Tema central
NUSO Nº Novembro 2015

Dívidas e desafios de uma nova agenda em educação

Dívidas e desafios de uma nova agenda em educação

Nota: Tradução de Luiz Barucke. A versão original deste artigo em espanhol foi publicada em Nueva Sociedad No 258, 7-8/2015, disponível em www.nuso.org.

Em um artigo publicado em 1968, o educador e teólogo Iván Illich denunciou a «inutilidade da escola na América Latina» com o argumento de que a expansão educacional estava beneficiando um grupo muito restrito da sociedade e que seria melhor destinar o dinheiro gasto na educação a outras áreas. Para Illich, o sistema educacional constituía um funil que deixava passar alguns poucos e gerava conformismo e subordinação naqueles que ficavam para trás1. Ele considerava a escola uma instituição social onerosa, antidemocrática e antiquada, cujo maior dano era criar uma nova burguesia ilustrada separada do povo. Em sua perspectiva, a reforma necessária passava por redistribuir a formação escolar em um conjunto de instituições (fábricas, organizações sociais, meios de comunicação, novas escolas de dois meses de duração); tratava-se de desescolarizar a sociedade para avançar rumo a mais democracia e igualdade.

Na época em que escreveu Illich, 32,6% da população latino-americana era analfabeta ou havia frequentado a escola por menos de três anos2. Apesar dos esforços dos governos nacionalistas e populares de meados do século, ainda em 1970 a maioria dos latino-americanos concluía seus estudos com a escola primária, e somente um em cada cem ingressantes do primário se formava na universidade. Os conteúdos dessa formação eram em sua maioria eurocêntricos e enciclopédicos, quando não diretamente obscurantistas – como foi o caso durante as ditaduras militares dos anos 1960 e 1970 no Cone Sul.

Quase 50 anos depois, a situação da educação na região é claramente distinta. Um primeiro elemento que chama a atenção é que, longe de se convencer da inutilidade da escola que denunciava Illich, a população da região voltou-se maciçamente para o sistema escolar. Segundo dados de 2012, o percentual da população alfabetizada alcança 91,4%, e os jovens latino-americanos têm uma expectativa de vida escolar de 13,4 anos, muito próxima à do sul e centro da Europa. A partir do século xxi, há dois sinais claros da expansão da escolarização: o crescimento do ensino de níveis médio e pré-escolar, e a democratização social da escolaridade. No caso do nível médio, a matrícula chegou em 2013 a 93% da população em idade escolar, embora siga sendo menos inclusiva em sua última etapa. A cobertura do nível pré-escolar passou de 60% em 2004 para 77% em 20133. Hoje, mais crianças vão à escola e frequentam por mais anos. Por outro lado, o sistema escolar avançou para uma maior cobertura social. Tanto o nível pré-escolar como o secundário estavam reservados aos setores sociais médios e altos; para os demais setores da população, tais níveis eram um luxo difícil de sustentar. A situação atual mostra uma modificação impactante da composição social da população escolar, apoiada tanto em um esforço das políticas educacionais para aumentar o orçamento e criar novas escolas como em uma enorme mobilização das famílias e comunidades para apoiar a escolaridade de seus filhos.

Nessa mudança, tem sido fundamental a afirmação, nesta primeira década e meia do século xxi, de uma agenda de direitos e políticas de inclusão social e cultural. A presença de governos com políticas «pró-equidade» – conforme denominada pela Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (cepal) – de centro-esquerda ou populares significou na região a ampliação da cidadania a direitos sociais e políticos antes impensáveis. Como assinala um estudioso das políticas urbanas, há atualmente na região ensaios e experimentos igualitaristas que merecem ser estudados para aprendermos com suas propostas de integração e criação em condições distantes das ideais4. No âmbito das políticas educacionais, Axel Rivas destaca em um trabalho recente que a última década caracteriza-se por um «triplo processo conjunto de expansão dos direitos educacionais»: maior acesso e inclusão à educação, maior financiamento educacional e maior reconhecimento dos direitos das populações excluídas5. São tempos distintos dos anos 1990, quando a agenda era dominada pelos organismos internacionais de crédito e centrava-se em reformas da administração, currículos e sistemas de avaliação. A confluência de uma maior iniciativa estatal – sobretudo a partir de políticas educacionais que ampliaram a obrigatoriedade escolar para 11, 12 ou 13 anos de idade e aumentaram os recursos destinados a bolsas de estudo, apoios e infraestrutura física e tecnológica – e de uma ampliação da demanda por escolarização concebida como parte dos direitos básicos do cidadão levou a um crescimento inédito da escolarização na região, equiparável em seu ritmo aos primeiros anos de expansão do sistema no final do século xix ou da década do Pós-Guerra.

Mas há um aspecto no qual a pregação illichiana da desescolarização teve maior aceitação, em alguns casos por bons motivos. Os sistemas educacionais são maiores e mais poderosos em termos de recursos; no entanto, contam hoje com muito menos legitimidade do que há algumas décadas, não só na região, mas no mundo todo. Como assinala George Steiner, as críticas ao sistema escolar podem ser lidas como uma espécie de «grito de guerra» do «contra-ataque aos privilégios dos letrados», porque desses privilégios «foram excluídos centenas de milhões de seres humanos»6.

No caso da América Latina, com uma história de forte exclusão educacional, os atuais questionamentos envolvem a organização institucional e os conteúdos da escola. A ideia de uma instituição escolar destinada à transmissão cultural encontra-se hoje sob cerco em várias frentes: as novas teorias da aprendizagem que propõem o aluno como centro; as críticas a partir do multiculturalismo e do pluralismo, que questionam o «cânone» eurocêntrico e patriarcal; a demanda por uma formação adaptada às necessidades flexíveis do mercado de trabalho e de uma administração eficiente e não burocrática, com porta-vozes claros das propostas neoliberais; e o discurso que celebra as novas tecnologias e sustenta que escolas e professores não farão falta, pois os alunos poderão acessar os conhecimentos por conta própria. Trata-se de um arco muito diversificado que raramente coincide com políticas concretas, mas que converge em um discurso público de desconfiança com relação à escola e particularmente com relação aos professores, vistos como os mais claros representantes do conservadorismo cultural e da defesa de interesses burocráticos e corporativos. Assim, o horizonte para o qual se expande a escola é menos otimista do que nos anos 40 e 50 do século xx e mostra algumas limitações e tensões que necessitam ser atendidas a partir de políticas de ampliação da escolaridade, como será abordado mais adiante.

Em alguns países, como Argentina, Brasil, Equador e Bolívia, as críticas democráticas ao caráter excludente da escola impulsionaram mudanças curriculares que incorporam ao currículo oficial a história recente, a história e a cultura afro, e a perspectiva epistêmica e política dos povos indígenas. As críticas levaram também a ensaiar formas de cogoverno docente-estudantil e de eleição popular de autoridades, como ocorreu em vários estados brasileiros. Mas é possível observar que essa tomada de posição aberta e explícita, que «desce» o sistema educacional do pedestal de suposta neutralidade em que havia sido colocado desde o final do século xix, coloca-o ao mesmo tempo no meio de disputas e debates sobre a autoridade e a cultura comum. De maneira similar ao que Walter Benjamin destaca sobre a perda de aura nas obras de arte na época da reprodutibilidade técnica, nota-se que o sistema educacional se dessacraliza e democratiza ao horizontalizar-se e abrir-se à comunidade e a novos saberes, mas também perde consenso, sobretudo porque essas reformas não são acompanhadas – pelo menos não em todos os casos – de outras estratégias e políticas que ajudem a construir novas legitimidades mais duradouras. As novas propostas são, em muitos casos, transitórias e precárias, ou permanecem presas a processos de politização partidária que colocam em risco sua continuidade para além dos governos de ocasião. É possível perceber nessa transitoriedade um sintoma das novas condições de legitimidade nas democracias contemporâneas, mais plebiscitárias e efêmeras do que as anteriores, o que afeta as políticas educacionais tanto quanto outras políticas públicas7. O certo é que as escolas atuam em condições nas quais suas decisões são continuamente monitoradas e submetidas a questionamentos a partir das políticas centrais e da pressão das famílias, comunidades e da mídia, e que um discurso antiescolar – tanto da direita neoliberal como da esquerda libertária – condiciona significativamente suas margens de ação.

Além do debate cultural e das mudanças políticas realizadas na região, há outro elemento que confere menos legitimidade ao processo de inclusão e ampliação de direitos educacionais das últimas décadas e que mostra outros limites e ambivalências das recentes políticas educacionais. As desigualdades que antes se expressavam na brecha entre a população escolarizada e a não escolarizada se deslocaram hoje em direção ao interior dos sistemas escolares, inclusive para o interior das mesmas escolas, que veem aparecer circuitos de qualidade distinta nos turnos matutino e vespertino. As escolas nas quais ingressam os jovens pobres têm em muitos casos sérios problemas de estrutura, recursos docentes instáveis e estratégias pedagógicas deficientes. Um dos mais graves problemas das escolas é o absenteísmo de alunos e docentes, que, no caso do México, levou à inclusão, entre os objetivos da política educacional, garantir «condições mínimas de normalidade» de presença nas escolas, assumindo que tais condições não são a regra. No caso da Argentina, relatórios ministeriais destacam que as escolas públicas têm uma taxa de deserção duas vezes maior que a das escolas privadas, e que as taxas de absenteísmo docente nas públicas são três vezes superiores às das privadas. Esses exemplos mostram que as desigualdades na experiência escolar entre os alunos de setores médios e altos e dos setores baixos são notórias, e que a ampliação dos direitos e a obrigatoriedade do ensino não garantem por si sós uma trajetória escolar equivalente.

Portanto, que condições e possibilidades existem para políticas que promovam uma reforma educacional mais duradoura e de maior alcance, que consiga abordar alguns dos aspectos que limitam a democratização da educação? O panorama é complexo e, acima de tudo, variável nos distintos contextos da região. As dívidas e os desafios dos países centro-americanos, onde o percentual de analfabetismo segue próximo de 30%, não são os mesmos dos países da América do Sul, em que o desafio é melhorar a retenção no ensino médio superior e mudar as formas e os conteúdos da instituição escolar. Tampouco são os mesmos entre países onde o discurso neoliberal da avaliação e do mérito continua estruturando as políticas educacionais, como é o caso do Chile e do México, e países onde o discurso público afirma o protagonismo do Estado nacional ou a autonomia das comunidades, como na Argentina e na Bolívia. Além disso, há diferentes tradições pedagógicas e estruturas administrativas e trabalhistas nos distintos países, o que gera condições díspares para o trabalho docente. No entanto, apesar de todas essas diferenças e especificidades, podem ser destacados alguns aspectos que afetam a situação educacional da região e que, de uma forma ou de outra, são questões que devem ser consideradas nas políticas educacionais nacionais e locais.

O primeiro aspecto vincula-se aos desafios propostos pela extensão da obrigatoriedade escolar a idades mais jovens e mais avançadas, uma medida que demanda simultaneamente vários atores e aponta para a necessidade de mudanças profundas nas instituições educacionais para fazer frente às novas condições e necessidades. Não bastam leis e programas de bolsas ou apoio econômico; a extensão da escolaridade requer intervir simultaneamente com políticas integrais em várias direções, entre as quais são fundamentais as formas e os conteúdos da escola. Juan Carlos Tedesco assinala que a obrigatoriedade «impacta em múltiplas dimensões»: no desenho das instituições, nos conteúdos curriculares, nas formas de avaliação, nos regimes de convivência e nas formas de ensino8. Por sua vez, para Claudia Bracchi, que foi diretora de Educação Média da província argentina de Buenos Aires, a obrigatoriedade implica redefinir as formas da escolaridade: «pensar em uma escola secundária para todos é definir que não há uma só maneira de ir à escola e que esta necessariamente deve revisar seu modelo organizacional e desenho curricular, redefinir o tempo e o espaço escolar, e construir sua identidade para poder cumprir com o mandato da obrigatoriedade e da universalização»9. É evidenciado um mal-estar com as formas de processar a inclusão na escola que questiona em muitos casos a própria instituição, e não só – nem principalmente – os novos atores.

A pergunta que surge no atual contexto é se a estrutura atual da escola, considerada rígida e tradicional, é a adequada para atender às novas demandas; e se as mudanças devem ir na direção do discurso antiescolar ou seguir outras direções. Nas últimas décadas, tem havido um crescimento da função social da escola e um deslocamento das funções tradicionalmente acadêmicas que estão alterando a instituição escolar. Não se trata somente de formar para trabalhos ou futuros não vinculados à universidade, mas também de abrir espaço durante a escolaridade para ações e conteúdos vinculados à sociabilidade. Muitos alunos secundaristas necessitam receber merenda, suplementos alimentares ou bolsas de apoio econômico (seja em dinheiro, em material de estudo ou vestimenta) e requerem apoio social para situações familiares diversas ou para enfrentar problemas com drogas ou atritos com a lei. Assim, surgem nas escolas novas figuras (assessores, gabinetes, orientadores) e redes externas de apoio – que incluem juizados, organizações de proteção de menores ou centros de saúde – que complementam, contribuem e, às vezes, tensionam a ação da escola10. A incorporação de outros agentes é produzida muitas vezes «de fato», sem que haja uma maior integração e supervisão de suas ações para convergirem com as políticas de expansão da escolaridade. Esses atores localizados nas bordas das escolas são algumas vezes os canais pelos quais se processam os limites das políticas inclusivas e aqueles que minam ou reduzem os esforços de ampliação dos direitos educacionais.

Mas o crescimento da função social da escola e o deslocamento da formação acadêmica também ocorrem em países europeus ou asiáticos, embora não envolvam necessariamente os mesmos processos das sociedades latino-americanas. Por exemplo, um relatório de 2004 da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (ocde) mencionou que a escola do futuro terá de abranger funções sociais como cuidar das crianças durante a jornada de trabalho de seus pais ou ser um centro de recreação ou convivência para fortalecer a aprendizagem do «viver juntos»11. Sobretudo a partir do desenvolvimento das novas tecnologias, supõe-se que muitas aprendizagens ocorrerão fora da escola, ainda que o conteúdo e a forma como se aprende com os meios digitais dentro e fora da escola ainda sejam objeto de muito debate. Nesse contexto, o que ocorre dentro do espaço escolar cobra outra significação, e enfatiza-se o fornecimento de espaços de sociabilidade, segurança e bem-estar à infância e à juventude, termos que até poucas décadas atrás não figuravam entre os objetivos dos colégios ou escolas de nível médio12.

O deslocamento das funções acadêmicas na formação vincula-se a transformações culturais e sociopolíticas mais gerais que devem ser consideradas para entender os desafios apresentados pela extensão da obrigatoriedade da escola na região latino-americana, algo que volta a trazer a crítica antiescolar já mencionada. No início do século xxi, a consolidação da chamada «sociedade do conhecimento» ou «em rede» toca o cerne da estrutura curricular e organizacional da escola, sobretudo em dois aspectos fundamentais. Por um lado, a classificação do saber herdada do final do século xix e início do século xx está sendo desafiada pelo surgimento de novos campos e pela tendência à interdisciplinaridade, o que ameaça a estabilidade das próprias disciplinas. Por outro, surge também com força avassaladora a partir das novas tecnologias uma ideia de inteligência coletiva que se opõe ao «conhecimento especialista» e promove um «culto ao amateur», à opinião e ao gosto das massas (o «curtir» do Facebook ou de outros espaços da Internet, como os portais de jornais). Nesses tempos de redes sociais e mensagens instantâneas, parece que tem mais valor uma frase de efeito curta e chamativa ou uma imagem impactante do que um trabalho longo e complexo em que sejam oferecidos argumentos fundamentados. Essa inversão afeta o currículo escolar, pois já não se trata somente de ter melhores professores nas disciplinas tradicionais, mas também de modificar as pedagogias e a proposta curricular para que estejam à altura de tais desafios. Assim, esse tipo de questionamento à forma escolar e seu modo de pensar o conhecimento seja talvez um dos embates mais fortes e pode obrigar a reacomodações mais profundas, que deverão ser produzidas cuidando para não reduzir o conhecimento a «um mercado único de saberes» e defendendo a possibilidade do pensamento crítico e autônomo, de um trabalho com o saber que aponte a ampliar as margens de liberdade dos sujeitos e que não reduza a participação e criação culturais aos novos automatismos das redes sociais.

As mudanças culturais e tecnológicas fundamentam-se em – e ao mesmo tempo expandem – uma mudança nas relações entre gerações, uma mudança política e civilizatória de proporções mencionadas há várias décadas por Margaret Mead, com sua reflexão sobre a geração «pré-figurativa», e por Hannah Arendt, em sua análise da crise da educação como crise da autoridade tradicional13. A partir da segunda metade do século xx, cada vez mais jovens questionam a autoridade adulta, esperam e demandam uma educação relevante para seu presente e que considere seus interesses, ao mesmo tempo em que pedem códigos de convivência consensuados e que deem lugar a suas opiniões e perspectivas. A questão da «voz» e da participação assume um protagonismo antes impensável14. Muitos docentes ensaiam novos métodos que ainda estão tateando na elaboração de novos vínculos pedagógicos e de normas democráticas de convivência, mas falta sistematizar e pensar esses ensaios como parte de políticas didáticas e de formação docente com alcance mais amplo do que o trabalho isolado de indivíduos ou grupos de professores.

Essas considerações também falam da importância de abordar a questão docente, que está atualmente presa entre ser um cargo público, manter-se como um lugar de privilégio sindical e trabalhista em contextos de grande precarização (nos quais os estatutos docentes funcionam como garantia do privilégio) e ser uma profissão ou trabalho vinculado ao conhecimento e com a promoção de uma relação com o saber particular. Poderia ser dito que a docência na América Latina é tudo isso ao mesmo tempo, mas em certos contextos é mais um do que outro. Então, como fortalecer o trabalho com o conhecimento e a responsabilidade política e ética de educar, e ampliar os direitos educacionais sem avançar sobre conquistas trabalhistas? Não está nada claro, e muitas das políticas docentes debatem sobre esse ponto. A discussão sobre a formação docente é fundamental para romper essa situação de estancamento, uma vez que ajuda a recolocar a questão docente como uma questão de relação com o saber, com o trabalho, com condições institucionais que produzem certos vínculos e posições, e como um assunto público que tem a ver com a democratização da cultura e do saber. O segundo grande aspecto que afeta o conjunto da região são as mesmas políticas e estratégias de reforma que foram ensaiadas até agora. As reformas educacionais são um tema «mítico» na literatura educacional já há muitas décadas15. Na América Latina, durante os anos 1980 e 1990, houve tentativas ambiciosas de reformar os sistemas educacionais. Esse desejo de refundação chegou a ocupar todo o espaço das ações do Estado, a tal ponto que ficou difícil pensar a política educacional por fora da estratégia da reforma global e de uma visão centralista e centralizada desses processos. Tal perspectiva costuma pensar o âmbito das escolas como o da implementação e tende a considerar a distância entre os objetivos proclamados pelas reformas e a prática de docentes e estudantes em termos de desvio ou ressignificação dos preceitos governamentais.

Entretanto, como mostram os argumentos anteriormente apresentados sobre os desafios enfrentados hoje pelas políticas de expansão dos direitos educacionais, a educação inclui múltiplas dimensões e dinâmicas que não se resumem a um só plano ou iniciativa. As políticas deveriam tratar na verdade de analisar e potencializar os distintos níveis e registros nos quais se organizam as práticas educacionais, entendendo-as como o espaço de «fórmulas mistas, soluções ecléticas, arranjos imperfeitos ou sensatos»16, e não como a expressão de lógicas únicas e centralizadas. Por essa razão, as políticas deveriam evitar o risco de superdimensionar a ação central e também de romantizar, em outros casos, a ação de criação por parte das escolas e dos docentes. Seria preciso buscar a estruturação de políticas e estratégias educacionais que permitissem retomar essas fórmulas e soluções das práticas, associá-las e potencializá-las com os alcances e as promessas das políticas educacionais mais amplas. Isso implicaria desenhar estas últimas com formas mais plurais, buscando aprender e reformular as estratégias periodicamente, seja através de autoavaliações, monitoramento ou por meio de formas de acompanhamento das políticas próximas a seus desenvolvimentos no terreno das práticas das instituições. Isso, além do mais, abriria um espaço democrático na construção das políticas educacionais que nem sempre está presente hoje.

Finalmente, é importante enfatizar que a escola na América Latina tem desempenhado um papel na vida pública que foi e continua sendo fundamental para pensarmos sobre sua forma e conteúdo, como é possível ver na confiança social demonstrada por sua recente expansão. Essa experiência e tradição da escola pública latino-americana apontam para uma maior prudência ante o avanço dos discursos desescolarizantes e das políticas que buscaram, por distintos motivos e de diferentes maneiras (avaliação, eficientismo), desestruturar seu papel público. A escola foi e é, além de um espaço de transmissão e recriação da cultura, um lugar de integração social, um nó comunitário em muitas sociedades latino-americanas; isso é algo que continua sendo muito importante e muito valorizado. Ao mesmo tempo, e talvez por isso mesmo, os conteúdos desse nó comunitário sempre estiveram mais abertos à experimentação. Simón Rodríguez dizia que era preciso desenhar as palavras com signos que representassem a boca para que os cidadãos pudessem dominar a mais necessária das artes: «a arte de desenhar Repúblicas»17. O professor de Bolívar tinha bem claro que a escrita continha possibilidades de emancipação mas também de exclusão e, por isso, ele propunha mudar o sistema de notação para torná-lo mais próximo à oralidade e, dessa forma, mais inclusivo. Essa tradição encontrou eco em Paulo Freire e em muitos outros pedagogos que criticaram o caráter expulsor e excludente da escola e promoveram novas alternativas que buscaram discutir a hierarquia de saberes que ela promove. Nessa direção, na etapa atual de ampliação dos direitos, será necessário revisar o currículo enciclopédico e fragmentado para promover tempos e espaços de trabalho pedagógico capazes de alcançar outra profundidade e intensidade na relação com o saber; mas ao mesmo tempo, será importante rever as pedagogias e didáticas para que esse currículo não termine reduzido aos interesses imediatos dos adolescentes ou àquilo que determine o mercado das indústrias culturais (termos que tendem a ser cada vez mais idênticos), que são os critérios mais mencionados para tornar significativa a escola. Tais revisões implicam uma importante mudança discursiva sobre o que é e o que faz a escola, que preste mais atenção nas formas pelas quais se processam a inclusão e a ampliação de direitos, e que centre as políticas no esforço de garantir a todos uma experiência educacional de qualidade, isto é, rica e significativa em seus conteúdos e formas. Por tudo isso, o público da escola latino-americana não deveria ser operado somente no âmbito da política partidária ou das formas de gestão, mas também – e talvez acima de tudo – nas aberturas e nos caminhos que ele proponha para outros vínculos com a produção e transmissão de conhecimentos. Este é o campo em que essa tradição de nó organizacional da sociedade, que foi a marca central da escola pública latino-americana, pode se recriar e aprofundar nessas novas condições.

  • 1.

    I. Illich: «The Futility of Schooling in Latin America» em Saturday Review, 20/4/1968, pp. 57-59 e 74-75.

  • 2.

    Dados de 1970 mencionados no trabalho de Juan Pablo Terra: «Alfabetismo y escolarización básica de los jóvenes en América Latina», Documento No 24, Proyecto Desarrollo y Educación en América Latina y el Caribe (dealc), unesco / pnud / cepal, 1981.

  • 3.

    Instituto de Estatística da unesco: Compendio de la educación global 2012, unesco, Montreal, 2012, disponível em www.uis.unesco.org/Education/Documents/ged-2012-en.pdf; Centro de Dados do Instituto de Estatísticas da unesco, www.uis.unesco.org/DataCentre/Pages/region-profile.aspx?regioncode=40520, data da consulta: 30/6/2015.

  • 4.

    Justin McGuirk: Radical Cities: Across Latin America in Search of a New Architecture, Verso, Londres-Nova Iorque, 2014.

  • 5.

    A. Rivas: América Latina después de pisa, cippec, Buenos Aires, 2015, p. 47.

  • 6.

    G. Steiner e Cécile Ladjali: Elogio de la transmisión, Siruela, Madri, 2005, p. 106.

  • 7.

    Ver Zizi Papacharissi: A Private Sphere: Democracy in a Digital Age, Polity Press, Cambridge, 2010.

  • 8.

    J.C. Tedesco: «Prioridad de las políticas educativas» em Elena Duro (coord.): Educación secundaria. Derecho, inclusión y desarrollo. Desafíos para la educación de los adolescentes, unicef, Buenos Aires, 2010, p. 41.

  • 9.

    C. Bracchi: «La educación secundaria y el desafío de la obligatoriedad», apresentação realizada durante as iv Jornadas sobre el Programa Asignación Universal por Hijo, aaps / redaic / amia / unicef, Buenos Aires, 2010, p. 2.

  • 10.

    Perla Zelmanovich: «Las paradojas de la inclusión en la escuela media, a partir de una lectura de la posición de los docentes en el vínculo educativo. Aportes del psicoanálisis a la investigación del malestar en las prácticas socio-educativas», tese de doutorado, Flacso-Argentina, Buenos Aires, 2013.

  • 11.

    ocde: Background oecd Papers: The Schooling Scenarios, International Schooling for Tomorrow Forum, Ontario Ministry of Education, Toronto, 2004.

  • 12.

    Katie Wright e Julie McLeod (eds.): Rethinking Youth Wellbeing: Critical Perspectives, Springer, Nova Iorque-Londres, 2014.

  • 13.

    M. Mead: Culture and Commitment: A Study of the Generation Gap, Natural History Museum / Doubleday, Garden City, 1970; H. Arendt: «La crisis en la educación» em Entre el pasado y el futuro. Ocho ejercicios sobre la reflexión política, Península, Barcelona, 1996.

  • 14.

    Falo de «os jovens» para facilitar a leitura, mas a categoria engloba experiências juvenis muito diversas. Remito aos trabalhos de Rossana Reguillo para analisar o que a autora chama de «condição juvenil», como conceito complexo que está atravessado por múltiplas dimensões. R. Reguillo: Emergencia de culturas juveniles. Estrategias del desencanto, Norma, Bogotá, 2000.

  • 15.

    Thomas Popkewitz, Robert Tabachnick e Greg Wehlage: El mito de la reforma educativa, Pomares, Barcelona, 2007.

  • 16.

    Anne-Marie Chartier: Enseñar a leer y escribir. Una aproximación histórica, Fondo de Cultura Económica, México, df, 2004.

  • 17.

    Citado em Ángel Rama: La crítica de la cultura en América Latina, Biblioteca Ayacucho, Caracas, 1985, p. 15.

Este artículo es copia fiel del publicado en la revista Nueva Sociedad , Novembro 2015, ISSN: 0251-3552


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