Tema central
NUSO Nº Junho 2017

Condenados à pós-democracia?

Condenados à pós-democracia?

Pouco após a queda do Muro de Berlim, em um dos ensaios políticos de maior sucesso em escala mundial no final do século xx, Francis Fukuyama escreveu que a democracia liberal poderia constituir:

«o ponto final da evolução ideológica da humanidade», a forma final de governo humano, e como tal marcaria o «fim da história». Isto é, enquanto as formas mais antigas de governo caracterizavam-se por graves defeitos e irracionalidades, que as levaram ao colapso final, a democracia liberal estava aparentemente livre dessas contradições internas fundamentais. (…) Embora alguns países contemporâneos não chegassem a alcançar uma democracia liberal estável, e outros pudessem cair em formas mais primitivas de governo, como a teocracia ou a ditadura militar, não seria possível aperfeiçoar o ideal da democracia liberal.1

Passados menos de 30 anos, essas presunções parecem risíveis. Estamos, em meados da década de 2010, diante de um claro paradoxo. Por um lado, vários povos submetidos a regimes políticos autoritários continuam se revoltando e exigindo a instauração da democracia. Isso parece legitimar os rankings estabelecidos pelo think tank Freedom House ou pela revista The Economist, que tomam a democracia liberal ocidental como modelo universal, como a vara com que se medem todos os países do mundo. Por outro lado, a crise dos regimes representativos, tanto nas democracias mais antigas como nas mais jovens, se aprofundou e universalizou, atingindo atualmente todos os continentes. Nessa dimensão, bem como em outras, estamos em meio a uma mudança de época.

Grandeza e decadência da democracia dos Modernos

É preciso recuar alguns passos e tentar observar os sistemas políticos modernos com olhos «persas», à maneira de Montesquieu no século xviii2. Deveríamos tentar fazer em relação ao presente aquilo que espontaneamente fazemos no que se refere à democracia ateniense, na medida em que somos sensíveis ao chamado provocado por essa experiência histórica, mesmo sabendo que ela não é universalizável por si só e que não será proposta como solução mágica aos problemas do século xxi.

O grande relato republicano ou liberal que a história dos dois últimos séculos apresenta como a afirmação progressiva da democracia e dos direitos humanos já não se sustenta à luz do que os trabalhos dos historiadores nos mostram. No final do século xviii, a Revolução Americana e a Revolução Francesa foram acontecimentos de grande repercussão mundial. A mobilização popular, e mais especificamente a das camadas subalternas, constituiu em si mesma uma sacudida violenta, inclusive em suas próprias contradições. Isso desembocou na instauração de governos representativos, de Estados de direito e de um conjunto de direitos humanos nos quais as dimensões civil e cívica se misturavam estreitamente. Tal modelo, com diversas variantes, foi lentamente difundido pelo Norte global e, de forma mais tardia e heterogênea, pelo resto do mundo. Algumas dessas dimensões são até hoje consideradas conquistas preciosas, e não somente nas velhas democracias: a defesa do Estado de direito e dos direitos humanos constitui um pilar imprescindível de toda estratégia emancipatória.

É necessário ainda encontrar a justa medida do que foi inventado à época. O que se desenvolveu, na Europa ocidental e na América do Norte de então, foram aristocracias eletivas, nas quais a essência do poder era monopolizada por um alguns poucos. É verdade que os «melhores» eram, contudo, eleitos em vez de designados por pertencerem à nobreza. Eles se revezavam na cúpula do Estado em vez de ocupá-la pelo resto da vida. Eles deviam levar em consideração um espaço público relativamente livre e institucionalizado. Mas não deixavam de ser recrutados entre um círculo estreito de pessoas provenientes de grupos sociais privilegiados, e levavam adiante políticas que favoreciam esses grupos. A introdução progressiva do sufrágio universal masculino não inverteu subitamente a situação, e foi necessária a invenção dos partidos de massas no século xix para esse quadro mudar. A exclusão das mulheres da vida política, primeiro em termos legais e depois de facto, persistiu durante longo tempo. Nos Estados Unidos, a reivindicação do autogoverno republicano por parte dos colonos protestantes era dirigida tanto contra os outsiders (católicos de língua francesa, povos indígenas, escravos negros) como contra a Coroa britânica3. Jamais se organizou uma eleição à escala dos impérios coloniais. As sociedades regidas por esses governos representativos eram as mesmas que se embarcariam em uma dinâmica de desenvolvimento que, hoje sabemos, repousava sobre uma assimetria com o resto do mundo; sabemos também em que medida essa dinâmica não era universalizável e conduzia a biosfera em direção a uma catástrofe ecológica.

Nos países do Norte global (Europa ocidental, América do Norte, Austrália e Nova Zelândia, Japão), foram necessárias décadas para que essas aristocracias eletivas evoluíssem para democracias representativas. Tal evolução não foi resultado de um lento amadurecimento, e sim produto de crises, guerras e revoluções de uma magnitude inusitada, que marcaram o fim do «longo século xix» (1789-1914) e o «curto século xx» (1914-1989), para recuperar a periodização de Eric Hobsbawm4. As décadas que se seguiram à Segunda Guerra Mundial assistiram ao estabelecimento de regimes representativos capazes de incluir, embora em posição subordinada, as classes subalternas nacionais, através dos partidos de massas, do sufrágio universal que incluía homens e mulheres e do Estado social. Isso representou uma mudança considerável, mas o Estado «nacional-social»5 permanecia nas mãos de um círculo – ainda que mais amplo – de insiders. Os regimes democráticos do Norte global continuavam descansando sobre um desenvolvimento produtivista que se acelerava e fazia o planeta passar para a era do Antropoceno6. Esse desenvolvimento dependia, igualmente, de uma divisão internacional do trabalho que implicava a dominação do resto do globo. Os partidos políticos estavam, além disso, estruturados de forma fortemente hierárquica, refletindo o modo em que funcionavam a escola, a família, as ciências e a produção industrial.

Em outra parte do mundo, guerras e revoluções deram lugar à instauração de regimes que se reivindicavam comunistas. Conduziram igualmente a formas de Estado social e de comunicação entre as classes populares e as elites políticas inseridas em estruturas totalitárias ou autoritárias. Esses regimes constituíam uma alternativa à democracia liberal e sua existência foi, sem dúvida, um dos motivos que levaram as classes dirigentes dos países ocidentais, temerosos do possível contágio, a aceitarem Estados sociais. A Revolução Mexicana também desembocou em um modelo que diferia muito das democracias liberais. Na América Latina, os populismos foram as pontas de lança do estabelecimento de Estados sociais que, em certa medida, podiam ser comparados aos europeus ou norte-americanos. O peronismo representa notadamente um dos exemplos mais bem-sucedidos de partido de massas. Em vários países do Sul global, as crises políticas e as ditaduras (muitas vezes fomentadas pelos eua) impediram que se atacassem as raízes da pobreza e das desigualdades, ao mesmo tempo em que o modelo de integração ao Estado do movimento operário e sindical limitou o desenvolvimento de alternativas políticas.

Os «trinta gloriosos»7 e a década que se seguiu ao final do curto século xx conformaram o apogeu da democracia liberal. A queda do Muro de Berlim e dos sistemas comunistas na Europa do Leste, bem como dos regimes do Sul global que neles se inspiravam, reforçou uma tendência presente desde a segunda metade da década de 1970. As ditaduras que o «mundo livre» havia sustentado ou estabelecido no sul da Europa, na América Latina e, em menor medida, na África e na Ásia, vieram abaixo. A vitória da democracia liberal ocorreu conjuntamente com a democratização de estruturas autoritárias como a escola ou a família, com a revolução feminista, com a multiplicação dos meios audiovisuais – antes nas mãos do Estado –, com o boom dos computadores portáteis e o início da internet. Esse período testemunhou a afirmação do reinado do neoliberalismo e do capitalismo financeiro. Experimentado no Chile e na Argentina sob ditaduras, esse novo modo de acumulação do capital se expandiu para o Reino Unido e os eua com Margaret Thatcher e Ronald Reagan, e depois para o resto do mundo, inclusive a China. O questionamento do Estado social parecia ser o preço a pagar por uma expansão econômica e política que prometia desta vez ser planetária. Os conservadores norte-americanos se apropriaram da questão dos direitos humanos. Dava a impressão de que a democracia dos Modernos não era outra coisa senão a democracia liberal e que esta, ao triunfar definitivamente sobre seus adversários, estaria a ponto de instaurar o reino da liberdade sobre o planeta.

A democracia no século xxi

Essa época já parece ter ficado distante no tempo. A representação política baseada nos partidos está em crise nos países onde há multipartidarismo, mas também, de uma outra maneira, em uma China governada por um partido único8. Ouve-se dizer com frequência que a democracia é um regime perpetuamente em crise, já que implica uma crítica permanente de seus próprios fundamentos. Seria preciso ser cego, no entanto, para não ver que o questionamento à democracia se exacerba em determinados momentos históricos: a Terceira República francesa nos tempos da Belle Époque não é a República de Weimar na Alemanha, e o Uruguai dos anos 2010 dificilmente se compara ao Chile do início dos anos 1970. Ora, muitos indícios nos apontam que entramos em uma era de rupturas.

Por um lado, as mudanças decorrem de fatores internos ao sistema político. Além das variantes autoritárias do estilo do Partido Socialista Unido da Venezuela (psuv), do Partido da Justiça e do Desenvolvimento (akp, na sigla em turco) na Turquia ou do Partido Comunista (pc) chinês, e colocando de lado a exceção peronista, os partidos de massas que estruturaram as sociedades ocidentais durante um século, e que se estenderam sob diferentes formas em regiões tão diversas como a América do Sul, a China, a Índia e o Sudeste asiático, já não existem mais. Neles se fundava a comunicação entre os cidadãos e os tomadores de decisões, e eram eles que davam contorno à sociedade através de suas células e organizações satélites, além de permitirem a integração das massas populares ao sistema político. Em toda parte, ou quase, os partidos perderam essa tríplice vocação. O Partido dos Trabalhadores (pt), no Brasil, percorreu em menos de quatro décadas um ciclo que durou mais de um século na Europa: o de uma organização combativa formada por movimentos contestatários que se transformou em um partido de governo comprometido com uma transformação reformista mas real da sociedade e, depois, em um partido enroscado nas piores tramas de um Estado corrompido e com uma direção muito distanciada das bases. Os partidos continuam sendo os principais locais de recrutamento de pessoal político profissionalizado, mas perderam grande parte de seus militantes, dos laços com os setores populares (inclusive na China, onde o pc representa hoje mais as elites do que as massas), de sua credibilidade e da capacidade de canalizar com eficácia e legitimidade os conflitos sociais no interior do sistema político institucional. A profissionalização da política, que foi afirmada com os partidos de massas a partir da segunda metade do século xix, hoje é vista pelos cidadãos como um fator negativo (os políticos se ocupam em primeiro lugar de suas carreiras, e não das pessoas comuns) mais do que positivo (esses profissionais seriam especialistas mais sensatos do que os cidadãos). A tendência é mais pronunciada na Europa e na América do Norte, mas também cresce na América do Sul.

No Norte global, diante de transformações sociais sem precedentes (pensemos na internet e nas redes sociais, que revolucionaram a socialização e a economia, constituindo símbolos do novo mundo em gestação), o sistema político ficou paralisado. O Estado social está em retirada em toda parte. Apoiava-se em um forte movimento de trabalhadores, hoje amplamente desorganizado, mas também no fato de que o domínio do inapropriadamente chamado Ocidente sobre o resto do mundo permitia políticas distributivas significativas. A globalização, realizada sob a hegemonia do capital financeiro, mina os Estados sociais ocidentais e favorece sobretudo os mais ricos. O crescimento econômico dos países emergentes permitiu que milhões de pessoas saíssem da pobreza, mas eles competem com as economias desenvolvidas menos especializadas nos produtos de alto valor agregado.

A situação do Sul global é mais diversa. Nos países emergentes, o capitalismo selvagem e o estabelecimento de Estados sociais modestos coexistem em tensão. Que os regimes sejam formalmente democráticos ou que eles sejam autoritários não constitui, nesse plano, uma diferença decisiva. O contraste mais significativo ocorre entre os países nos quais as classes dirigentes possuem um projeto real de desenvolvimento e aqueles em que os Estados (formalmente autoritários ou democráticos) estão nas mãos de grupos somente predatórios. A miséria persistente e as tensões de todo tipo acarretam então graves crises, guerras e até mesmo o colapso dos Estados em certos casos. As migrações em grande escala não são mais do que uma consequência do anterior.

A nova ordem mundial «provincializa»9 o Norte global e seu modelo político. Provoca crises de identidade que se expressam de forma mais ou menos marcada nos diferentes países. O Brexit, a eleição de Donald Trump e o crescimento da extrema-direita xenófoba na Europa fazem parte de seus efeitos difratados. Entretanto, na Europa, e mais ainda nos eua, as respostas para fazer frente a essa crise e renovar a democracia têm sido em geral cosméticas. Não passam de medidas oportunistas ou de reformas marginais. Isso tem contribuído à desconexão acentuada dos partidos em relação aos movimentos cidadãos e à maioria da população.

Paralelamente, a questão ecológica põe na mesa um desafio radicalmente novo. Muda nossa escala temporal e geográfica. Exige que encontremos mecanismos e dinâmicas para representar as gerações futuras, coisa que a lógica eleitoral e seu foco no curto prazo são incapazes de fazer. E se o mote «pensar globalmente, agir localmente» ainda guarda grande pertinência, uma parte importante das ações a empreender e das regulações a implantar diz respeito à governança global. A democracia se desenvolveu no Estado-nação. Este levou séculos para se impor na Europa, expandiu-se com as independências na América a partir do final do século xviii e no restante do mundo ao longo das décadas que se seguiram à Segunda Guerra Mundial. Pois bem, a governança global implica uma mudança de escala comparável àquela que fez as cidades-Estado da Antiguidade, Idade Média e Renascimento darem lugar aos Estados-nação das dimensões que hoje conhecemos. Ela se situa muito além da democracia representativa e da soberania popular, operando em redes de atores com status muito diversos: os Estados, em particular os dos países mais poderosos, continuam jogando um papel importante, porém ao lado de coalizões de empresas transnacionais, de alianças de governos locais, de organizações internacionais tecnocráticas como o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional (fmi) e, em menor medida, de ongs como Greenpeace, movimentos altermundistas, sindicatos de trabalhadores, Via Campesina e igrejas.

A tese amplamente difundida de que o desenvolvimento econômico permitiria a criação de classes médias numerosas e que estas favoreceriam, por sua vez, o desenvolvimento de democracias liberais é ideológica e de pouca credibilidade. Como a história bem mostra, as classes médias não são naturalmente «democráticas» e podem adotar orientações políticas bem diversas. A evolução das novas democracias surgidas após a década de 1980 é significativa. Por um lado, elas entraram rapidamente em crise. De modo geral, encontram-se longe do poder real do povo e suscitam muitas desilusões, tanto na América Latina como na África, Coreia do Sul e Taiwan. Na maior parte dos países da antiga União Soviética ou no Egito, elas evoluíram para sistemas autoritários. Por outro lado, essas novas democracias tomaram vias que se afastam do modelo liberal clássico. Na Índia, a introdução de cotas para a representação das castas baixas (as chamadas Other Backward Classes, obc) possibilitou uma democratização social da política nos anos 1980 e 199010, muito embora uma onda nacionalista e autoritária tenha depois retomado o poder. Na América do Sul, em meio à mobilização política dos setores populares, a onda de democratização que pusera fim às ditaduras alcançou em alguns países a constitucionalização de novos direitos sociais e ecológicos, a introdução de fortes dimensões de democracia direta e participativa, o reconhecimento de uma cidadania multiétnica. Em suma, esses processos conseguiram desmentir os apologistas de um modelo liberal considerado perfeito e delinearam os traços de um neoconstitucionalismo prometedor11. No entanto, esse movimento ficou gradualmente estagnado na gestão de Estados amplamente corruptos ou no autoritarismo de líderes mais ou menos carismáticos. No total, são poucas as novas democracias nas quais o sistema político liberal seja estável e onde se possa contar com altos níveis de satisfação entre a população.

Em tal contexto, a grande maioria das forças de esquerda do mundo oscilam entre dois polos. O primeiro se adapta ao neoliberalismo e ao produtivismo ou se contenta em apenas compensar seus efeitos. Assenta-se na defensa do governo representativo, acompanhado, no melhor dos casos, por uma democracia participativa que só incide em questões secundárias sem permitir o desenvolvimento de contrapoderes e, no pior dos casos, sucumbe a um elitismo reivindicado na crítica à irracionalidade da democracia direta e das correntes contestatárias catalogadas pejorativamente com o rótulo de «populistas». O segundo polo sonha com uma impossível volta atrás, aos Estados-nação soberanos, aos partidos de massas e ao produtivismo keynesiano. Com frequência, essa orientação se tinge de tons autoritários, nacionalistas e xenófobos, passando pela busca de um líder carismático capaz de encarnar as massas. As forças que conseguem se voltar para um futuro democrático que esteja em sintonia com os desafios do século xxi são globalmente minoritárias.

Pós-democracia, autoritarismo ou revolução democrática

No Norte global, as tendências mais significativas são as da pós-democracia e do autoritarismo. Manifestam-se também no resto do mundo, mas geralmente coexistem com cenários de colapso.

A pós-democracia12 é um sistema no qual, em aparência, não há nada de diferente em relação à democracia ocidental clássica: eleições livres continuam sendo organizadas, a Justiça é independente, os direitos individuais são respeitados. A fachada é a mesma, mas o poder real está em outro lugar. As decisões são tomadas pelas direções de grandes empresas transnacionais, pelos mercados, pelas agências de classificação, pelas organizações internacionais e pelos órgãos tecnocráticos. Esta é a tendência dominante na atualidade. O impeachment de Dilma Rousseff conduz o Brasil por essa via. Se a França e os eua estão ambos largamente instalados na pós-democracia (a decisão da Suprema Corte de aceitar que o dinheiro atue na política sem nenhum tipo de limites é, de alguma forma, sua constitucionalização13), há também tendências autoritárias que se manifestam fortemente.

O autoritarismo implica uma profunda reformulação da fachada: existem eleições, mas a competição eleitoral é enviesada; as liberdades (de expressão, de associação, de ir e vir, de imprensa, etc.) são reduzidas por leis restritivas; a Justiça é menos independente. O autoritarismo se nutre do medo do inimigo interno e externo, e de uma xenofobia que pesa sobre os imigrantes e os estrangeiros. Foi a direção tomada pelos governos russo, húngaro, polonês e turco, e que encontramos em outras partes, no Equador e na Venezuela, por exemplo, ou mesmo na Índia de Narendra Modi. No Sudeste asiático, muitos regimes não democráticos já avançaram, mediante uma liberalização muito controlada, para modelos desse tipo, ou estão a caminho. Globalmente, a conjuntura de meados da década de 2010 é bastante sombria. Em comparação com a década anterior, as experiências governamentais portadoras de inovações democráticas rarearam significativamente. Muitos países se encontram presos em espirais regressivas, e os Estados fracassados se multiplicam. Os movimentos sociais não conseguiram, até o momento, inclinar a balança das relações de força em um sentido mais democrático, e correntes abertamente reacionárias têm ganhado as ruas e as praças.

Há que se dizer com força: tanto no Norte como no Sul globais, o tempo das pequenas reformas já passou. Só com passos mais largos para adiante poderemos evitar os cenários da pós-democracia e do autoritarismo, ou inclusive o colapso. A mudança deve ser de uma importância similar à daquela que, na Europa, permitiu a afirmação, em poucas décadas, do movimento operário, do sufrágio universal, dos partidos de massas e do Estado social. Ela deve inclusive ser mais radical, já que para ter sucesso não pode se limitar ao âmbito nacional. É necessário democratizar radicalmente a democracia em todas as escalas para fazer contraponto ao capitalismo financeiro globalizado, para responder aos desafios ecológicos, para colocar finalmente a questão da justiça social em uma escala transnacional.É preciso reconhecer que o tamanho da tarefa é colossal. Esta perspectiva não é, no entanto, um mero desejo ilusório. Constitui uma «utopia realista»14, um horizonte inalcançável como tal, mas em direção ao qual é possível se dirigir desde hoje. Pode se apoiar nas inúmeras inovações experimentadas no âmbito local, ou mais raramente no nacional, que até agora não conseguiram se aglutinar em uma corrente coerente. Ou nas mobilizações de massas, em particular as do tipo Occupy Wall Street ou do 15-m na Espanha, do Movimento dos Girassóis em Taiwan ou do Passe Livre no Brasil. Também nos partidos e tendências políticas comprometidos com uma verdadeira renovação de suas práticas e programas. Nos movimentos que defendem a justiça social, e outros que militam pela justiça de gênero ou pela igualdade racial. Uma verdadeira revolução democrática é necessária. Uma revolução de novo tipo. Ela não se encarnará em uma grande jornada eleitoral, nem na tomada pela força do poder do Estado, nem em um líder único ou um partido que consiga fazer a síntese de todas as lutas. Passará por múltiplas vias, constitucionais e sociais. Por reformas institucionais e pela desobediência civil. Pela experimentação de outras formas de vida, aqui e agora. Pela defesa de novos bens comuns. Tal revolução requer a construção de coalizões ágeis e amplas, que permitam a convergência de atores diversamente estruturados e a defesa de objetivos em parte heterogêneos, capazes de fazer inclinar a balança para a lógica da governança em rede. Trata-se sem dúvida do desafio mais difícil, mas não por isso impossível. Os combates ideológicos que são travados na esfera internacional implicam, por exemplo, coalizões móveis e em múltiplas escalas entre ongs, certos Estados (como os das pequenas ilhas duramente afetadas pela elevação do nível dos oceanos), redes de cidades, empresas especialmente dedicadas à reconversão energética, centros de pesquisa acadêmica e sindicatos que tomaram partido pelo enfrentamento dos limites do produtivismo e do extrativismo. Tais coalizões ganham pontos quando são suficientemente sólidas e potentes para promover alternativas críveis e mobilizar a opinião pública internacional a seu favor.

As tendências que impulsionam essa revolução democrática de novo tipo são certamente minoritárias. Mas são reais e, como cantava Chico Buarque, «amanhã vai ser outro dia». E uma coisa é certa: os discursos que com frequência se ouvem na América Latina de que este ou aquele país deve passar por reformas para alcançar a normalidade democrática são completamente insustentáveis. Seu pressuposto é o de que a normalidade democrática corresponde à democracia liberal que viveu sua plenitude no Norte global durante algumas décadas. Ora, essa normalidade nunca existiu. Tomado em conjunto, o modelo não era universalizável; possuía luzes e sombras e sempre coabitava com outros modelos, que por sua vez apresentavam graus diversos de tendências emancipatórias, e também com modelos que reafirmavam a dominação social e política. As dinâmicas democráticas sempre foram híbridas, mestiças, plurais. Hoje em dia, a democracia liberal está sem fôlego até nos países onde foi inventada. Por que é que se haveria de imitá-la? O século xxi não se anuncia como o fim da história, mas sim como um tempo agitado. Ele assistirá a numerosas transformações. Talvez para pior. Mas nada permite afirmar que o melhor deva ficar automaticamente excluído.

  • 1.

    Francis Fukuyama: O fim da história e o último homem, Rocco, Rio de Janeiro, 1992, p. 11.

  • 2.

    Referência ao romance Cartas persas, publicado anonimamente por Montesquieu em 1721, no qual critica a sociedade e os costumes franceses a partir do olhar de seus protagonistas de origem persa. [n. da t.].

  • 3.

    Aziz Rana: The Two Faces of American Freedom, Harvard University Press, Cambridge-Londres, 2014.

  • 4.

    E. Hobsbawm: A era dos extremos, Companhia das Letras, São Paulo, 2008.

  • 5.

    Etienne Balibar: Nous, citoyens d’Europe? Les frontières, l’Etat, le peuple, La Découverte, Paris, 2001.

  • 6.

    Termo cunhado pelo Nobel de Química Paul Crutzen em 2001. O Antropoceno teria sucedido o Holoceno. O neologismo é usado para ressaltar os efeitos irreversíveis das atividades humanas nos ecossistemas e no clima do planeta [n. do e.].

  • 7.

    Período do pós-guerra compreendido entre 1945 e 1975. [n. do e.]

  • 8.

    Wang Hui: «The Crisis of Representativeness and Post-Party Politics» em Modern China vol. 40 No 2, 2014.

  • 9.

    Dipesh Chakrabarty: Provincializing Europe: Postcolonial Thought and Historical Difference, Princeton University Press, Princeton, 2000.

  • 10.

    Christophe Jaffrelot e Sanjay Kumar (orgs.): Rise of the Plebeians? The Changing Face of Indian Legislative Assemblies, Routledge, Nova Déli, 2009.

  • 11.

    Guillermo Lousteau, Xavier Reyes, Pedro Salazar e Ignacio Covarrubias: El nuevo constitucionalismo latinoamericano, The Democracy Papers No 5, Inter American Institute for Democracy, agosto de 2012.

  • 12.

    Colin Crouch: Post-démocratie, Diaphane, Bienna-Zurique, 2013.

  • 13.

    Citizens United v. Federal Election Commission, 558 us 310, 2010.

  • 14.

    Erik Olin Wright: Envisioning Real Utopias, Verso, Londres-Nova York, 2010.

Este artículo es copia fiel del publicado en la revista Nueva Sociedad , Junho 2017, ISSN: 0251-3552


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