Artículo
NUSO Nº Setembro 2013

A China na África: discurso sedutor, intenções duvidosas

Quando o governo chinês organizou em Pequim a primeira conferência sino-africana em nível ministerial, em outubro de 2000, estabeleceu um antes e um depois nas relações da China com a África. Esta nova empreitada nas relações sino-africanas surpreendeu os tradicionais sócios africanos, que haviam reduzido sua visibilidade, e os emergentes, que estavam reconsiderando suas políticas para a região. A investida da China no continente representa uma série de dúvidas sobre as intenções da potência asiática. Significa mais da mesma coisa? Os padrões de dominação das potências ocidentais serão repetidos? Ou, ao contrário, será estabelecida uma relação de caráter diferente? Gladys Lechini: professora titular de Relações Internacionais da Faculdade de Ciência Política e Relações Internacionais da Universidade Nacional de Rosario (Argentina). É pesquisadora sênior do Conselho Nacional de Investigações Científicas e Técnicas (Conicet) e diretora do Programa de Relações e Cooperação Sul-Sul (Precsur). Palavras-chave: colonialismo, matérias-primas, democracia, Fórum para a Cooperação entre a China e a África, China, África.

A China na África: discurso sedutor, intenções duvidosas

Nos dias atuais, parece haver o consenso de que o atual sistema internacional está sofrendo mudanças importantes que poderiam modificar sua estrutura e natureza e resultar em um cenário um pouco diferente daquele do período da Guerra Fria, o que põe em dúvida as certezas da segunda metade do século XX. A atual reconfiguração de forças revela turbulências, com processos simultâneos e contraditórios. Estão surgindo novos poderes em nível político e econômico que disputam as regras do jogo, ao mesmo tempo em que vários tipos de crises, principalmente financeiras, mobilizam os atores no cenário internacional. Para além de possíveis análises a respeito do rumo dessas mudanças, é possível observar que fenômenos contraditórios acontecem simultaneamente.

O processo de globalização apresenta hoje mais riscos que benefícios e coexiste com processos de fragmentação e localização. Há uma concentração de poder em poucas mãos, ao mesmo em que acontece uma difusão de poder em muitos centros. A divisão clássica entre Norte e Sul – desenvolvidos/subdesenvolvidos – ficou mais complexa e diluída. Existem vários «Suis» que vêm à tona no Norte e «Nortes» que vêm à tona no Sul. O poder se dirige para novas geografias, deslocando-se do Norte e do Ocidente para o Sul e o Oriente, onde fica a China. Alguns países emergentes são do Sul e outros do Leste. O Sul está sendo «reformatado». Nos anos 1960 e 1970 era chamado de Terceiro Mundo; na década de 1980, simplesmente Sul; e, a partir dos anos 1990, Sul Global.

Atualmente, os países emergentes mostram que alguma coisa está mudando e que o Terceiro Mundo e o Sul não são categorias tão simples e fáceis de serem apreendidas. Como em toda transição, as categorias clássicas se confundem e se diluem; o velho e o novo se mesclam às contradições e sobreposições1. As velhas coalizões sobrevivem ao mesmo tempo em que surgem novas, conferindo relevância e prolongando tanto as relações multilaterais como aquelas em que predomina apenas um ator, e ainda as redes. A comprovação disso é a proliferação de atores governamentais e não-governamentais em associações de estruturas diferentes formadas por grupos e coalizões variados, geralmente de tamanho minúsculo, em torno de questões específicas de interesse comum.

O mundo está sendo redesenhado pela participação de poderes emergentes em uma nova relação entre economia e política. Surgem novos nomes para vários grupos de países emergentes2 e também para coalizões de atores econômicos e financeiros3. Embora muitas vezes não compartilhem uma agenda comum, mas apenas alguns interesses, esses grupos emergentes estão desempenhando papéis cada vez mais importantes na economia e na política mundiais.

No que se refere à África, não é novidade que o território africano abriga imensas riquezas estratégicas, e a famosa «maldição de recursos» tem sido e continua a ser uma ameaça persistente de perigo para os governos e povos africanos. O processo de ligação da África com os centros de poder mundial revela que, sucessivamente, e às vezes simultaneamente, o continente africano foi – a partir do século XV – uma escala no caminho para a Índia; fornecedor de especiarias, de mão-de-obra escrava para a exploração agrícola das Américas, fonte de matérias-primas agrícolas e minerais que alimentaram o processo de industrialização do Ocidente, e cenário estratégico do conflito Leste-Oeste durante a Guerra Fria. Além disso, foi alvo de experiências econômicas, com a adoção de planos de ajuste estrutural. No final do século XX, a redução da ajuda, a fuga de investimentos e o fim das expectativas também eram o reflexo de que os polos de atração econômica e as preocupações estratégicas das potências passavam por outras latitudes. Contudo, no século XXI a África começou a se revelar como uma combinação explosiva de recursos naturais estratégicos, terras potencialmente aptas a serem exploradas, reservas significativas de água doce e de minerais «raros», e um mercado de consumidores grande e quase virgem.

Quando, em outubro de 2000, o governo chinês organizou em Pequim a primeira conferência sino-africana em nível ministerial, estabeleceu um marco nas novas relações da China com a África e no posicionamento da África no sistema internacional. Na época ainda podiam ser usados os termos «afro-pessimismo» e «donnors fatigue» para classificar um continente que, em virtude de sua situação social e instabilidade política, para muitos só podia ser alvo das preocupações da Cruz Vermelha Internacional. Esta nova investida da China na África4 surpreendeu os tradicionais sócios africanos, que tinham reduzido sua visibilidade, e entre os emergentes, que estavam reconsiderando suas políticas para a região, elevando assim a importância da África para níveis comparáveis ao do Congresso de Berlim (1884-1885) ou do segundo pós-guerra.

Considerando o que foi exposto acima, este trabalho visa a destacar a recente evolução das relações sino-africanas para construir um mapa que as ilustre na atualidade. Também pretende analisar como as relações entre a China e a África podem afetar os próprios países africanos e o rearranjo global. Da mesma forma, este trabalho também deseja pôr em questão as intenções chinesas e as consequências que esta investida possa ter sobre a África. Será que é mais da mesma coisa? Os padrões de dominação dos centros ocidentais serão repetidos? Ou se estabelecerá um novo tipo de relação?

A investida

A volta da China aconteceu em uma conjuntura singular para a África, quando o continente estava sendo banido das preocupações dos centros de poder ocidentais, e no âmbito de um contexto especial para Pequim, que precisava de recursos e de mercados para alimentar sua máquina de constante crescimento. As reformas de Deng Xiao Ping, iniciadas em 1978, produziram mudanças irreversíveis nas estruturas econômicas do país mais povoado do planeta. O «socialismo com características chinesas» tentou transformar a economia planificada da China, estagnada e empobrecida, em uma economia de mercado, com um forte crescimento econômico. Esta política levou a cifras de 9% de crescimento anual do PIB, por mais de uma década. Tendo em vista que a China não é autossuficiente5, precisou procurar matérias-primas (petróleo, minerais e grãos) em várias regiões do mundo, para que pudesse manter este crescimento. No que diz respeito ao petróleo, por exemplo, a China só produz a metade da energia que utiliza e é o segundo maior consumidor e importador mundial6.

Esse processo de crescimento acelerado também provocou uma mudança na política exterior, a fim de conseguir uma participação mais dinâmica na economia e na política mundiais. Desde então, os chineses utilizaram várias ferramentas para sua expansão no mundo e, particularmente, para se aproximar da África. Por conseguinte, durante esse período, um conjunto de ideias constituiu-se como a diretriz para acompanhar a reinserção da China – como os conceitos «ascensão pacífica», «desenvolvimento pacífico» e «mundo harmônico». O termo «ascensão pacífica» foi cunhado em 2003 por Zheng Bijian para apaziguar os temores do Ocidente diante do crescimento chinês, e mostrar a China como uma potência bondosa, que respeita as regras estabelecidas – graças às quais conquistou seu progresso. Em 2004, o presidente Hu Jintao substituiu esta ideia pela expressão «caminho de desenvolvimento pacífico», amplamente utilizada até ser substituída pelo conceito atual de «mundo harmônico», primeira estratégia global que os chineses oferecem para a construção da futura ordem internacional7. Essas noções se encaixam na concepção de um mundo multipolar, onde a segurança se estabelece com a segurança e o benefício mútuo, na igualdade e na coordenação, preconizando a necessidade de democratizar cada vez mais as relações internacionais8.

No plano do discurso, os governantes chineses afirmam que sua relação com os países africanos pretende promover a cooperação econômica Sul-Sul para a construção de uma nova ordem internacional, mais justa e igualitária, em que a China se assume como um país em desenvolvimento e, portanto, identificado com seus sócios africanos. Pequim tenta legitimar sua posição afirmando que tanto a China como os Estados africanos compartilham da humilhação de terem sido submetidos à dominação europeia e terem lutado contra o colonialismo. Uma vez recuperados os velhos princípios da Coexistência Pacífica, os líderes chineses propõem a seus pares africanos uma aliança econômica com um programa social que promove o desenvolvimento econômico constante, o respeito à soberania estatal e à diversidade, sob o pressuposto de que ambas as partes se beneficiam nos negócios («win-win situation»).

Pequim chegou à África ansiosa por recursos, sem um passado colonial ou neocolonial, sem retóricas paternalistas ou moralistas e sem a imposição de condicionantes econômico-financeiras (como as do Fundo Monetário Internacional, FMI) ou políticas (como a exigência de estabilidade democrática). No entanto, quando trouxeram à tona uma posição terceiro-mundista, os chineses também estavam se lançando na disputa capitalista por recursos naturais e mercados nos países do Sul.

A estratégia chinesa mais visível e decisiva na África foi a organização do Fórum para a Cooperação entre a China e a África (FOCAC), que reúne os dirigentes africanos e chineses em cúpulas em que é traçada a cooperação, segundo as diretrizes chinesas. Porém, também é possível observar um crescimento significativo do comércio bilateral, dos investimentos e da cooperação científica e tecnológica. Esse modelo de relações não foi uma novidade para os governantes africanos, habituados às reuniões acompanhadas por uma verdadeira multidão, como as da Commonwealth ou dos países francófonos. Este fórum, contudo, pretende ser diferente – pelo menos no que se refere ao discurso – do approach neocolonialista do Ocidente, destacando o compromisso dos governantes e empresários chineses em criar uma associação estratégica entre ambos os atores, inspirado nos benefícios mútuos.

As estratégias

O FOCAC é o palco oficial para o desenvolvimento das relações entre a República Popular da China e os Estados africanos. Em outubro de 2000, a primeira convocatória – em Pequim – foi pensada para «conquistar» os líderes africanos com o modelo e as propostas chinesas. Contou com a presença do presidente Jiang Zemin, do primeiro-ministro Zhu Rongji e do vice-presidente Hu Jintao. Altos representantes governamentais de 44 países africanos e 17 organizações regionais e internacionais também compareceram. Entre os africanos, estavam presentes os presidentes do Togo, Argélia, Zâmbia, Tanzânia e o secretário-geral da União Africana. Na reunião foram aprovados a Declaração de Pequim e o Programa para a Cooperação Sino-Africana para o Desenvolvimento Econômico e Social – os dois documentos se tornaram os eixos norteadores da aproximação africana. Cinco cúpulas foram realizadas até o momento. Elas acontecem alternadamente na China e em um país africano, a cada três anos. O pontapé inicial foi em Pequim; a reunião seguinte teve lugar em Addis Abeba, em dezembro de 2003; a terceira cúpula aconteceu em Pequim, em novembro de 2006; a quarta em Sharm El-Sheikh (Egito), em novembro de 2009, e a quinta em Pequim9, em julho de 2012.

Conforme já mencionado, a aproximação chinesa se apresenta qualitativamente diferente daquelas da Europa e dos Estados Unidos. Posicionando-se como um país em desenvolvimento, a China promete não reproduzir o comportamento depredador das antigas potências coloniais. Durante o Fórum para a Cooperação entre a China e a África, ocorrido em Pequim em 19 de julho de 2012, o presidente Hu Jintao declarou:

A China é o maior país em desenvolvimento do mundo e a África é o lar do maior número de países em desenvolvimento no mundo. Com mais de um terço da população mundial, a China e a África são uma força importante para promover a paz e o desenvolvimento mundiais. A China e a África compartilham de um destino comum. Os chineses e os africanos sempre se trataram como iguais e com sinceridade, amizade, apoio mútuo e buscando o desenvolvimento comum.10

Do mesmo modo, os chineses também não ameaçam interferir ou intervir na política doméstica africana, não querem mudanças no regime político de turno, no âmbito da suposta «cláusula democrática», nem impõem condições para a venda de armas para Estados párias, considerados inimigos pelo Ocidente. «A nova ótica de Pequim está projetada para utilizar a cooperação econômica e política como o instrumento para reforçar e fazer avançar a agenda política e econômica do Sul, com a perspectiva de construir uma ordem internacional mais justa e equitativa»11.

Cabe ainda destacar que apesar do caráter multilateral dos fóruns sino-africanos, as atividades econômicas oficiais têm uma estrutura bilateral, entre o governo central da China e seus bancos estatais, de um lado, e seus sócios africanos, de outro. No entanto, esse processo está se descentralizando com a presença cada vez maior dos governos locais chineses – por meio de empresas próprias – e de outros atores não governamentais12.

Esse dinamismo bilateral se fortalece com as visitas constantes e recíprocas de chefes de Estado e funcionários de alto nível. O interesse chinês fica evidente nas viagens de seus líderes aos estados africanos. Durante sua permanência no poder, Hu Jintao (2003-2013) visitou o continente africano quatro vezes, percorrendo 17 países (Egito, Gabão e Argélia, em 2004; Marrocos, Nigéria e Quênia, em 2006; Camarões, Libéria, Sudão, Zâmbia, Namíbia, Moçambique, Seychelles, em 2007; Mali, Senegal, Tanzânia e Ilhas Maurício, em 2009). Enquanto isso, o novo presidente da China, Xi Jinping, fez sua primeira viagem ao continente em março de 2013, visitando as capitais da África do Sul e da República do Congo.

Esse ativismo transformou Pequim em um dos mais importantes sócios comerciais da África. Graças a ele, a região subsaariana conseguiu um crescimento econômico de 5% na primeira década do século XXI. Como afirma Gonçalves, um índice de crescimento como este só havia sido registrado na década de 1960 e é considerado uma consequência direta da relação econômica da China com quase todos os países daquele continente13. Os eixos da relação são comércio, investimentos e assistência tecnológica.

Comércio

O aumento significativo do comércio entre a China e a África alçou Pequim para o segundo lugar entre os sócios comerciais do continente – só perdendo para os Estados Unidos e superando o volume comercial da França e da Grã-Bretanha (antigas potências coloniais) com a África. Da mesma forma, entre os BRICS, a China lidera o intercâmbio com a África, com 70% do total do comércio com o continente. A balança comercial está dominada pelos intercâmbios na área energética, uma vez que a proporção dos hidrocarbonetos no comércio entre a África e o resto do mundo representa um terço das exportações africanas de matérias-primas14.

O comércio bilateral é administrado por 49 delegações comerciais e câmaras de comércio sino-africanas. Por outro lado, em nível multilateral estão em curso as negociações de acordos de livre comércio com os grupos regionais, como é o caso do Mercado Comum do Leste e do Sul da África (COMESA, na sigla em inglês). A China importa petróleo do Egito, Camarões, Sudão, Senegal, Angola e Nigéria. Angola é o sócio comercial mais importante e responde por 64% das importações de petróleo da África. A China também compra ouro do Burundi e da Tanzânia; fibras têxteis do Burundi e de Burkina Faso; metais não ferrosos da África do Sul, Zâmbia e Botsuana; café e chá da Etiópia, Quênia e Uganda; têxteis da Tunísia e Marrocos, e tabaco de Zimbábue e Malauí15.A África exporta para a China matérias-primas e importa manufaturados, repetindo o tradicional modelo de intercâmbio Norte-Sul. Apesar desse boom, é interessante sublinhar que esta atividade comercial se concentra em poucos sócios. Sessenta por cento das exportações chinesas destinam-se a seis países: África do Sul (21%), Egito (12%), Nigéria (10%), Argélia (7%), Marrocos (6%) e Benin (5%), enquanto 70% das importações chinesas provêm de quatro países: Angola (34%), África do Sul (20%), Sudão (11%) e República do Congo (8%)16.

Segundo o relatório de 2012 do Standard Bank, naquele ano as importações da China procedentes da África aumentaram 26%, o dobro daquelas provenientes de outras regiões17. Apesar disso, o comércio com a China representa 10% do comércio total do continente africano, enquanto para a China a África representa somente 4% de seu comércio com o mundo.

Investimentos

A atividade econômica da China na África também pode ser constatada nos mais de 720 projetos estratégicos que o país leva adiante em 49 países africanos18. A presença de capitais chineses na África pode ser facilmente notada por sua concentração em setores da economia como a extração de matérias-primas, a construção civil e as telecomunicações. Em várias ocasiões, o capital chinês se associa a empresas locais ou estrangeiras. O petróleo constitui a menina dos olhos e um capítulo à parte. Segundo a Agência Internacional de Energia, em 2030 as importações de petróleo da China serão iguais às dos EUA. Prevê-se que a demanda suba para 14,2 milhões de barris diários, em 202519. Não é por acaso que os maiores investimentos chineses estão localizados nos três maiores produtores: Sudão, Angola e Nigéria.

O salto foi impressionante. Os investimentos da China na África passaram de US$ 911 milhões, no ano 2000, para US$ 68 bilhões, em 201020. Em 2012 os investimentos chineses no continente africano estavam concentrados principalmente na Nigéria (15,4%), Argélia (9,2%), África do Sul (6,6%), República Democrática do Congo (6,5%), República do Níger (5,2%), Egito (3,2%), Líbia (2,6%), Zâmbia (2,4%), Sudão (2,2%) e Etiópia (1,9%)21. Para desenvolver seus investimentos, os chineses criaram 11 centros de promoção, têm uma filial do Eximbank (para financiar importações e exportações) em Cartum, capital do Sudão22 e representações do Bank of China e do China Construction Bank International (CCBI) em Johanesburgo. O CCBI comprou um percentual significativo do Standard Bank, um dos bancos sul-africanos de maior importância e projeção internacional. Os chineses também estão presentes na África Ocidental em aliança com o Ecobank Transnational, um banco pan-africano com filiais em mais de 30 países do continente.

Um ator importante do envolvimento da China na África é a Chinese Communications Construction Company Ltd. (CCCC), a maior empresa chinesa, atuante no setor de construção de portos, pontes e estradas. Os chineses investem nas áreas produtivas e reproduzem na África seu modelo de «regiões econômicas especiais»; exportam a criação de polos industriais com incentivos fiscais e conectados ao mundo, como é o caso da Zâmbia, que será um metal hub. Graças à sua base tecnológica, à sua capacidade de deslocar milhares de trabalhadores para obras em qualquer lugar e à sua extraordinária reserva de dinheiro, a China tem a oportunidade de assumir uma posição de liderança na África com potencial para transformar o continente23.

A cooperação

A China tem experiência para oferecer na área de cooperação agrícola. Deve-se levar em conta que o Ocidente tem dificuldades para contribuir com o desenvolvimento desse setor, o que incide diretamente na qualidade de vida das populações. Nesse sentido, um dos núcleos centrais da FOCAC é a cooperação e a transferência de tecnologia agrícola. No campo da cultura, a China assinou 62 acordos intergovernamentais de intercâmbios culturais e cooperação com 45 países africanos, organizou mais de 200 missões de intercâmbio e participou de centenas de eventos culturais. Além disso, existe uma grande cooperação na área esportiva, em produção de cinema e TV, no setor de meios de comunicação e editorial, bem como na formação e no intercâmbio de profissionais de arte24. Esses últimos pontos nos levam a perguntar se a China tem seu próprio soft power. Para alguns, é uma potência solitária com poucos aliados25, que não tem soft power, uma vez que ninguém quer imitar os chineses, apesar da disseminação dos Institutos Confúcio, encarregados do ensino e difusão do idioma e cultura chinesas. Seu sistema político também não é um exemplo a ser seguido, embora ainda reste a pergunta se não o seria para certas estruturas de poder africanas. Para outros, a China desenvolve soft power quando compartilha certos tópicos culturais com os demais países africanos e demonstra o interesse em colaborar com a formação de seus quadros profissionais, uma vez que as universidades chinesas recebem grande quantidade de estudantes africanos, contribuindo para a formação de técnicos. Da mesma forma, sob esta perspectiva, os Institutos Confúcio são considerados como polos transmissores da cultura chinesa.

Reflexões finais

Considerando-se o que foi exposto, pode-se afirmar que as relações da China com a África introduzam um novo eixo de vínculos, que poderia ser tanto uma associação de benefício mútuo quanto um problema para os países africanos. Longe do perfil ideológico dos primeiros tempos, por trás de um discurso «desenvolvimentista», nesta nova investida predominam os enfoques comerciais e cooperativos, orientados pela necessidade de matérias-primas e novos mercados, por parte da China, e pela necessidade de avançar em um processo de desenvolvimento progressivo, por parte da África.

Numa perspectiva otimista, segundo o discurso chinês, poderia-se argumentar que esta aproximação tem componentes de cooperação que a diferenciam do avanço predatório neocolonial; que os investimentos chineses destinaram-se a áreas abandonadas pelos centros capitalistas e que surgiram em um momento em que, após ser saqueada, a África foi abandonada à sua própria sorte. Também se pode afirmar que foi criado um forte vínculo entre o crescimento chinês – que demanda matérias-primas, sobretudo de petróleo – e o dos países africanos – que necessitam de ajuda e investimentos.

Por outro lado, a partir de uma perspectiva pessimista e talvez temperada por um discurso ocidental «amedrontado», argumenta-se que os chineses não só estão repetindo o modelo neocolonial, mas também estão dotando-o de características ainda mais negativas, ao acrescentar a corrupção como um elemento habitual nas negociações de ambas as partes e ao não colocar em prática um trade off entre ajuda e democracia. Também se observa o perigo de um «imperialismo chinês» em crescimento, argumentando que a imersão da China na África está contribuindo para a desindustrialização e o subdesenvolvimento.

Em alguns países africanos houve protestos contra a destruição das nascentes indústrias locais, que não puderam competir com as importações provenientes da China26. Os críticos afirmam que os imigrantes chineses ocupam os postos de trabalho dos africanos, em detrimento da mão-de-obra local. Também sustentam que, quando se contrata pessoal africano, as medidas de segurança são baixas e os cuidados com o meio ambiente são nulos. Do mesmo modo, argumentam que os chineses levam adiante sua investida econômica somente nos países que possuem os recursos de que necessitam, e abandonam os demais.

A esta altura se poderia perguntar: existe um limite para o crescimento chinês na África? A resposta vai depender da evolução da economia chinesa e das reações dos próprios africanos. Aqui entramos no terreno do corpo normativo que rege o bom funcionamento da sociedade e o exercício da política. É vital que as instituições locais africanas sejam fortalecidas. Muitas delas foram acusadas de corrupção pela condução tanto das relações econômicas com as empresas ocidentais quanto com as chinesas. A fim de prevenir o que Fantu Cheru e Cyril Obi27 chamam «neocolonialismo a convite», é preciso que as autoridades africanas se comprometam a assumir o papel de fiscalizadoras do avanço chinês na África. Desta forma, seria possível evitar a «doença holandesa», que limitaria o continente a exercer apenas o papel de reserva de recursos naturais. Um «bom governo político e econômico», aproveitando a investida chinesa, poderia promover o desenvolvimento dos povos africanos.

  • 1. G. Lechini: «brics e África: a grande incógnita» em Boletim de Economia e Política Internacional No 9, 1-3/2012, pp. 139-150, disponível em http://agencia.ipea.gov.br/images/stories/pdfs/boletim_internacional/120328_boletim_internacional09.pdf.
  • 2. Nos últimos anos, surgiram novos grupos de «emergentes», tais como brics (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), bricet (bric+ Europa oriental e Turquia), bricm (bric + México), brick (bric + Coreia do Sul), Next Eleven (Bangladesh, Egito, Indonésia, Irã, México, Nigéria, Paquistão, Filipinas, Coreia do Sul, Turquia e Vietnã) e civets (Colômbia, Indonésia, Vietnã, Egito, Turquia e África do Sul).
  • 3. Empresas de serviços financeiros, avaliadoras de risco, fundos soberanos.
  • 4. Em 1955, a participação do então primeiro-ministro da China Chou En Lai na Conferência Afro-Asiática de Bandung marcou a primeira aproximação com o continente africano em processo de descolonização. Naquela reunião, ao lado da Índia, os novos Estados africanos foram instados a adotar os cinco princípios da Coexistência Pacífica de Pancha Shila: respeito mútuo da integridade territorial e da soberania; não agressão; não intervenção nas questões internas; igualdade de direitos e oportunidades; e coexistência pacífica. Posteriormente, o próprio Chou En Lai fez um périplo de três meses pela África, entre 1963 e 1964, acompanhando o momento de explosão das independências. Naquela época, a relação sino-africana era predominantemente político-ideológica. A ruptura com os soviéticos «revisionistas» já havia acontecido e a África era vista como um campo propício para ampliar a verdadeira revolução. Mais tarde foi elaborada a Teoria dos Três Mundos, segundo a qual o primeiro e o segundo mundos cabiam aos Estados Unidos e à União Soviética, ambos imperialistas. À China cabia o Terceiro Mundo. O exemplo mais evidente do compromisso chinês foi a construção da Tanzam, a ferrovia entre Tanzânia e Uganda. Entre 1956 e 1977, a ajuda chinesa para a África representou 58% de toda a ajuda que o país destinou ao exterior. Para mais informações, v. Ian Taylor: China’s New Role in Africa, Lynne Rienner, Boulder, 2009, p. 13.
  • 5. Atualmente a China tem uma população de 1,4 bilhão e uma força de trabalho de aproximadamente 937 milhões de trabalhadores. Marcelo Justo: «China, la ‘fábrica del mundo’, necesita mano de obra» em bbc Mundo, 30/1/2013.
  • 6. Organização Mundial do Comércio (omc): «El comercio mundial en 2010 y perspectivas para 2011», comunicado de imprensa No 628, 2011.
  • 7. Williams da Silva Gonçalves: «A presença da China na África» em Nelson A. Jobim, Sérgio W. Etchegoyen e João Paulo Alsina (orgs.): Segurança internacional – Perspectivas brasileiras, fgv, Rio de Janeiro, 2010, pp. 523-538.
  • 8. Hao Su: «Harmonious World: The Conceived International Order in Framework of China’s Foreign Affairs» em Masafumi Iida: China’s Shift: Global Strategy of the Rising Power, The National Institute for Defense Studies, Tóquio, 2009, disponível em www.nids.go.jp/english/publication/joint_research/series3/pdf/3-2.pdf, acessado em 23/5/2011, p.54.
  • 9. Na segunda conferência na Etiópia (2003) foi aprovado o Plano de Ação de Adis Abeba (2004-2006). Na terceira, em Pequim (2006), o presidente chinês Hu Jintao anunciou as «Eight Measures», com vistas a ajudar os países africanos no longo prazo. Entre essas medidas está a criação do Fundo de Desenvolvimento China-África, mais conhecido como Fundo de cad, para estimular e facilitar os investimentos chineses na região. Na quarta conferência ministerial no Egito (2009) foram anunciados novos empréstimos com juros baixos, além de oito novas medidas na área política planejadas para fortalecer as relações com a África. Também foram propostos 100 novos projetos de energia limpa no continente – energia solar, biogás e energia hidroelétrica, joint ventures para a pesquisa científica e tecnológica, intercâmbios culturais e de know-how, e tecnologia voltada ao fortalecimento da capacidade africana para aperfeiçoar sua segurança alimentar. Na reunião de 2012 foram ainda propostos seis pontos com vistas a promover avanços na aliança estratégica.
  • 10. Hu Jintao: «Open Up New Prospects for a New Type of China-Africa Strategic Partnership», Ministério de Relações Exteriores, Pequim, 19/7/2012, disponível em www.fmprc.gov.cn/eng, acessado em 23/5/2013.
  • 11. Garth Shelton: «China, África y Sudáfrica. Avanzando hacia la cooperación Sur-Sur» em Atilio Borón e Gladys Lechini (orgs.): Política y movimientos sociales en un mundo hegemônico. Lecciones desde África, Asia y América Latina, Clacso, Buenos Aires, 2006, p. 344.
  • 12. Chuan Chen, Pi-Chu Chiu, Orr J. Ryan e Andrea Goldstein: «An Empirical Analysis of Chinese Construction Firm’s Entry into Africa», The criocm 2007 – International Symposium on Advancement of Construction Management and Real Estate, Sydney, 8-13 agosto de 2007, disponível em http:crgp.stanford.edu/publications/conference_papers/Chen_Chiu_Orr_Goldstein_Emp_analysis_Chinese_Africa.pdf, acessado em 23/5/2013.
  • 13. Williams da Silva Gonçalves: ob. cit., p. 523.
  • 14. Mbuyi Kabunda (org.): África y la cooperación con el Sur desde el Sur, Casa África, Madri, 2011, p. 8.
  • 15. Susana Garcia de Santangelo: «El poder emergente del Sur: Los brics en el continente africano. Implicancias de la incorporación de Sudáfrica», Documentos de Trabajo No 54, ceid, Buenos Aires, março 2011, p.16, disponível em www.pensamientocritico.org/susgar0412.pdf, acessado em 30/4/2013.
  • 16. Alex Mutebi Mubiru e Balfour Osei: «Chinese Trade and Investment Activities in Africa», em Policy Brief vol. 1 No 4, 29/7/2010, pp. 3-4.
  • 17. Noemí Rabbia: «África en la política exterior china: ¿nuevas potencias, viejos hábitos?», tra­balho apresentado en el iii Simposio Electrónico Internacional sobre Política China, Buenos Aires, março 2013, disponível em www.asiared.com/es/downloads2/noemi-s.-rabbia.pdf, acessado em 23/5/2013.
  • 18. Mbuyi Kabunda (org.): op. cit., pp. 38-39.
  • 19. Marko D. Cimbaljevich: «Chinese Investment in Africa Is Reshaping Development Patterns across the Continent» em Foreignpolicydigest.org, 5/2010.
  • 20. Katarina Kobylinski: «Chinese Investment in Africa: Checking the Facts and Figures», Brie­fing Paper No 7/2012, www.academia.edu/1798405/Chinese_Investment_in_Africa_Checking_the_Facts_and_Figures, julho 2012, p. 3, acessado em 23/5/2013.
  • 21. Entre as empresas chinesas que investiram na África destacam-se a China National Offshore Oil Corporation (cnooc, na Nigéria); a China Petroleum & Chemical Corporation (Sinopec, em Angola); a China Railways Construction (Nigéria); a China National Machinery Industry Corporation (Sinomach, Gabão); a China International Trust and Investment Corporation (citic, Egito); a Aluminum Corporation of China Limited (chalco, Egito); a China Nonferrous Metals Company Limited (Zâmbia); o Minsheng Bank (África do Sul); a Sinosteel (Zimbábue); a China National Petroleum Corporation (cnpc, Níger e Chade); a China Metallurgical and Sinohydro (rdc) e a China Railways Materials (Serra Leoa). Ibíd., p. 7.
  • 22. Ian Taylor: op. cit., p. 39.
  • 23. Serge Michel: «When China Met Africa» em Foreign Policy, 5-6/2008, p. 2.
  • 24. Fonte: «Cultural Exchanges and Cooperation» en focac, www.fmprc.gov.cn/zflt/eng/zfgx/t463750.htm, acessado em 23/5/2013.
  • 25. Esta é, por exemplo, a opinião de David Shambaugh. Ver Patrícia Campos Melo: «‘China é uma potência solitária, sem grandes aliados’, diz especialista americano» en Folha de S. Paulo, 21/5/2013, disponível em www1.folha.uol.com.br/mundo/2013/05/1282132-a-china-e-uma-potencia-solitaria-sem-grandes-aliados.shtml, acessado em 23/5/2013.
  • 26. Ahmed Sule: «bric, Africa Need to Bridge Barriers» em China Daily, 17/6/2011, disponível em www.chinadaily.com.cn/opinion/2011-06/17/content_12723475.htm, acessado em 13/12/2011.
  • 27. F. Cheru e C. Obi: «Africa in the Twenty-First Century: Strategic and Development Challen­ges» em F. Cheru e C. Obi (eds.): The Rise of China and India in Africa: Challenges, Opportunities and Critical Interventions, Zed Books, Londres, 2010, p. 2.
Este artículo es copia fiel del publicado en la revista Nueva Sociedad , Setembro 2013, ISSN: 0251-3552


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