Tema central
NUSO Nº 2019 / Dezembro 2019

A democracia e seus descontentes

A democracia e seus descontentes

Para a direita dos Estados Unidos, o surgimento de Donald Trump como o 45o presidente do país foi um momento de renascimento político. Alguns setores do conservadorismo estadunidense fomentaram por muito tempo uma contracultura reacionária que definia a pressão por direitos civis como opressão, resistia à igualdade das mulheres e à transgressão das normas heterossexuais convencionais, criticava a hegemonia da mídia liberal e suspeitava do globalismo e de suas instituições liberais corporativas, inclusive da Organização das Nações Unidas (onu) e da Organização Mundial do Comércio (omc). Já na década de 1950, essa linha política reacionária garantiu um nicho no grupo mais à direita do Partido Republicano e ganhou novo impulso com a campanha de Goldwater e a reação conservadora contra as revoluções sociais dos anos 60. Reintegrada à corrente principal do Partido Republicano por Ronald Reagan, ela aflorou abertamente na hostilidade feroz contra os Clinton durante a década de 1990, mas foi com Trump que finalmente reivindicou o centro da cena política. Para a direita, não é necessário justificar a explosão de «sinceridade» de Trump e seu grupo, o sexismo e a xenofobia explícitos de sua administração e seu forte nacionalismo em questões de comércio e segurança. Sua eleição representa uma reversão por tanto tempo esperada do consenso liberal.

Os democratas centristas também veem essa administração como histórica, mas consideram que ela representa a traição de tudo o que há de melhor nos eua. A vitória eleitoral de um homem como Trump na segunda década do século xxi violou a tão estimada narrativa liberal de progresso que vinha da Guerra Civil ao New Deal, ao movimento por direitos civis e à eleição de Barack Obama. Essa foi uma autoconcepção de país cuidadosamente cultivada pelo liberalismo da Guerra Fria e, como tudo indica, concretizada na era Clinton do poder estadunidense. A eleição de um homem abertamente sexista e xenofóbico como Trump foi um choque tão fundamental que suscitou comparações com as grandes crises da democracia da década de 1930. São traçados prontamente paralelos entre Mitch McConnell e Paul von Hindenburg1. Fala-se de um momento de incêndio do Reichstag, em que um ato de terrorismo pode ser explorado para declarar o estado de emergência. Tais referências do período entreguerras são ao mesmo tempo estimulantes e reconfortantes. Eles nos fazem lembrar de vitórias decisivas de boas batalhas. Não por acaso, o movimento anti-Trump refere a si mesmo como «a resistência», recuperando memórias do heroísmo antifascista de meados do século passado.

Mas embora essa retórica esteja fundamentada na história, o que surpreende é o seu desenvolvimento tão recente. Há apenas alguns anos, o clima no establishment do Partido Democrata não era de resistência desafiadora; prevalecia a complacência futurista branda. A crescente diversidade do país e as claras preferências políticas dos oligarcas digitais da Califórnia garantiriam a manutenção dos democratas no poder. Os apoiadores de Trump eram não só deploráveis2, mas condenados à extinção. Em ambos os lados do Atlântico, coube aos intelectuais de centro aplacar a crítica da esquerda sobre o regime de tecnocratas antidemocráticos e o esvaziamento da democracia.

A renovada esquerda dos eua, mobilizada por Bernie Sanders e atraída para organizações como o Socialistas Democráticos da América (dsa, na sigla em inglês), não tem dúvidas das consequências desastrosas da presidência de Trump. Mas para a esquerda ele não representa uma ruptura histórica, e sim uma continuidade. Como Jed Purdy mencionou na revista Dissent em meados do ano passado, Trump «não é um desvio anômalo, mas um retorno às bases, à norma histórica»3. Trump expõe de modo incisivo o que a civilidade de Obama e sua administração ocultava: a subordinação da democracia estadunidense ao capitalismo, ao patriarcado e à ordem racial injusta herdada da escravidão.

Graças à sua crítica radical e ferrenha, a esquerda estadunidense havia conquistado o desprezo dos centristas. Agora que o centro está em pânico, porém, ela sente que há uma abertura. Uma insurgência no Partido Democrata respaldado pelo dsa parece contar com uma base genuinamente ampla. Entre uma faixa de jovens estadunidenses, falar sobre socialismo perdeu seu estigma. Este não é um momento de crise democrática, mas uma oportunidade não vista há muitas décadas pela esquerda do país.

Por mais diferentes que sejam seus posicionamentos, algo que esses três lados possuem em comum são seus objetivos decididamente nacionais. Trump promete restabelecer a grandeza dos eua. Os democratas centristas estão escandalizados por Trump ter colocado a grandeza do país em questão e prometer reparar os danos que ele próprio causou. A preocupação com a interferência russa é uma convocação nacionalista. Por sua vez, a esquerda busca inspiração em uma narrativa não menos patriótica e nacionalista que a de seus opositores ao centro e à direita. Na revista Dissent, Purdy convoca ativistas a assumirem a tradição nacional que remonta à Reconstrução Radical, à ala esquerda do New Deal e aos direitos civis. Em Tablet, Paul Berman reviveu Para realizar a América de Richard Rorty e sua insistência na tradição continuada do republicanismo radical de Walt Whitman a John Dewey e outros4.O alcance para uma política verdadeiramente internacionalista ou cosmopolita nos eua é limitado. Seria irrealista para qualquer pessoa com consciência política não considerar essa dificuldade. E seria perda de tempo imaginar como o país pode mudar sua velha constituição do século xviii, a mais antiga em vigência no mundo. Contudo, mesmo quando os apelos patrióticos representam a condição sine qua non da política estadunidense, não deixa de surpreender o tom historicista do debate sobre a crise. Em uma época em que mudanças climáticas em ritmo acelerado, a última grande explosão de crescimento populacional na África subsaariana e a ascensão da Ásia (impulsionada pelo capitalismo autoritário da China) estão transformando o mundo, é inevitável que referências à Segunda Guerra Mundial, à Era Dourada, à Guerra Civil e à Independência das 13 Colônias soem anacrônicas.

É certo que a ideia de uma política não nacionalista pareça pouco realista, mas devemos nos perguntar se a adoção incondicional da narrativa patriótica, como proposta por Berman e outros, não seria contraproducente para «a resistência». Tim Shenk, coeditor de Dissent, sugeriu de maneira sensata que os progressistas estadunidenses devem passar a enfrentar os problemas sociais, econômicos e políticos fundamentais do país não como o fardo de uma nação excepcional, mas simplesmente por uma questão de justiça e pragmatismo, como o faria qualquer outra democracia5. Considerando o clima atual, especialmente entre os ativistas mais jovens, é possível concluir que o significado histórico da crise Trump seja imunizar toda uma geração contra qualquer forma de excepcionalismo de enaltecimento estadunidense. No entanto, como o próprio Trump faz questão de salientar, sua vitória pode ser interpretada como o prenúncio de uma onda mais ampla de populismo nacionalista em todo o mundo.

Em O povo contra a democracia: por que nossa liberdade corre perigo e como salvá-la6, Yascha Mounk, ex-diretor executivo do Tony Blair Institute for Global Change, aborda a ampla repulsa que apoiadores de uma democracia iliberal agressiva ao estilo de Viktor Orbán ou Donald Trump expressam contra o liberalismo tecnocrata das elites, exemplificado pelos políticos e líderes corporativos que se reúnem anualmente em Davos. Com boa dose de razão, os «coletes amarelos» na França e muitos dos que votaram pelo Brexit no Reino Unido imaginam que a classe governante os menospreza. Sua reação é uma reafirmação truculenta da soberania popular. Embora o voto dos jovens siga migrando para a esquerda, isso não ocorre de maneira uniforme. Mounk aponta para uma alarmante ascensão de atitudes autoritárias, inclusive entre os europeus e estadunidenses mais jovens. Os homens fortes e os líderes militares geram cada vez mais apoio entre as pessoas na faixa dos 20 anos. Longe de serem uma exceção democrática, os eua se encaixam perfeitamente nesse modelo, com níveis elevados de apoio a um governo autoritário.

Essas constatações são impressionantes e originais, mas a análise de Mounk não é tanto. Ele aponta três forças para explicar a transição rumo ao pensamento autoritário: a queda do controle das elites sobre a mídia política com o crescimento da internet, o fracasso do crescimento econômico em distribuir a riqueza e a ansiedade dos brancos sobre a crescente diversidade. Trata-se de uma lista bastante conhecida, e ele sugere uma lista igualmente conhecida de soluções: maior responsabilidade dos meios de comunicação na disseminação do ódio, mais atenção à desigualdade econômica e um esforço permanente para assegurar que «pessoas e países possam sentir novamente que têm o controle sobre suas vidas e destinos». Tudo muito bonito. Mas se a tecnocracia liberal antidemocrática é o grande fator de revolta popular, como uma lista tecnocrata de soluções oferecida por um think tank tecnocrata poderia ser considerada uma resposta convincente? Como é possível que não pareça duvidosa a ideia de empreender esforços para que as pessoas se «sintam» novamente no comando – em lugar de um programa de políticas que de fato as empodere?

Entre os livros que comparam as crises em diferentes países, o que mais convida à reflexão é o escrito pelos cientistas políticos Steven Levitsky e Daniel Ziblatt. Como as democracias morrem7 situa os eua dentro de uma investigação mais ampla sobre como autocratas eleitos subvertem e enfraquecem o sistema. As democracias são frágeis porque dependem que grupos concorrentes aceitem normas comuns. As normas são essenciais, pois sem elas «os freios e contrapesos constitucionais não atuam como os baluartes da democracia que imaginamos que sejam». Uma vez colocados em uma posição de poder e liberados pela erosão das normas democráticas, os autoritários eleitos buscarão influenciar os árbitros do sistema, forçando juízes a se aposentarem, sufocando a imprensa e inclinando o tabuleiro do jogo permanentemente contra seus oponentes. Não resta a menor dúvida de que o sistema político dos eua se encontra hoje ameaçado em três frentes. E para aqueles que se encontram submersos no debate ensimesmado do país, Levitsky e Ziblatt têm uma mensagem lúcida: «A democracia estadunidense não é tão excepcional como às vezes pensamos. Não há nada em nossa Constituição ou cultura que nos deixe imune a rupturas democráticas».

Sendo assim, o que pode parar o movimento rumo ao iliberalismo? A restauração das normas democráticas requer a construção de um novo consenso. Levitsky e Ziblatt citam o exemplo do Chile, onde o violento confronto entre a esquerda e a direita no início da década de 1970 que resultou no sangrento golpe de Augusto Pinochet foi superado por uma nova cultura de cooperação bipartidária na chamada Concertação Democrática. Nos eua de hoje, o problema está acima de tudo no Partido Republicano, o qual tem se comportado reiteradamente como um partido antissistêmico que não se considera vinculado às normas democráticas comuns. Levitsky e Ziblatt concluem afirmando que «para reduzir a polarização é preciso que o Partido Republicano seja reformado, quando não refundado». Não há outra forma de superar o vício ao que seu ex-senador Jeff Flake chamou de «overdose de populismo, nativismo e demagogia».

Mas como isso pode ser feito? Levitsky e Ziblatt apontam para a reforma da alemã União Democrata-Cristã (cdu, na sigla em alemão), de centro-direita, após 1945. A consolidação da cdu de Konrad Adenauer em torno das normas democráticas contribuiu de modo inquestionável e crucial para o sucesso da democracia na Alemanha do pós-guerra. Mas qual a importância disso para a política estadunidense? Poderíamos realmente imaginar alguém do Partido Republicano aprendendo lições com Angela Merkel e seus correligionários?

Apesar de toda sua habilidade como analistas da política em procedimento e forma, Levitsky e Ziblatt são incrivelmente ingênuos no que diz respeito ao poder. A derrocada da democracia chilena em 1973 não foi meramente uma deterioração para o partidarismo extremo, mas um enfrentamento violento relacionado com reformas sociais e econômicas fundamentais empreendidas durante a Guerra Fria. Os aparatos de segurança e política externa dos eua estiveram entre as forças que possibilitaram a destruição da democracia no Chile. De modo semelhante, como admitem Levitsky e Ziblatt, foi preciso que ocorresse a derrota absoluta do regime de Hitler em 1945 para se estabelecerem as condições para a reconstrução do conservadorismo alemão. E também lá, a Guerra Fria influenciou o rumo dos eventos, já que fez o Westbindung (integração ao Ocidente) de Adenauer parecer infinitamente mais desejável que a alternativa soviética.

Para o Partido Republicano se transformar, os eua precisarão viver uma catástrofe semelhante à da Alemanha na Segunda Guerra Mundial? Levitsky e Ziblatt propõem a pergunta, mas nunca exploram plenamente suas implicações. Sua limitada abordagem comparativa caso a caso e seu foco em instituições e culturas políticas nacionais deixam de lado tais questões de política internacional e não oferecem nenhuma base sobre a qual considerar a conexão entre a geopolítica da Guerra Fria e do pós-Guerra Fria, e a trajetória da democracia moderna.

Um autor que aborda a crise das democracias ocidentais como um processo internacional interligado é Timothy Snyder, que construiu sua reputação como estudioso da história do Leste Europeu. A crise da Ucrânia de 2014 transformou seu envolvimento com a história da região em um veículo para pensar a cena política transatlântica contemporânea. Narrativas históricas não refletem nem descrevem meramente realidades; elas ajudam a moldá-las. A ideia de organização central do mais recente livro de Snyder, Na contramão da liberdade: A guinada autoritária nas democracias contemporâneas8, é que a democracia está ameaçada por dois tipos de visão de mundo deterministas, que ele chama de «inevitabilidade» e «eternidade». O primeiro tipo é o determinismo do «fim da história» e da teoria da modernização, que declara que «não há alternativa» à democracia liberal. De modo geral, essa é a visão de mundo das elites liberais do Ocidente, os liberais tecnocratas de Mounk. As decepções e a resistência geradas por seus programas de modernização impostos de cima para baixo fazem surgir, na visão de Snyder, não uma autêntica reação popular, mas um segundo tipo de construção de mito elitista na forma da «política da eternidade», ou nacionalismo mítico. Enquanto os modernizadores prometem um futuro melhor para todos desde que sigamos o melhor caminho, o nacionalismo mítico «coloca uma única nação no centro de uma narrativa cíclica de vitimização». Com um mundo de ameaças como obscuro pano de fundo, as elites dirigentes prometem não o progresso, mas a proteção.

Segundo Snyder, nossa situação atual tem sido moldada pela oscilação frenética entre o determinismo da teoria da modernização e o determinismo do nacionalismo. Ambos impedem qualquer debate real e alternativa prática, e ambos são hostis à verdadeira democracia. Um autoriza a tecnocracia dominadora, e o outro, formas mais cruas de autoritarismo. A verdadeira história, que na definição de Snyder é uma questão de contingência e escolha individual, é o melhor antídoto intelectual contra essas perigosas visões de mundo.

Em um nível mais geral, há muito com que concordar na abordagem de Snyder. A história é de fato uma preocupação urgente da política e, particularmente, da política democrática. O determinismo, seja ele de cunho social-científico ou mítico, deve ser visto com ceticismo. Também é possível concordar com Snyder quando defende que precisamos buscar compreender Rússia, Ucrânia, União Europeia e eua como partes de «uma história única». Mas a questão é como armar essa «uma história única», e a dificuldade para fazer isso é aplicar a nós mesmos os mesmos padrões que aplicamos em nossa crítica aos demais. Se a vitalidade da democracia é o problema, até que ponto o tipo de história de Snyder promove a vitalidade democrática? E será que ela sucumbe à sua própria construção de mito?

Na contramão da liberdade é inegavelmente envolvente. Escrito no estilo epigramático de Snyder, a obra nos leva por um percurso vertiginoso entre o passado e o presente da Europa. É uma história em que há perpetradores e vítimas. O ponto de partida de Snyder é Ivan Ilyin (1883-1954), um nacionalista itinerante e pensador por vezes fascista que adquiriu um novo destaque na Rússia pós-soviética. Vladislav Surkov, um conselheiro político próximo a Vladimir Putin, citava Ilyin positivamente para justificar sua elaboração de uma «democracia soberana» que prioriza «centralização, personificação e idealização» em detrimento da liberdade individual. Para Snyder, essas são as verdadeiras inspirações para a política agressiva de Putin, sendo Ilyin e Surkov os mentores por trás da reação global contra as visões liberais complacentes de modernização.

No entanto, a construção de uma rede de influência como essa é um campo fértil para sua própria elaboração de mitos. Entre especialistas em política russa, não há consenso de que os ideólogos em torno dos quais Snyder constrói sua tese tenham realmente a importância que ele lhes atribui9. Onde se originou o choque entre Putin e o Ocidente? Foi promovido por uma obscura guinada nacionalista a partir do Kremlin ou por conflitos geopolíticos mais amplos e óbvios?

Para explicar a escalada da agressão russa, Snyder se refere muitas vezes à presença de Putin em uma conferência da Organização do Tratado do Atlântico Norte (otan), realizada em abril de 2008 na cidade de Bucareste. Mas ele nunca menciona o tema daquele áspero encontro: estava em disputa a proposta, patrocinada pela administração Bush, de acelerar a associação da Ucrânia e da Geórgia à otan. Isso provocou uma reação hostil não só por parte da Rússia, mas também da Alemanha e da França, que não tinham nenhum interesse em ver a Ucrânia entrando em seu exclusivo clube europeu e não desejavam aumentar as tensões com Moscou. O que estava em jogo não era a construção do mito neofascista em Moscou, mas a geopolítica pós-Guerra Fria. Para realmente compreendermos o posicionamento russo, devemos recorrer ao discurso de Putin proferido em 2007 durante a Conferência de Segurança de Munique, que, longe de ser uma declaração etnonacionalista, representou uma denúncia claramente articulada do unilateralismo estadunidense. Snyder não inclui isso em sua análise.

Ainda mais eloquente é a forma como Snyder aborda a crise da Ucrânia e seus efeitos nos eua. É possível realmente entender o conflito de 2013 na Ucrânia referindo-se unicamente às maquinações do regime de Putin, sem considerar a atrapalhada diplomacia estadunidense e o contexto econômico e geopolítico mais amplo? Como Snyder insistiu em uma obra anterior, Terras de sangue (2010)10, a história da Ucrânia foi moldada pelo choque dos projetos imperiais czarista, alemão e soviético. O surpreendente é que, em Na contramão da liberdade, ele não aborde a história recente da mesma forma, como o resultado de uma luta multilateral pelo poder.

Seria insensato sugerir que a otan e a ue estão envolvidas em um projeto expansionista semelhante ao da Alemanha nazista. Mas não seria menos insensato insistir que a rivalidade geopolítica não teve nenhum papel na crise deflagrada em Kiev em novembro de 2013, quando fracassaram as negociações sobre a possível associação da Ucrânia à ue, abrindo com isso espaço para a intervenção de Putin. A Polônia, os países bálticos e escandinavos haviam apoiado a associação ucraniana; ao promoverem os acordos da Associação Oriental com seis Estados pós-soviéticos a partir de 2008, eles estavam utilizando a ue como parte de uma estratégia de contenção em que a «ocidentalização» não era um fim em si mesmo, mas também um meio para se fortalecerem perante a Rússia. Moscou compreendeu perfeitamente o que estava em jogo.

Para Snyder, a influência maligna da guinada antidemocrática da Rússia vai além da Europa Oriental. Nos capítulos finais, ele reproduz reportagens da mídia sobre a interferência de Putin nas eleições dos eua e da França em 2016 e 2017. Mas, para compreender isso, é preciso considerar os fatores geopolíticos ignorados por Snyder. A hostilidade a Hillary Clinton não era o resultado da misoginia entre os ideólogos do Kremlin, como sugere o autor. As visões de Clinton sobre as relações dos eua com a Rússia remontam ao triunfalismo unipolar da década de 1990 e encontraram sua clara expressão durante o período em que ela chefiou o Departamento de Estado. Clinton pode não ter fomentado os protestos na Rússia em dezembro de 2011 como acredita Putin, mas ela não disfarçou seu apoio à oposição. Com a crise da Ucrânia ainda em andamento, Moscou poderia não ter interesse na vitória eleitoral de Clinton, especialmente tendo Trump como alternativa.

Em lugar de analisar esse contexto geopolítico das eleições de 2016, Snyder repete a conhecida cantilena das supostas conexões comerciais de Trump com a Rússia. Frustrantes, os resultados da investigação de Robert Mueller são inconclusivos, e é precisamente essa grande incerteza que devemos assumir em nosso momento histórico. Ainda tentamos decifrar se a crise estadunidense é mais bem compreendida como resultado dos negócios endogâmicos de uma elite cleptocrática, da sociologia política do cinturão industrial do nordeste, da complacência apresentada pelos chefes de campanha de Clinton ou da persistência das divisões raciais do país. É improvável que a interferência externa tenha afetado de modo decisivo as eleições, mas até isso deve ser considerado. É esse caráter indecifrável que define nossa situação. O tom de certeza profética de Snyder e sua enfática convocação à resistência contra as forças obscuras e onipresentes do neofascismo russo revelam mais um sintoma dos tempos que uma obra historiográfica.Por outro lado, a grande virtude de Como a democracia chega ao fim11, de David Runciman, é tomar nossa desorientação como seu ponto de partida. Em lugar de oferecer uma narrativa definitiva ou prescrições políticas específicas, Runciman (professor de Ciência Política em Cambridge) analisa diversas formas de compreender nosso presente. O resultado é uma série de diagnósticos úteis e esclarecedores, concordemos ou não com suas conclusões.

Runciman argumenta que é preciso romper com o retorno compulsivo ao período entreguerras. A presidência de Trump seria realmente um passo rumo ao fascismo? Essa possibilidade não pode ser descartada. Episódios como as manifestações de Charlottesville revelam a profundidade e a amplitude das subcorrentes de direita, mas elas não são os enfurecidos esquadrões fascistas dos anos 20 e 30. Se o crescimento de um movimento de massa fascista parece improvável, e quanto aos golpes ocorridos na América Latina e no sul da Europa nas décadas de 1960 e 1970? Runciman descarta a ideia. Assim como a memória do recrutamento militar obrigatório, da mobilização de massas e da guerra total, desaparecem também as paixões políticas verdadeiramente violentas do século xx. Runciman sugere que tanto a ameaça do fascismo como os slogans de mobilização do antifascismo são vazios. As manifestações de massa, até mesmo do tipo orquestrado por Recep Tayyip Erdoğan na Turquia ou pelo partido Lei e Justiça na Polônia, parecem mais uma imitação que um fenômeno autêntico.

Em certa medida, isso é tranquilizador. É improvável que a democracia morra com um estrondo, mas é maior a possibilidade de que ela chegue ao fim com um gemido. Não parece existir o nível de solidariedade nacional que seria necessário para enfrentar o desafio da crescente desigualdade elevando a tributação sobre a renda e a riqueza, ou empreendendo uma ampla reforma de bem-estar semelhante àquelas que representaram as conquistas de meados do século passado e que foram em grande medida impulsionadas pelos enormes esforços de mobilização das duas grandes guerras.

Runciman sustenta que, ao deixarmos para trás as tristes recordações dos anos 30, podemos ampliar nossa imaginação histórica para incluir um conjunto mais amplo de ameaças. A democracia não oferece uma resposta clara perante a operação irracional do poder burocrático e tecnológico. De fato, podemos testemunhar sua ampliação na forma de inteligência artificial e robótica. Da mesma forma, após décadas de severas advertências, o problema ambiental segue fundamentalmente sem solução à vista. Nada disso representa uma surpresa para Runciman, que cita o conceito de banalidade do mal de Hannah Arendt e a Primavera silenciosa de Rachel Carson para mostrar que já tínhamos conhecimento desses problemas há muitas décadas.

O excesso de poder burocrático e a catástrofe ambiental são precisamente os tipos de desafios existenciais de lento desenvolvimento com os quais as democracias têm muita dificuldade para lidar. E como o Ocidente não consegue enfrentá-los, devemos esperar apelos ainda mais intensos a respostas autoritárias enérgicas. É sintomático de nossa época que o autoritarismo meritocrático encontre defensores não entre o tipo de ideólogos virulentos presentes no livro de Snyder, mas entre inócuos professores de Ciência Política. Por exemplo, no livro Contra a democracia (2016)12, Jason Brennan reviveu o argumento do século xix de um governo de pessoas qualificadas, o que ele chama de «epistocracia». Nesse sentido, vivemos sob a sombra não de Moscou, mas de Pequim. Mas Runciman aponta que, embora a meritocracia autoritária possa prometer a formulação mais decidida de políticas, ela também aumenta a probabilidade de erros catastróficos.

Finalmente, há uma ameaça à espreita: as empresas e as tecnologias que elas promovem. Runciman nos lembra que as empresas são tão antigas quanto o Estado moderno e possivelmente sobreviverão a ele. As redes do Facebook e de empresas semelhantes são mais extensas que qualquer organização estatal hierárquica. Runciman considera Mark Zuckerberg uma ameaça à democracia dos eua muito mais grave que Trump. Mas que tipo de ameaça Zuckerberg representa? Talvez os oligarcas do século xxi se orientem simplesmente à obtenção de lucros e não tolerem os freios e contrapesos do Estado de direito, mas, ao menos nos eua, eles tentam parecer amenos, dedicados a declarar platitudes de responsabilidade social corporativa e são suscetíveis à pressão política.

Sobre cada tema abordado por Runciman, suas conclusões são «deflacionárias», o que é reconfortante. É tentador afirmar que seu livro oferece o antídoto perfeito tanto para o superaquecido debate nacional estadunidense quanto para a convicção apresentada pela obscura narrativa de Snyder. De qualquer forma, isso não deve ofuscar a profecia silenciosa do próprio relato de Runciman. Ela pode ser identificada em suas reiteradas menções bem-humoradas e aparentemente inocentes de que os anos 30 são tiques psicológicos de uma crise de meia-idade no aspecto político. A premissa para sua visão sobre nossa situação atual é que a democracia é uma forma política com um ciclo de vida: um início e um fim. Ainda não atingimos seu momento final, razão pela qual falar de uma crise terminal imediata seria um exagero. No entanto, devemos reconhecer que estamos no final da meia-idade.

Esse argumento marca uma mudança notável da história rumo à metafísica organicista, e isso é feito com ironia. A sugestão de Runciman de que constituições políticas têm um ciclo de vida natural remete a Oswald Spengler, autor de O declínio do Ocidente, além de político exemplar e escritor cultural da República de Weimar. Como Runciman, Spengler empregou uma filosofia natural para organizar a história mundial em uma série de trajetórias semibiológicas. E viu o Ocidente em uma situação próxima ao final de um ciclo natural de ossificação civilizacional. Para Runciman, esse processo se encontra em estágio mais avançado em regimes como o da Grécia e do Japão que, apesar de não estarem mortos, encontram-se presos em um estado pós-histórico, paralisados por restrições fiscais e declínio demográfico.

Nesse ponto, a grande visão de Runciman converge com a de Alexandre Kojève, outro profeta do fim da história e a inspiração do hoje famoso ensaio escrito por Francis Fukuyama em 1989. Para além das metáforas biológicas, o que esses autores têm em comum é sua postura intelectual e política. Em lugar de se enfurecer contra a noite que se aproxima, Runciman – como Spengler e Kojève – nos convida a adotar uma postura de realismo desiludido. Nossa capacidade de perceber o declínio de regimes democráticos à nossa volta e diagnosticar as diversas causas de seu eventual desaparecimento não nos isenta da responsabilidade de mantê-los em funcionamento até o triste fim. Essa é a forma de Runciman dizer que «não há alternativa» à democracia liberal.

A democracia tem sido o ponto de referência da ocidentalização há muito tempo. Falar de crise na democracia é relevante precisamente porque a ascensão da economia chinesa sob a liderança do Partido Comunista coloca em questão esse ponto de referência. Runciman é estoico. Ele encerra seu livro com uma projeção imaginativa do futuro: na segunda-feira, 20 de janeiro de 2053, assume o presidente Li como sucessor do controverso presidente ChanZuckerberg. Devido às mudanças climáticas, Washington possui agora um clima ameno em janeiro. Os democratas e republicanos ainda atuam, mas o sistema partidário está em desordem, como tem estado há décadas. O Congresso está paralisado. O dólar perdeu seu valor. Os laços de Li com a China são um segredo aberto, mas os estadunidenses estão longe de se preocupar com isso. De qualquer forma, ele já não controla os códigos de detonação nuclear. Mas a bandeira ainda tremula, e o discurso inaugural é previsível: «Ele lembrou seu público que os eua da América ainda eram, acima de tudo, uma democracia. Que o país sempre seria uma democracia». Quando Li deixa o púlpito, ouve-se um de seus antecessores dizer: «Ele protesta demais».

Como foi concebida essa fantasia? Possivelmente, mais como um exercício mental de provocação que uma previsão determinista. E ela consegue propor a questão mais premente da atualidade. Considerando a continuidade das tendências atuais, os eua aceitarão seu relativo declínio com tranquilidade? Certamente, a preocupação é que a visão de um país passivo apresentada por Runciman é, na verdade, exageradamente otimista. Em um perspicaz artigo de opinião, Larry Summers perguntou recentemente: «Os eua podem imaginar um sistema global em 2050 em que sua economia tenha a metade do tamanho da maior economia do mundo? Ainda que possamos imaginar isso, poderia um líder político reconhecer essa realidade de tal modo que possibilite negociar como seria esse mundo?»13.

Trump respondeu a essa pergunta com sua característica beligerância e petulância: lançando uma irreflexiva guerra comercial. Mas, ao menos nessa política, ele não está sozinho. Se há algum consenso por todo o espectro político estadunidense, é sobre a necessidade de um posicionamento mais firme contra a China. Em vez da aceitação estoica de uma nova realidade sugerida pelo cenário de Runciman, o resultado mais provável não seria uma reconfiguração da democracia estadunidense como a ocorrida nas décadas de 1930 e 1940, quando o Executivo adquiriu um poder sem precedentes para confrontar inimigos externos? Os riscos de um confronto com a Alemanha nazista e a União Soviética eram enormes. Comparados com eles, nossos problemas com a Rússia de Putin são triviais. Não se pode dizer o mesmo dos perigos que serão apresentados por uma nova Guerra Fria com a China.


Nota: a versão original deste artigo foi publicada em inglês em The New York Review of Books, 6/6/2019, com o título «Democracy and Its Discontents». Tradução de Luiz Barucke.

  • 1.

    Zack Beauchamp escreveu que «eleito presidente da Alemanha em 1925, von Hindenburg foi dotado pela Constituição de Weimar de vários poderes de emergência para defender a democracia alemã caso ela estivesse em grave risco. Em lugar de defendê-la, Hindenburg cavou sua sepultura, empregando esses poderes primeiramente para destruir as normas democráticas e, depois, para se aliar aos nazistas e substituir o governo parlamentar por um governo autoritário». No caso de McConnell, sustenta-se que, a partir do Senado, essa referência republicana «aumentou a hiperpolarização da política estadunidense para tornar o governo Obama disfuncional e mantê-lo paralisado o máximo possível. Da mesma forma que o estancamento parlamentar em Weimar, o estancamento do Congresso dos eua diminuiu o respeito pelas normas democráticas». «A Leading Holocaust Historian Just Seriously Compared the US to Nazi Germany» em Vox, 5/10/2018 [n. do e.].

  • 2.

    Na campanha de 2016, a candidata democrata se referiu aos eleitores de Trump como «um bando de deploráveis» («basket of deplorables»).

  • 3.

    Jedediah Britton-Purdy: «Normcore» em Dissent, verão de 2018.

  • 4.

    P. Berman: «The Philosophers and the American Left» em Tablet, 25/11/2018.

  • 5.

    T. Shenk: «Hannah Arendt’s Answer to Paul Berman on the Contemporary American Left» em Tablet, 6/12/2018.

  • 6.

    Companhia das Letras, São Paulo, 2019.

  • 7.

    Zahar, Rio de Janeiro, 2018.

  • 8.

    Companhia das Letras, São Paulo, 2019.

  • 9.

    Ver Sophie Pinkham: «Zombie History, Timothy Snyder’s Bleak Vision of the Past and Present» em The Nation, 3/5/2018.

  • 10.

    Record, Rio de Janeiro, 2012.

  • 11.

    Todavia, São Paulo, 2018.

  • 12.

    Gradiva, Lisboa, 2017.

  • 13.

    L. Summers: «Washington May Bluster but Cannot Stifle the Chinese Economy» em Financial Times, 3/12/2018.

Este artículo es copia fiel del publicado en la revista Nueva Sociedad 2019, Dezembro 2019, ISSN: 0251-3552


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