Tema central
NUSO Nº Julho 2018

Crise de legitimidade nas democracias e religiões Reflexões a partir da visita do papa Francisco ao Chile

Crise de legitimidade nas democracias e religiões  Reflexões a partir da visita do papa Francisco ao Chile

Nota: tradução do espanhol de Luiz Barucke.

A recente visita do papa Francisco ao Chile colocou em evidência perante a opinião pública mundial a imagem desgastada da Igreja local. Um estudo realizado pela organização Latinobarómetro, divulgado às vésperas de sua viagem, mostra que a confiança da população chilena nessa instituição vem caindo de maneira muito mais acentuada e rápida do que em qualquer outro dos 17 países latino-americanos envolvidos na pesquisa1. A partir do escândalo eclodido em 2010 por abusos sexuais protagonizados pelo sacerdote Fernando Karadima, o catolicismo local sofreu uma enorme perda de fiéis, parcialmente recuperada após a chegada de Francisco ao papado em 2013, mas novamente aprofundada nos anos recentes.

Os pedidos de perdão feitos pelo papa durante sua visita não deram muito resultado. Até mesmo a esposa de um ex-presidente democrata-cristão o acusou de hipócrita2. Acontece que entre aqueles que escutaram suas desculpas estava presente Juan Barros, promovido por Francisco ao cargo de bispo de Osorno e acusado de manter laços estreitos com Karadima e de encobri-lo. Utilizando um vocabulário pouco comum, o papa desprezou os apelos dos fiéis contra essa nomeação. «Osorno sofre por ser ingênua»3, disse o papa em 2015 a alguns peregrinos no Vaticano, conforme documentado em um vídeo4, acrescentando que seus habitantes «se deixavam influenciar por alguns zurdos5». Expressão peculiar da Argentina, ela pode adquirir distintas ressonâncias: desde irônicas e inofensivas até outras de grande agressividade contra a esquerda. Esse último sentido era utilizado pelo peronismo de direita nos conturbados anos setenta do século passado. Afirma-se que Francisco foi ligado a uma agrupação dessa linha, denominada «Guarda de Ferro» (aparentemente, seus integrantes adotaram esse nome sem pretender se vincular à sua homônima fascista da Romênia).

A imagem do papa no Chile é hoje a menos popular da região. Tanto ele como a hierarquia católica chilena – e particularmente o atual bispo de Osorno – são vistos como encobridores de Karadima em um país com cerca de 80 casos de abuso denunciados nos últimos anos. Os jornalistas que cobriram a visita pontifícia afirmam que a recepção da população foi fria em um nível sem precedentes nos países católicos (e inclusive não católicos) visitados pelo papa. A viagem de Francisco foi, sem dúvidas, a mais difícil de seu papado. Esteve rodeada de protestos e agressões contra templos, que foram atribuídas a grupos anarquistas no contexto do antigo conflito do Estado com os povos originários, especialmente mapuche; embora o propósito da presença do papa fosse construir pontes, ela ajudou a ativar esse conflito.

Em seu voo de retorno a Roma, Francisco deu sinais de ter recebido a mensagem enviada pelos chilenos. Em declarações a bordo do avião, ele reconheceu que as vítimas nem sempre podem apresentar «provas» como as que ele exigia antes de tomar providências contra o bispo Barros, que considerava alvo de calúnias. Ele se mostrou arrependido pelas feridas que sua rigidez poderia ter causado e, um mês depois, determinou que Charles J. Scicluna, bispo de Malta, integrante da Congregação para a Doutrina da Fé e um dos maiores especialistas vaticanos em proteção da infância e casos de abusos sexuais, se encaminhasse ao Chile como notário eclesiástico para escutar testemunhos.

As queixas populares contra suas políticas expostas no Chile colocaram Francisco em uma situação insólita. Até então, ele só costumava receber críticas dos setores mais conservadores da Igreja e de fora dela por sua mensagem inovadora sobre, por exemplo, a atitude que deveria ser adotada diante de divorciados com novos relacionamentos. Reprovava-se a permissividade ou ambiguidade em sua mensagem pontifícia, e ele era acusado até mesmo de propagar perigosos erros doutrinários a partir da cátedra de Pedro. Os conservadores, especialmente estadunidenses, veem nele sérias ameaças ao dogma e à unidade da Igreja. De maneira paradoxal, eles reprovam pela primeira vez abertamente uma mensagem do vigário de Cristo na Terra quando, como defensores da ordem natural, deveriam ser os últimos a se lançarem contra a autoridade estabelecida pela Igreja. Em contraste com esses ataques vindos dos Estados Unidos por seu «liberalismo»6, a oposição encontrada por Francisco no Chile teve uma dimensão bem diferente. Ele foi acusado, sobretudo, de acobertamento corporativo, e isso afetou a indiscutível popularidade que ainda tem em diversas regiões do mundo.

Pobreza e política

Em outros países latino-americanos, muitos dos pobres que abandonam o catolicismo se envolvem em diferentes variações evangélicas de crescente atuação política, como demonstrou a última disputa presidencial na Costa Rica (que teve no primeiro turno, entretanto, um número de abstenções superior aos votos obtidos por cada um dos principais candidatos)7. Mas ocorre algo peculiar no Chile, onde muitos abandonam todas as religiões e se declaram ateus ou agnósticos. Essa categoria, a mais elevada da América Latina, já representa 38% de toda a população (diante dos 45% que se dizem católicos), e os pobres contribuem para a maior parte desse percentual (43%). Antes do caso Karadima, aqueles que não se reconheciam em nenhuma religião representavam 18%, sempre segundo a Latinobarómetro. Agora, o Chile está logo após o Uruguai, um Estado de longa tradição laica, entre os países menos seguidores de alguma fé.

A revista The Economist atribuiu essa queda às denúncias de abuso, mas também ao fato de o Chile ser o país mais próspero da região e seus distintos estratos sociais – particularmente os ricos – serem agora mais instruídos8. A tradicional revista britânica parece ecoar as velhas ideias do Iluminismo, segundo as quais quanto maior a pobreza material e cultural, maior será também a adesão às superstições. Embora a mesma publicação não mencione, os eua seriam a exceção a esse ponto de vista, já que lá os presidentes competem em referências a Deus desde seu discurso inaugural, caso único entre os países desenvolvidos. Até mesmo Donald Trump cultiva sua relação com os evangélicos, e estes se mostram muito entusiasmados. Como assinalou uma nota do The New York Times, apesar de suas visíveis «imperfeições» pessoais, esse público descobre no atual presidente uma sensibilidade espiritual oculta e, ao mesmo tempo, o reconhece como um firme defensor de seus valores conservadores na guerra cultural que empreendem contra a correção política dos liberais e os direitos reivindicados pelos progressistas9.

Se voltarmos ao caso chileno e ampliarmos a perspectiva, poderíamos relacionar a perda da fé na religião com a desconfiança da população em relação à vida institucional. As últimas eleições presidenciais oferecem alguns dados interessantes. No segundo turno, que consagrou Sebastián Piñera como presidente eleito, houve mais abstenções que votos válidos. De acordo com um artigo jornalístico, somente 47% do eleitorado foi às urnas no primeiro turno, e 36% nas eleições municipais de 201610.

Antes obrigatório, o voto passou a ser voluntário no país a partir de 2012. A abstenção não parou de crescer desde então, e os pobres são os que menos votam. Esse não é um fenômeno exclusivo do Chile, mas notado em muitas democracias, inclusive avançadas, pois a população menos privilegiada já não espera da vida pública nada além de que promessas não cumpridas e piora do seu nível de vida. Quando apela para as urnas, como aconteceu parcialmente nas recentes eleições da Itália, seu voto de protesto desorganiza a paisagem institucional, embora evidencie ao mesmo tempo uma grande desorientação ideológica. O voto dos jovens – os mais afetados pelo desemprego, sobretudo no sul da península – alterou as já instáveis maiorias políticas, ainda que não tenha sido capaz de compensar a tendência geral à abstenção. Interpretar a mensagem desse protesto eleitoral nos coloca diante de uma difícil tarefa devido à sua grande ambiguidade política.

Consumismo e religião

Em uma reportagem, os enviados do El País de Madri que cobriram a campanha das eleições presidenciais registraram que, no Chile, os pobres e a classe média baixa se voltam ao consumo e passeiam por shopping centers destinados aos estratos superiores, mesmo que não comprem nada11. Uma visitante declarou aos jornalistas: «Viemos sempre. Posso estar o dia todo aqui, ainda que não compre nada. Isso é muito melhor que o lugar onde eu moro». Esse comportamento lembra o caso das «meninas aranhas», que subiam em ricos edifícios e entravam nos apartamentos só para experimentar roupas e, pelo que tudo indica, saíam sem roubar nada.

Cabe mencionar que o consumismo não é uma característica exclusiva do Chile. Mas a combinação do fascínio peculiar produzido no país com a indiferença em relação à política democrática é particularmente significativa. Por outro lado, a denúncia do consumismo e de uma cultura em que tudo é descartável (desde artigos e comida até seres humanos) é um dos pontos centrais da mensagem de Francisco, que os associa em suas encíclicas à desigualdade social e à deterioração ecológica do planeta. Essa mensagem desperta, por exemplo, resistências abertas entre a conservadora hierarquia católica dos eua. Será o papa capaz de produzir eco entre a população chilena, se é que podemos deixar de lado apenas por um momento os escândalos sexuais que ele também foi acusado de acobertar?

Tais escândalos constituem sem dúvida a principal causa imediata da queda no prestígio da Igreja, mas são também um fenômeno mundial. Por que eles afetaram tanto a instituição no Chile e menos em outros lugares? Possivelmente, é preciso somar a essa evidência processos mais profundos. Um deles é a acelerada secularização vivida pelo Ocidente. Mas, novamente, o impacto desse fato é generalizado. Talvez o aspecto mais específico do caso chileno resida em outro lugar, não menos universal, mas que se manifesta nesse país de modo especial: o consumo.

O Chile tem sido considerado o primeiro experimento neoliberal da história e o único «bem-sucedido», uma vez que cresceu e se manteve ao longo do tempo, representando um modelo para as correntes de direita da região. É também o segundo país mais desigual de todos os membros da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (ocde). Um estudo do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (pnud) revelou que a parcela 1% mais rica do Chile concentra 33% de toda a renda12. O novo presidente Piñera, dono de uma das maiores fortunas nacionais13, ampliada ainda mais no ano passado, prometeu combater a desigualdade. Como herança da ditadura pinochetista, os sindicatos chilenos são frágeis, e o acesso a serviços de saúde e educação exige o pagamento de enormes quantias. Os assalariados estão muito endividados para manter o nível de vida e o consumo. Poderíamos supor que eles deixaram de acreditar na religião e na política para se converterem involuntariamente em fiéis daquilo que o filósofo Walter Benjamin chamou, em um breve e penetrante fragmento de 1921, de «a religião do capitalismo».

Essa «religião» gera culpa (a palavra alemã também significa dívida, uma sinonímia que permite ao autor fazer um jogo de palavras). Não há nenhuma outra fé que, em vez de prometer a expiação, nos encha de culpas (ou dívidas). Ela constitui, portanto, o culto mais inclemente e o único que não exige acreditar em algo particular, já que não possui dogma; é puro culto. Segundo o intelectual católico uruguaio Alberto Methol Ferré, muito influente no pensamento de Jorge Bergoglio, com a queda do comunismo, o neoliberalismo havia se tornado o principal inimigo do catolicismo. Em sintonia com as reflexões que Benjamin havia antecipado em referência ao capitalismo em geral, embora sem se referir a esse pensador, Methol Ferré afirmou que o neoliberalismo difunde um materialismo de massas que as torna indiferentes a qualquer transcendência e as fixa em um individualismo despolitizado.

Uma renovada esquerda chilena obteve um resultado surpreendente no primeiro turno das últimas eleições presidenciais14, mas ainda não conseguiu alcançar a alma do país. Enquanto isso, a geopolítica espiritual da região mistura o novo com o velho. O país natal de Francisco tem a leste de suas fronteiras a tradição laicista e republicana do Uruguai e, a oeste, a mais recente religião neoliberal do Chile.

  • 1.

    José Fernández Vega: é pesquisador do Conselho Nacional de Pesquisas Científicas e Técnicas (Conicet) da Argentina e professor da Universidade de Buenos Aires (uba). É autor, entre outros livros, de Las guerras de la política. Clausewitz de Maquiavelo a Perón (Edhasa, Buenos Aires, 2005) e de Francisco y Benedicto. El Vaticano ante la crisis global (fce, Buenos Aires, 2016).Palavras-chave: capitalismo, consumismo, Igreja católica, religião, papa Francisco, Chile.Nota: tradução do espanhol de Luiz Barucke.. www.latinobarometro.org/latNewsShow.jsp.

  • 2.

    «Chilenos se muestran divididos ante disculpas del papa Francisco» em Excelsior, 20/3/2018.

  • 3.

    Em suas próprias palavras em espanhol, «Osorno sufre por tonta» [n. do t.].

  • 4.

    «Papa Francisco: Osorno sufre por tonta», vídeo publicado por Cadena Chile no YouTube, 2/10/2015.

  • 5.

    Termo em espanhol que significa canhoto e, na Argentina, é utilizado também para se referir a pessoas ideologicamente de esquerda, muitas vezes de forma pejorativa [n. do t.].

  • 6.

    Jack Jenkins: «Survey: Pope Francis Is Still Popular, But Warm Feelings Waning among Conservatives» em Religion News Service, 6/3/2018.

  • 7.

    Ana Chacón-Mora: «¿Jaque a la democracia en Costa Rica? El ascenso electoral de las iglesias pentecostales» em Nueva Sociedad edição digital, 3/2018, disponível em www.nuso.org.

  • 8.

    «Chileans Will Be a Tough Crowd for Pope Francis» em The Economist, 13/1/2018.

  • 9.

    David Brody: «In Donald Trump, Evangelicals Have Found Their President» em The New York Times, 24/2/2018.

  • 10.

    Carlos E. Cué e Rocío Montes: «Piñera gana la primera vuelta en Chile pero con un margen muy escaso» em El País, 20/11/2017.

  • 11.

    Ibid.

  • 12.

    pnud: Desiguales. Orígenes, cambios y desafíos de la brecha social en Chile, pnud / Uqbar Editores, Santiago de Chile, 2017.

  • 13.

    «Los más millonarios del mundo según Forbes» em cnn Chile, 6/3/2018.

  • 14.

    José Cembrano e Antonio Cansino: «Elecciones presidenciales y parlamentarias en Chile: Sorpresa del Frente Amplio», vídeo em Blasting News, 5/12/2017.

Este artículo es copia fiel del publicado en la revista Nueva Sociedad , Julho 2018, ISSN: 0251-3552


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