Tema central
NUSO Nº Dezembro 2020

Desigualdade e descontentamento social na América Latina

A onda de protestos voltou a colocar em primeiro plano a concentração de renda na América Latina. Embora os indicadores mostrem uma redução da desigualdade relativa, quando se considera o retrocesso no bem-estar produzido com o fim do auge das matérias-primas e as limitações dos indicadores de desigualdade comumente utilizados, a onda de protestos como rebelião diante da desigualdade adquire total sentido. Seria preciso se concentrar na construção de indicadores de desigualdade capazes de captar melhor o descontentamento que ela provoca.

Desigualdade e descontentamento social na América Latina

Introdução

A América Latina é a região mais desigual do mundo (v. gráfico 1). Nos últimos 30 anos, a distribuição da renda no subcontinente apresentou três tendências. Durante os anos 1990 e início da década de 2000, a desigualdade aumentou na maioria dos países sobre os quais há dados comparáveis. Entre 2002 e 2013, a desigualdade se reduziu em praticamente todos os países. No entanto, a partir de 2013 (e até 2017, último ano para o qual há informações), essa tendência de redução apresentou sinais de esgotamento em alguns países onde a desigualdade começou a crescer, enquanto em outros o ritmo de queda foi reduzido; em outro subconjunto de países, contudo, a redução da desigualdade prosseguiu. Se considerarmos todo o período, os níveis de desigualdade mais recentes são menores que os predominantes no início da década de 1990 (v. gráfico 2).



O tema da alta concentração de renda na América Latina voltou a ocupar as manchetes devido à onda de protestos ocorridos no Chile, na Colômbia e no Equador nos últimos meses de 2019. No entanto, há uma aparente incongruência entre as tendências detectadas no comportamento da desigualdade ao longo dos últimos 30 anos e o manifesto descontentamento. De fato, a desigualdade na América Latina caiu neste século em uma escala poucas vezes observada na história (isso fica claro ao analisar os dados disponíveis). Por volta de 2000, o coeficiente de Gini era 0,514, isto é, 12% mais alto que o dado mais recente, de 0,4551


Uma queda dessa magnitude significa que, por exemplo, no Brasil – o país mais desigual da região –, a renda recebida pelos 10% mais ricos da população deixou de ser aproximadamente 60 vezes mais elevada que a dos 10% mais pobres para se tornar menos de 40 vezes mais alta. A desigualdade diminuiu em todos os países da região, inclusive nos três onde os protestos foram intensos. Neste século, o coeficiente de Gini no Chile diminuiu de 0,481 (2006) para 0,465 (2017); na Colômbia, passou de 0,562 (2001) para 0,496 (2017); e no Equador, de 0,532 (2003) para 0,446 (2017)2.

Se a desigualdade passou por uma queda inusitada no período recente, como explicar o descontentamento social e sua virulência? Esta seção sugere algumas explicações. São mencionadas particularmente três: o impacto negativo do fim do auge das matérias-primas sobre as condições de vida; a limitação dos indicadores utilizados (por exemplo, o coeficiente de Gini); e as limitações dos dados utilizados para medir a desigualdade de maneira cabal.

Nos países da América do Sul, o fim do auge das matérias-primas se refletiu em uma queda da taxa de crescimento da renda por habitante; alguns entraram inclusive em franca recessão. O descontentamento se manifestou não apenas por movimentos de protesto; o voto popular nas eleições presidenciais recentes se caracterizou pela penalização dos partidos governistas, independentemente de seu matiz ideológico (em países governados pela esquerda, foram eleitos candidatos mais à direita e vice-versa). Esse foi um voto de protesto diante da perda de poder aquisitivo, do desemprego e da erosão de benefícios governamentais. A isso seria preciso acrescentar que, em vários países, os níveis de desigualdade reverteram a tendência da década anterior e começaram a subir. Foi o que ocorreu no Brasil, por exemplo, e no Paraguai em menor medida. Embora tenha havido uma queda da desigualdade quando são comparados os níveis do início do século com os mais recentes, durante os últimos anos ocorreu em diversos países uma estagnação dessa queda ou até mesmo um aumento da desigualdade. O menor dinamismo econômico, combinado com uma crescente desigualdade, provocou um aumento da incidência da pobreza, justamente quando se reduziu capacidade fiscal para oferecer mecanismos de compensação. De acordo com a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal), aumentou desde 2015 a incidência da pobreza na região, e as previsões do organismo indicam que o número de pobres teria alcançado em 2019 um total de 191 milhões (seis milhões a mais que no ano anterior), dos quais 72 milhões estariam em condições de extrema pobreza. Em comparação com 2014, haveria mais 27 milhões de pobres, dos quais 26 milhões se encontrariam em condições de extrema pobreza3. Combinações desse tipo alimentam o descontentamento, pois a população experimenta uma intensa frustração. O progresso palpável durante a primeira década do século não se sustentou.

Em segundo lugar, é possível que os indicadores utilizados para medir a desigualdade não sejam os mais apropriados para captar a relação entre ela e o descontentamento social. O coeficiente de Gini (e todos os demais indicadores da concentração de renda utilizados convencionalmente) mede as diferenças relativas nos níveis de renda das pessoas e lares, quando talvez o que provoque um aprofundamento do descontentamento social seja o crescimento de lacunas absolutas. Se a renda de todos aumentasse na mesma proporção em um país, seu coeficiente de Gini seria o mesmo antes e depois de tal crescimento. Com relação ao poder aquisitivo, contudo, aquele que partisse de uma renda mais alta se beneficiaria mais desse crescimento uniforme em termos absolutos do que quem tivesse inicialmente uma renda menor.

O que aconteceu com as diferenças de renda em termos absolutos? Tomemos como exemplo o caso do Chile, país que – diante dos protestos iniciados em outubro de 2019 e sua inesperada virulência – se tornou foco especial de atenção. Ainda que, segundo as informações das pesquisas de lares, a renda recebida pela parcela 10% mais rica tenha deixado de ser aproximadamente 33 vezes mais elevada que a da parcela 10% mais pobre em 2000 para se tornar 20 vezes mais alta em 2017, as diferenças em termos absolutos cresceram notavelmente. Durante o mesmo período, a diferença entre a renda recebida pelos 10% mais ricos em comparação com os 10% mais pobres cresceu simplesmente 50% (e 45% quando se compara a diferença na renda dos 10% mais pobres com a do habitante médio)4

Ou seja, ainda que o setor mais pobre tenha melhorado de situação, o grupo mais rico pôde aumentar cada vez mais seu consumo de luxo, ao passo que a população pobre e as classes médias continuaram enfrentando situações difíceis provocadas por um contrato social no qual o Estado oferece serviços e benefícios cada vez mais escassos, especialmente aos grupos vulneráveis e médios. Em seu lúcido artigo sobre o tema, Andras Uthoff descreve como os sistemas de pensões e de saúde no Chile – estabelecidos durante a ditadura militar – falharam de modo contundente em termos da provisão de um seguro, da suavização do consumo ao longo do ciclo de vida e do alívio da pobreza na velhice no caso do sistema de pensões, e também quanto a fornecer um seguro e prevenção de doenças no caso do sistema de saúde. Mesmo depois das reformas introduzidas a partir de 2006 para melhorar o sistema de pensões nas dimensões mencionadas, 70% dos cidadãos consideram que os benefícios estão aquém dos níveis necessários. Na verdade, mais de 40% dos beneficiários chilenos recebem renda inferior à linha da pobreza, e 79% deles abaixo do salário mínimo. As taxas de substituição são extremamente deficientes, já que aproximadamente 50% dos beneficiários recebem uma pensão inferior a 38% do valor médio de seus salários nos últimos dez anos (essa realidade é ainda pior para as mulheres, já que a cifra correspondente é de 24,5%)5. De fato, em uma sugestiva coluna publicada em Voxeu, Sebastián Edwards enfatiza que o Chile está mal posicionado em praticamente todas as dimensões do Índice para uma Vida Melhor proposto pela Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (ocde) e que esses fatores contribuíram para o mal-estar coletivo, mesmo com a redução da desigualdade média em termos relativos6.

Além disso, duas variáveis que incidem consideravelmente no poder aquisitivo não estão incorporadas nas medidas convencionais de desigualdade e pobreza: os impostos indiretos – imposto sobre valor agregado (iva), impostos específicos, entre outros – e os subsídios ao consumo. Os indicadores de desigualdade e pobreza utilizam a renda disponível (ou o que se aproxime mais desse conceito) para medir o bem-estar, conceito que não capta o impacto de aumentos tributários sobre o consumo ou reduções nos subsídios. Não existem séries de indicadores de desigualdade ou pobreza que captem as perdas no consumo real que a população pode ter sofrido no período posterior ao auge das matérias-primas em decorrência da redução de determinados subsídios (ou dos aumentos dos impostos indiretos sobre o consumo). Entretanto, sabemos que os recursos fiscais atribuídos aos subsídios para derivados de combustíveis fósseis diminuíram consideravelmente em El Salvador, Equador, Argentina, Bolívia, Venezuela e, em menor medida, no México, o que causou alta de preços sobretudo em tarifas elétricas, combustíveis e outros produtos energéticos para a população.

A terceira razão que pode explicar a intensidade dos protestos e o voto contra os partidos no poder é que os dados utilizados para medir a desigualdade talvez não sejam suficientes para quantificar os níveis de concentração de renda entre os muito ricos e para avaliar mudanças nas tendências dessa concentração.

As fontes de informação convencionais dos indicadores de desigualdade são as pesquisas de lares. Uma conhecida limitação dessas pesquisas é que, por vários motivos, elas não captam bem a ponta superior da distribuição, ou seja, a renda dos mais ricos. Particularmente, os lares tendem a declarar menos renda do que realmente recebem, sobretudo a procedente de rendimentos do capital. Por isso, tanto o grau de desigualdade como a tendência podem estar mal calculados. Quando as pesquisas são corrigidas e esse viés é superado, os resultados podem ser muito diferentes. A título de exemplo, serão examinados três trabalhos relativamente recentes sobre Brasil, Chile e Uruguai7.

Com os dados corrigidos, o coeficiente de Gini do Brasil não só é muito mais alto que o calculado com os dados da pesquisa, como praticamente já não se observa queda da desigualdade a partir de 2000 (v. gráfico 3). Além disso, o peso da redistribuição em benefício dos setores de baixa renda recaiu sobre a população do oitavo e nono decis (isto é, sobre as classes médias, particularmente a classe média alta), ao passo que o grupo mais rico continuou elevando sua renda8. No caso do Chile, a proporção da renda captada pela parcela dos 1% mais ricos da população com os dados corrigidos por subdeclaração da renda do topo é sistematicamente mais alta e não mostra a tendência de baixa observada com a pesquisa de lares (v. gráfico 4). No caso do Uruguai, a proporção que recebe o grupo dos 1% mais ricos é maior com os dados corrigidos e aumenta ao invés de diminuir, como ocorre com os dados de pesquisas (v. gráfico 5).


A partir desses exercícios, fica claro que, para medir a desigualdade cabalmente, é imprescindível ter acesso a informações fiscais (por exemplo, declarações de impostos anonimizadas) e outras fontes administrativas que permitam calcular melhor a renda, sobretudo da população pertencente aos estratos mais elevados. Enquanto isso não acontecer, teremos uma visão parcial e tendenciosa do grau de desigualdade e de sua evolução ao longo do tempo, o que nos levará a diagnósticos errôneos sobre as causas e consequências da desigualdade, além de recomendações de políticas públicas incompletas e equivocadas.

Como conclusão, quando se considera o retrocesso no bem-estar da população dos países da América do Sul ocorrido com o fim do auge das matérias-primas, as limitações dos sistemas de pensões e de saúde no Chile e a alta dos preços de combustíveis de primeira necessidade em vários países devido à redução dos subsídios governamentais, e quando são considerados indicadores da desigualdade que captam melhor o que ocorreu com as diferenças da renda absoluta entre ricos e pobres, assim como a concentração de renda no topo da distribuição, a onda de protestos como rebelião contra a desigualdade adquire total sentido9.

  • 1.

    Lembremos que o coeficiente de Gini é um dos indicadores de desigualdade mais utilizados e que, quanto mais perto de zero (um), mais igual (desigual) é a distribuição da variável analisada.

  • 2.

    Os dados do Chile anteriores a 2006 foram calculados a partir da metodologia antiga utilizada pelo governo e, portanto, não são comparáveis.

  • 3.

    Cepal: Panorama social de América Latina 2019, Nações Unidas, Santiago, 2019.

  • 4.

    Medida em dólares ppa de 2011, a renda média do primeiro decil e do decil mais rico em 2000 foi de 56 dólares e 1.819 dólares, respectivamente. Em 2017, as cifras análogas foram 140 dólares e 2.754 dólares, respectivamente (cálculos da autora sobre a base do povcal do Banco Mundial).

  • 5.

    A. Uthoff: «Do Competitive Markets of Individual Savings Accounts and Health Insurance Work as Part of the Welfare State?» em José Antonio Ocampo e Joseph Stiglitz (eds.): The Welfare State Revisited, Columbia up, Nova York, 2018.

  • 6.

    S. Edwards: «Chile’s Insurgency and the End of Neoliberalism» em Voxeu.org, 30/11/2019.

  • 7.

    Brasil: Marc Morgan Milá: «Essays on Income Distribution: Methodological, Historical and Institutional Perspectives with Applications to the Case of Brazil (1926-2016)», tese de doutorado, Paris School of Economics (pse) / École des Hautes Études en Sciences Sociales (ehess), 2018; Chile: Ignacio Flores, Claudia Sanhueza, Jorge Atria e Ricardo Mayer: «Top Incomes in Chile: A Historical Perspective on Income Inequality, 1964-2017» em Review of Income and Wealth, 2019; Uruguai: Gabriel Burdín, Mauricio De Rosa, Andrea Vigorito e Joan Vilá: «Was Falling Inequality in All Latin American Countries a Data-Driven Illusion? Income Distribution and Mobility Patterns in Uruguay 2009-2016», dt 30/19, Instituto de Economía, Facultad de Ciencias Económicas y de Administración, Universidad de la República, 2019.

  • 8.

    M. Morgan Milá: op. cit.

  • 9.

    Em certa medida, essa conclusão contraria a proposta por Francisco Ferreira e Martha Schoch: «Inequality and Social Unrest in Latin America: The Tocqueville Paradox Revisited» em World Bank Blog, 24/2/2020.

Este artículo es copia fiel del publicado en la revista Nueva Sociedad , Dezembro 2020, ISSN: 0251-3552


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