Acra (Gana), Lagos (Nigéria), Nairóbi (Quênia) e Dacar (Senegal). Mas Jânio, como seu sucessor João Goulart, encontrou sérias limitações provenientes da escassa margem de manobra de um sistema internacional condicionado pelo conflito Leste-Oeste e da própria variável interna da nova política exterior.

Esse primeiro impulso, no entanto, perdeu força com o golpe militar de 1964. No governo de Humberto Castello Branco (1964-1967), houve uma «política de alinhamento automático com os Estados Unidos». No governo de Arthur Costa e Silva (1967-1969), a política africana foi redefinida quando o Itamaraty se tornou o condutor da «diplomacia da prosperidade». Mas foi com Emílio Garrastazu Médici (1969-1974) e sua «diplomacia do interesse nacional» que se deu uma nova dimensão à política africana. Nesse período, as disputas intra-burocráticas mostraram a ausência de consenso em relação ao papel da África.

Em termos gerais, tanto Médici como seu sucessor, Ernesto Geisel (1974-1979), sustentaram uma política exterior destinada à redução do grau de dependência do Brasil através da diversificação das relações exteriores, sem fronteiras ideológicas. Na época, o «pragmatismo ecumênico e responsável» de Geisel, tornou-se um instrumento na ação externa do Brasil. No Itamaraty, o ativismo de Italo Zappa, o chefe do Departamento da África, Ásia e Oceania, contribuiu para a construção deste novo momento emblemático da política africana do Brasil, cujo ponto mais alto foi a definição de uma postura frente à independência das colônias portuguesas. Quando o Brasil reconheceu a independência de Angola, em 11 de novembro de 1975, e mais tarde das outras colônias portuguesas, rompeu um ciclo de alinhamento automático com Portugal em relação à África. Iniciava-se assim uma relação privilegiada com a Angola independente e uma melhora evidente nos vínculos com o resto do continente.

A partir da presidência de Geisel, iniciaram-se dez anos de ótimas relações. Como afirmam Mourão e Oliveira, trata-se de «uma etapa de um processo em que ocorreu a inserção definitiva do Brasil na África austral». No momento, a fase de aprendizagem estava superada e o Itamaraty já contava com uma massa crítica conhecedora dos assuntos africanos. Neste período de contatos prolíficos, a densidade das relações viu-se refletida na abertura de novas embaixadas, no alto nível das visitas e missões e na assinatura de acordos bilaterais de cooperação comercial e técnica. Por sua vez, multiplicaram-se as rotas de comércio e os investimentos em projetos de desenvolvimento.

Embora a aproximação em relação à África fosse uma estratégia política, a dimensão comercial não esteve ausente. De fato, esse foi o aspecto mais visível. Na década de 1970, o comércio exterior tinha alcançado uma importância crescente em função do modelo de desenvolvimento econômico que precisava da importação de petróleo e bens de produção. A África surgia como um mercado potencial. A vulnerabilidade energética do Brasil foi um estímulo para a aproximação com os Estados africanos produtores de petróleo. Em conseqüência, as relações comerciais se concentraram de forma muito acentuada em poucos países.

Durante esse período, as exportações brasileiras para a África apresentaram um crescimento significativo. No começo do governo de Médici, os destinos das vendas eram o norte da África e a África do Sul. Mas, durante o período de Geisel, a África do Sul perdeu peso nas exportações enquanto Gabão, Congo e Angola começaram a ter uma participação maior. No entanto, não se tratou apenas de uma mudança de parceiros, mas também de uma profunda alteração na composição das exportações brasileiras para a África: elas passaram a ser predominantemente de produtos manufaturados. Além do campo comercial, o aumento do intercâmbio se deu também nas áreas de venda de serviços, tecnologia e bens de capital destinados a obras de infra-estrutura: construção de represas hidrelétricas, estradas, transportes ferroviários, obras de saneamento, telecomunicações, agropecuárias e inclusive treinamento de pessoal técnico.

Embora as crises do petróleo de 1973 e 1979 e a crise da dívida externa de 1982 tenham representado ataques ao modelo defendido pelo Brasil, no governo de João Baptista de Oliveira Figueiredo (1979-1985) e no contexto de uma política exterior dominada pelo chamado «universalismo», a ênfase na aproximação ao continente africano foi mantida. Na perspectiva de uma dupla inserção do Brasil, no Ocidente e no Terceiro Mundo, o objetivo era somar estratégias e não excluir campos antagônicos. As relações políticas atingiram um nível de densidade relevante. A viagem de Figueiredo à África em 1983 foi a primeira de um presidente brasileiro e sul-americano ao continente e incluiu países lusófonos, francófonos e anglófonos. Foi a melhor prova do interesse do Brasil pelos países da África e marcou um momento muito importante na construção da política africana. Como contrapartida, o Brasil recebeu diversas visitas de chanceleres e chefes de Estado africanos, que demonstraram que o interesse era recíproco.

Até o governo de Figueiredo, o comércio exterior com a África mostrou um crescimento significativo, com uma balança comercial positiva para o Brasil. Pereira salienta o fato de que a África tinha se transformado em «um mercado para a prestação de serviços, que impulsiona e consolida a venda de mercadorias e proporciona a prova real de transferência de tecnologia». O autor ressalta também a introdução do countertrade com a Nigéria e Angola, ou seja, o intercâmbio de petróleo africano por mercadorias ou serviços do Brasil.

No primeiro governo de transição para a democracia, beneficiado pelo clima da Nova República, José Sarney (1985-1990), no contexto de sua «diplomacia de resultados», seguiu a linha da política africana. A continuidade conceitual e prática da política africana do Brasil nos anos 80 refletiu a continuidade da política exterior do nacional-desenvolvimentismo. Contudo, a retração das exportações e das importações, derivada dos problemas econômicos do modelo, fez com que a política africana começasse a ser questionada e vinculada a um «terceiro-mundismo» sem resultados satisfatórios.

Desse modo, o enfoque seletivo começou a avançar. A maior aproximação com Angola e os países da África Austral, somado ao aumento das tensões na África do Sul, levou Sarney a procurar uma posição mais crítica frente a Pretória, tanto no nível do discurso (na ONU) quanto na prática. Foram adotadas medidas concretas, como o chamado «decreto Sarney», que se tornou um guia da relação com a África do Sul até o final do regime racista naquele país.

O «seletivismo» dos anos 90

Durante a década de 90, e devido ao aumento da vulnerabilidade externa, o Brasil realizou ajustes a fim de se reacomodar em função dos meios disponíveis, mais limitados que no passado. O objetivo continuou a ser a diversificação das relações internacionais para conseguir um maior protagonismo na cena mundial. O que mudou foi o cenário, que se deslocou do Terceiro Mundo (e da África) para outros contextos, entre os quais a América Latina, o Mercosul e as organizações multilaterais – particularmente as comerciais, como a Organização Mundial do Comércio (OMC).

Essa guinada também se explica pelo chamado «custo África», ou seja, pela recorrente instabilidade política e econômica da maior parte dos países da região, que levou muitos países africanos a se afastar das rotas de capitais e a não pagar suas dívidas. Os sonhos cooperativos deram lugar ao afropessimismo. A política africana perdeu força e se acentuou seu caráter seletivo, às vezes encoberto pelo recurso à diplomacia cultural. As relações bilaterais começaram a se concentrar naqueles países que tinham condições de responder às necessidades brasileiras. A cooperação Sul-Sul das décadas de 70 e 80 deu lugar às «associações estratégicas».

O foco se centrou em poucos países e temas. Observou-se uma importância crescente da África do Sul – já democrática –, de Angola e da Nigéria. No âmbito multilateral, fomentou-se a cooperação com os países da Comunidade para o Desenvolvimento da África Austral (SADC, na sigla em inglês) sob o guarda-chuva do Mercosul, também com a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) e com a Zona de Paz e Cooperação do Atlântico Sul (ZPCAS) participando das Operações de Manutenção da Paz na África. As viagens presidenciais e as visitas de alto nível revelam a direção das opções, assim como os convênios e acordos assinados com África do Sul, Namíbia, Angola, Moçambique, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe e Nigéria.

Essa diminuição da ênfase na política africana e o avanço da política seletiva podem ser explicados a partir do programa de modernização liberal implementado por Fernando Collor de Melo (1990-1992), que visava reforçar os laços com o Primeiro Mundo e se voltar para a América Latina e o Mercosul. Esse processo substituiu, segundo Saraiva, o sentido estratégico-econômico que as relações com a África haviam tido nas décadas de 70 e 80.

Com Itamar Franco, que sucedeu Collor em 1992, o neoliberalismo se atenuou. Houve uma volta tímida à política africana, priorizando os países de língua portuguesa e a região da África Austral, com eixo na África do Sul. Contudo, o chanceler, Fernando Henrique Cardoso, acreditava que o Brasil se enganara ao apostar na África durante o governo de Geisel, opinião que provocaria as críticas do Itamaraty – principalmente do embaixador Italo Zappa – e de alguns empresários, acadêmicos e embaixadores africanos credenciados em Brasília.

Com o governo de Cardoso e sua «diplomacia presidencialista», a tradicional visão desenvolvimentista foi substituída por um novo ideário neoliberal que considerava a aproximação com o Terceiro Mundo obsoleta e anacrônica. A África não estava entre as prioridades do novo governo e apenas alguns países eram mencionados de maneira tangencial. Junto com a política seletiva, aprofundou-se a distância entre o discurso e as ações, e foi incrementado o apelo culturalista. Isto se evidencia claramente na opinião do ministro das Relações Exteriores de Cardoso, Luiz Felipe Lampreia:

Uma política africana de resultados nos planos político, econômico e de cooperação parte dos muitos elementos de identidade existentes entre o Brasil e a África e da contribuição cultural e étnica do continente africano em nossa formação como nação soberana e independente – para não falar da riqueza material criada pelo trabalho africano. (...) Prestamos colaboração aos países africanos na medida das possibilidades – as que, francamente, são bem distintas das que prevaleceram na década de 70 e início dos anos 80, quando existiam condições objetivas para oferecer créditos subsidiados a vários países africanos. Hoje, as condições são outras no Brasil e na África.

Como as limitações econômico-financeiras foram uma restrição importante, o Itamaraty buscou privilegiar a aproximação política, através da proposta de um tratado de desnuclearização e de proteção do meio ambiente do Atlântico Sul, no âmbito da ZPCAS. Esta era considerada uma maneira criativa e útil de manter a África na agenda da política externa. Além disso, o maior envolvimento de setores privados nos assuntos exteriores e a volta da democracia no Brasil favoreceram as comunidades de afrodescendentes e de grupos pró-África que já tinham começado a reclamar, durante o governo de Sarney, a ruptura de relações diplomáticas com a África do Sul. Desse modo, apesar do baixo perfil e da seletividade que predominaram nessa fase, começaram a se organizar grupos interessados na formulação da política africana.

A relação com a África do Sul merece atenção especial. A partir de 1994, após a instauração da democracia multirracial, este país se tornou um sócio importante para o Brasil. A ligação pessoal entre Lampreia e o ministro de Comércio e Indústria sul-africano, Alec Erwin, favoreceu uma relação diplomática relevante e um comércio crescente. A estratégia brasileira procurou complementar a relação bilateral por meio da criação de um acordo de livre comércio entre o Mercosul e a África do Sul. Embora Lampreia tenha feito três viagens a esse país, a visita de Cardoso em 1996, acompanhado de vários ministros e 70 empresários, marcou uma diferença importante ao mostrar quais eram as intenções do Brasil: juntar esforços nas negociações multilaterais e desenvolver as potencialidades nos aspectos econômico-financeiros. Do lado africano, as visitas a Brasília confirmaram as preferências brasileiras. Mandela visitou o Brasil em 1991 durante uma viagem por países da América Latina para promover a luta anti-apartheid. Em 1995, o chanceler da nova África do Sul, Alfred Nzo, viajou para Brasília; em 1997, foi a vez do vice-presidente Thabo Mbeki e, em 1998, novamente Mandela. Finalmente Mbeki, o novo presidente sul-africano, esteve em Brasília em dezembro de 2000, quando voltou a atravessar o Atlântico para a assinatura em Florianópolis do projeto de Acordo-Quadro para a criação de uma Área de Livre Comércio entre o Mercosul e a África do Sul.

Lula e a revalorização da África

No seu programa de governo, Lula já tinha proposto conseguir uma aproximação com países de importância regional como a África do Sul, a Índia, a China e a Rússia, além de retornar à política africana explorando os laços étnicos e culturais e construindo novas relações econômicas e comerciais.

Embora o governo Lula tenha sucedido uma década de baixa densidade na política do Brasil em relação à África, também herdou a experiência e a estrutura necessárias para o relançamento da política africana. Graças a uma extensa história de vinculações, o Brasil tem 31 missões diplomáticas em 53 países africanos e dispõe de 27 embaixadas africanas em seu território. O Itamaraty possui um departamento dedicado à África dividido em três áreas que incluem países e instituições multilaterais regionais de cooperação e integração.

A nova ênfase na política africana mostrava coerência entre a política externa e a política interna, que respondia às crescentes demandas dos afrodescendentes. Uma resposta imediata foi a aprovação, em 10 de janeiro de 2003, da Lei Federal 10.639, que tornou obrigatório, em todos os níveis do ensino, o estudo da história e da cultura africanas e afro-brasileiras e a criação, em 21 de março do mesmo ano, da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, para lutar pela igualdade e promover a proteção dos direitos de indivíduos e grupos raciais e étnicos afetados pela discriminação, com especial ênfase na população negra

Desde o início do novo governo, a revalorização do projeto de cooperação Sul-Sul como instrumento para ampliar as margens de manobra nas negociações mundiais, junto às promessas de um retorno à política africana dos anos 70, pareceu começar a se tornar realidade. Prova disso é a viagem do chanceler Amorim a sete países africanos apenas quatro meses depois de ter assumido. Nesse contexto, insere-se também o «Fórum Brasil-África», organizado em Fortaleza pelo Ministério das Relações Exteriores do Brasil em cooperação com o Grupo de Embaixadores Africanos. A reunião contou com a participação de diplomatas, altos funcionários, acadêmicos e empresários. Os tópicos abordados – políticas e questões sociais, economia e comércio, e educação e cultura – mostram qual é a direção da cooperação do Brasil (bi e multilateral) com os Estados africanos.

As prioridades se evidenciam também nas oito viagens que Lula fez à África. A primeira foi ainda no seu primeiro ano de gestão, em novembro de 2003, quando da visita a São Tomé e Príncipe, Angola, Moçambique, África do Sul e Namíbia. Em julho de 2004, Lula participou em São Tomé e Príncipe da V Conferência dos Chefes de Estado e de Governo da CPLP. Na terceira viagem presidencial, em abril de 2005, Lula visitou países da África ocidental: Camarões, Nigéria, Gana, Guiné-Bissau e Senegal. O presidente senegalês, Abdoulaye Wade, chamou Lula de «o primeiro presidente negro do Brasil» e acrescentou: «Considere-se um africano».

Em fevereiro de 2006, Lula realizou sua quarta visita à África, que incluiu Argélia, Benin, Botsuana e África do Sul. No mesmo ano, o presidente voltou à África para participar de dois encontros multilaterais de grande relevância: a VI Reunião de Cúpula da CPLP em Guiné-Bissau, em julho, e a Reunião de Cúpula África-América do Sul (ASA) em Abuja (Nigéria), em novembro, com o objetivo de impulsionar a cooperação Sul-Sul.

Na sétima viagem pelo continente africano, em 2007, Lula visitou Burkina Faso, Congo, África do Sul e Angola. A novidade foi o tema dos biocombustíveis, que o presidente levou na sua pasta, estimulando os países africanos a produzir esse tipo de combustível e oferecendo-lhes a tecnologia para a transformação da cana-de-açúcar. O ponto alto da viagem foi a reunião da II Cúpula dos Chefes de Estado do IBAS (Índia, Brasil e África do Sul) em Pretória, na África do Sul, e a visita a Angola para a assinatura de sete acordos financeiros de investimento brasileiro. Em abril de 2008, Lula voltou à África, desta vez a Gana, para participar da XII Conferência das Nações Unidas para o Comércio e o Desenvolvimento (UNCTAD, na sigla em inglês) e para a assinatura de acordos com o presidente daquele país.

Contudo, não são apenas as viagens de Lula que demonstram a política ativa em relação à África. Desde 2003, o presidente recebeu mais de uma dúzia de chefes de Estado e dezenas de representantes especiais e ministros africanos. Só em 2005, ocorreram em Brasília encontros com os presidentes de Argélia, África do Sul, Congo, Gâmbia, Nigéria e Cabo Verde. Outro dado revelador é a quantidade de convênios internacionais assinados entre o governo do Brasil e os Estados africanos entre 2003 e 2007: mais de 160 acordos, quase a mesma quantidade que os firmados entre 1960 e 2002 (172).

É interessante notar que, ao lado dessa intensificação das relações gerais com a África, a África do Sul ainda tem prioridade. Isto supõe uma continuação e um aprofundamento das iniciativas tomadas durante o governo de FHC, junto com uma combinação de diplomacias bilateral e multilateral, como no caso dos acordos entre o Mercosul e a União Alfandegária da África Austral (SACU, na sigla em inglês), processo de integração liderado pela África do Sul.

Esses esforços não foram em vão. O comércio do Brasil com a África aumentou progressivamente neste período: passou de US$ 5 bilhões em 2002 para US$ 6 bilhões em 2003, US$ 10,4 bilhões em 2004 e US$ 12,6 bilhões em 2005. Em 2006, atingiu 15,556 e, em 2007, quase 20 bilhões. O intercâmbio do Brasil com a África representa 7% do comércio exterior brasileiro.

Os produtos comercializados variam de acordo com cada país. Em termos gerais, entre as importações da África, têm destaque o petróleo, os minérios e os produtos de origem animal e vegetal. Já as principais exportações do Brasil incluíram o açúcar e seus derivados, carnes e bens manufaturados. Além deste aumento do intercâmbio comercial, também foi reforçada a cooperação técnica e cultural promovida pelo governo brasileiro, tanto no âmbito bilateral quanto no da CPLP.

Olhando para o futuro

Ao longo de quase 50 anos, o Brasil desenvolveu uma política incrementalista com os países africanos que foi adquirindo experiência até encontrar um limite na década de 90, devido à ausência de recursos suficientes e à persistência de problemas nos Estados africanos. Tratou-se de uma política pragmática, que tinha o interesse nacional como fio condutor, no contexto dos desenhos globais nos quais a cooperação Sul-Sul tinha reservado seu lugar.

A partir do governo de Lula, a política africana foi retomada, aproveitando a experiência acumulada pelo Itamaraty. Para otimizá-la, foi desenhada uma estratégia que procura jogar com os mesmos atores em múltiplos cenários (bilaterais, regionais, multilaterais), num jogo de «geometria variável». Exemplo disso são as negociações Mercosul-SACU. Do mesmo modo, o lançamento do grupo IBAS (que inclui a África do Sul) em junho de 2003 envolveu um processo de concertação de políticas entre três potências emergentes do Sul, que dividem interesses, necessidades e capacidades semelhantes, visando fortalecer seu poder de negociação nos foros comerciais mundiais. O diálogo IBAS combinado com as negociações Mercosul-SACU confluíram na iniciativa brasileira que promove um acordo trilateral de Livre Comércio Índia-Mercosul-SACU, que complementaria as negociações em curso entre Índia-Mercosul e Índia-SACU.

Tudo isto confirma a idéia de que o Brasil avança, nestes difíceis cenários político-diplomáticos e econômico-comerciais, como um ator regional e uma potência emergente. Simultaneamente, o país mantém acesa a chama da cultura lusófona nas reuniões dos países da CPLP, com quem compartilha uma língua, mas poucas relações comerciais (salvo com Angola). Também promoveu a Cúpula América do Sul-África, participando ativamente das reuniões preparatórias da II Cúpula na Venezuela. Em linha com a estratégia de construção de alianças, Amorim afirmou em 2008, em Brasília, ao abrir a reunião preparatória para esse evento, que entre a América do Sul e a África teve início um «diálogo de múltiplas dimensões», com vistas a que ambas as regiões tenham uma voz unida e forte no cenário internacional.

Cabe então perguntar sobre a continuidade desse impulso no caso de que mudem as condições internacionais. Se persistirem na África certas situações positivas, como a diminuição dos conflitos, consolidando-se uma democracia «à africana» que permita certa estabilidade, e se for mantida a tendência dos altos preços dos produtos básicos com os quais o continente conta, é possível acreditar na continuação e no aprofundamento da política africana do Brasil.

Já um cenário africano mais pessimista, com a África novamente imersa em uma disputa por seus recursos naturais – cada vez mais valiosos –, poderia aprofundar as crises políticas e econômicas e levar a uma retração da política africana do Brasil, para além de seu discurso cultural e de suas raízes afro-americanas.

Este artículo es copia fiel del publicado en la revista Nueva Sociedad , Outubro 2008, ISSN: 0251-3552


Newsletter

Suscribase al newsletter