Tema central
NUSO Nº 2021 / Agosto - Setembro 2021

Jair Bolsonaro e a desintegração da América do Sul: um parêntese?

Até este momento de seu mandato, Jair Bolsonaro implementou uma guinada na orientação internacional do Brasil, alinhando-se com os Estados Unidos e abandonando toda pretensão de desempenhar um papel de protagonismo na América do Sul. Que elementos permitem compreender essa mudança na política exterior brasileira e quais são suas consequências para a integração regional

Jair Bolsonaro e a desintegração da América do Sul: um parêntese?

Passados dois anos desde sua chegada à Presidência do Brasil, o governo de Jair Bolsonaro delineou uma mudança na forma de se relacionar com o mundo e a região. Durante os mandatos de Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff, o Brasil havia sido elevado à condição de uma das potências emergentes mais promissoras, formando o grupo dos brics – juntamente com a China, Rússia, Índia e África do Sul –, liderando a criação da União das Nações Sul-Americanas (Unasul) e assumindo um papel de destaque em instâncias multilaterais, como a Organização Mundial do Comércio (omc) e o g-20. Com a crise desencadeada em 2013, no entanto, os conflitos domésticos se agravaram, e o país presenciou o início de um processo de declínio internacional. Após o impeachment de Rousseff, seu sucessor, Michel Temer, anunciou uma «desideologização» da política exterior, promoveu medidas de abertura econômica e reforma trabalhista, estreitou os laços com os Estados Unidos e promoveu um tipo de regionalismo complementar à globalização neoliberal.Diante desse cenário, ainda que Bolsonaro tivesse mantido algumas das orientações herdadas do período Temer, seu governo certamente radicalizou a guinada na política exterior, cujos pontos centrais passaram a ser um alinhamento acrítico com os eua de Donald Trump, uma reivindicação ideológica da soberania e dos valores conservadores em contraposição ao «globalismo» e um desentendimento a respeito da região sul-americana.Até este momento do governo bolsonarista, o Brasil consolidou sua saída da Unasul, abandonou a Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac), assumiu um papel secundário no Grupo de Lima, não demonstrou muito entusiasmo com relação ao Fórum para o Progresso e Desenvolvimento da América do Sul (Prosul) – organismo criado em 2019 para substituir a Unasul – e contribuiu para que a Organização dos Estados Americanos (oea) retomasse um papel ativo na América Latina. Bolsonaro também começou a aventar a irrelevância do Mercado Comum do Sul (Mercosul) e ameaçar a saída do bloco ao reivindicar sua utilidade como mera plataforma «à la carte» para assinar acordos comerciais segundo a conveniência de cada membro. Somam-se a esse ambiente a atitude de confronto com a Argentina logo após a chegada de Alberto Fernández à Presidência, as diferentes abordagens político-sanitárias e a falta de coordenação diante da pandemia de covid-19.Dito isso, buscamos aqui nos concentrar no distanciamento da região proposto por Bolsonaro, dado que o fim da política «sul-americanista» de Brasília não só representa uma das rupturas mais perceptíveis da política exterior brasileira recente, mas também possui implicações concretas para o futuro do regionalismo sul-americano ao intensificar as tendências atuais de fragmentação e desintegração.É considerado um consenso que o Barão de Rio Branco definiu no início do século xx as bases para a construção da identidade internacional brasileira e, com ela, o mito de uma política exterior de continuidades longas e sólidas. Como parte de seu legado, José Maria da Silva Paranhos Júnior iniciou um movimento de «americanização» das relações internacionais, cujo objetivo central era desarticular a concepção de que o Brasil representaria uma exceção na América do Sul devido a seu histórico monárquico e lusitano, e que, em decorrência desse caráter excepcional, deveria se manter isolado da região e privilegiar os vínculos com os eua e a Europa1. Nesse contexto, a política de aproximação com os países vizinhos (que combinou cooperação e rivalidade, especialmente com a Argentina) supôs também uma determinada projeção geopolítica que diferenciava a América do Norte e o Caribe – âmbito de influência dos eua – da América do Sul como esfera de influência propriamente brasileira2. Nos séculos xx e xxi, o «sul-americanismo» se tornaria um elemento central da identidade internacional do país «verde-amarelo»3.Após um breve período nas décadas de 1960 e 1970 em que prevaleceu uma visão mais latino-americana e terceiro-mundista, o retorno da democracia e a vocação integracionista dos anos 1980 voltaram a colocar a América do Sul como a referência territorial da política exterior brasileira. A subordinação estrutural do México aos eua, produto de sua entrada no Tratado Norte-Americano de Livre Comércio (nafta, na sigla em inglês), contribuiria para erodir a perspectiva contra-hegemônica da América Latina. Desde então e até a chegada de Bolsonaro, o Brasil desempenhou um papel de protagonismo nas diversas iniciativas orientadas a consolidar a América do Sul como um espaço político e econômico4. Os pontos de maior destaque dessa política foram a constituição do Mercosul, em 19915; a proposta de formar uma Área de Livre Comércio Sul-Americana (alcsa), em 1993; as cúpulas de presidentes sul-americanos, a expansão do Mercosul e a Iniciativa para a Integração da Infraestrutura Regional Sul-Americana (iirsa); e a criação da Unasul e do Conselho de Defesa Sul-Americano.Porém, se durante as duas primeiras décadas do século xxi o Brasil vinha construindo – nas palavras do então assessor internacional do Partido dos Trabalhadores (pt), Marco Aurélio Garcia – uma «opção sul-americana» como eixo articulador da política exterior, com Bolsonaro ocorreria uma guinada em direção a uma «opção norte-americana» e um abandono da América do Sul como espaço prioritário da projeção internacional brasileira. Dito de outra forma, o governo de Bolsonaro ressignificou o código geopolítico do Brasil, des-sul-americanizando a política exterior para priorizar o âmbito pan-americano promovido pelos eua6. Essa realidade suscita alguns questionamentos. Que elementos permitem explicar a desaparecimento da América do Sul do imaginário geopolítico brasileiro? Um Brasil distante da região gera quais implicações para a integração? Para responder a essas perguntas, propomos desenvolver três fatores explicativos: o alinhamento com os eua, a consolidação de um novo consenso neoliberal e, finalmente, a marginalização do Itamaraty no desenho da política exterior.

Alinhamento e recomposição neoliberal

No transcurso de 15 anos que vai do «Não à alca» até 2016, a América do Sul atravessou um lento porém progressivo processo de construção de autonomia e integração regional. O papel do Brasil no desenho e apoio desse processo coincidiu, além disso, com sua vontade de se tornar global player e se sentar à mesa de negociações com as grandes potências. Em boa medida, isso se traduziu em posturas um tanto revisionistas da ordem internacional e em uma grande exposição em fóruns multilaterais, como a omc, o g-20 financeiro e os brics.Ainda que não se tenha buscado deliberadamente criar tensões com os eua nesse período, o fato é que as relações entre Brasília e Washington se deterioraram com o passar dos anos, especialmente quando foi descoberto em 2013 que agências estadunidenses espionavam Rousseff e a Petrobras. Ao calor dos protestos iniciados nesse mesmo ano contra o governo do pt, a deterioração da relação com os eua coincidiu com a aproximação – política e financeira – dos movimentos sociais de direita com think tanks conservadores do país norte-americano. Esses grupos desempenharam um papel fundamental tanto no impeachment de Rousseff como na posterior vitória de Bolsonaro, apelando a discursos de natureza «antipolítica» e a estratégias de bots e fake news nas redes sociais7. Somam-se a isso os vínculos entre Sergio Moro e promotores envolvidos na operação Lava Jato com o Departamento de Justiça dos eua, que vem promovendo há vários anos treinamentos, programas e iniciativas de luta contra a corrupção na América Latina.Além disso, a forma como o governo de Rousseff abordou a crise venezuelana – baseada no princípio da não intervenção e no apoio a uma mediação diplomática – começou a ser intensamente deslegitimada pela direita brasileira, especialmente após a chegada de Donald Trump à Presidência dos eua. Em meio a esses desdobramentos, a retórica anticomunista se infiltrou no debate político, e iniciativas regionais promovidas pelo pt – como a Unasul – passaram a ser qualificadas pejorativamente como «bolivarianas» e socialistas.Ou seja, o contexto no qual Bolsonaro chega à Presidência já estava marcado por um crescente «americanismo» na sociedade brasileira que incluía uma forte rejeição a tudo que pudesse ser associado à esquerda e endossava novas formas de autoritarismo social contra minorias raciais, étnicas e sexuais8. A cruzada conservadora do bolsonarismo, a grande quantidade de militares no governo e a promessa de choque de capitalismo de livre mercado patrocinada pelo Chicago boy Paulo Guedes sintetizariam bem a nova convergência ideológica entre «americanismo», liberalismo e autoritarismo.O projeto econômico vitorioso nas eleições de 2018 apresentaria uma série de diretrizes antagônicas ao modelo neodesenvolvimentista e de distribuição de renda que marcou em grande medida os governos do pt. Entre os governos de Fernando Henrique Cardoso e Dilma Rousseff, havia sido criado um precário consenso entre o Estado e as elites brasileiras em que a integração sul-americana constituía uma oportunidade de negócios para expandir a indústria de defesa e internacionalizar diversas empresas (especialmente as construtoras), que recebiam crédito barato do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (bndes)9. Surgiram desse projeto regional práticas espaciais concretas, como a formação da iirsa e do Conselho de Defesa Sul-Americano da Unasul.Mas a crise de 2013 pôs fim a esse precário acordo entre Estado e establishment econômico para dar lugar a um novo consenso neoliberal, baseado na retórica da meritocracia e do empreendimento individual em detrimento da construção de cidadania e do desenvolvimento social coletivo. Nesse novo ambiente, Bolsonaro intensificou as medidas indiscriminadas de austeridade, retrocesso em matéria de direitos trabalhistas e abertura econômica iniciadas pelo governo de Temer. Destacam-se entre elas o programa de privatizações (sobretudo no setor de energia), a reforma previdenciária e o fim da política de salário mínimo e de promoção do conteúdo industrial nacional.Dessa forma, os grupos ligados ao agronegócio e ao capital financeiro transnacional – que, vale mencionar, geram pouco emprego e inovação – se transformaram na grande aposta do governo bolsonarista para o crescimento econômico e a modernização do capitalismo brasileiro, estabelecendo como horizonte os modelos do México e do Chile. Nesse sentido, não é por acaso que a primeira visita de Bolsonaro a um país da região tenha sido o Chile e não a Argentina, como marcava a tradição.A consolidação desse novo bloco de poder em favor da abertura econômica teria efeitos concretos sobre o regionalismo e a política sul-americanista do Brasil: muitas das empresas construtoras e industriais, favoráveis à integração, foram praticamente destruídas pela Lava Jato. Isso fez com que elas perdessem peso na estrutura produtiva e, com isso, capacidade de influência sobre o rumo econômico e a orientação da política exterior. Nesse contexto, as classes dominantes passariam a ver com receio a participação nos brics, a aliança estratégica com a Argentina e a priorização do mercado sul-americano, e começariam a pressionar para reorientar a política exterior em direção ao Norte10. Em outras palavras, Bolsonaro passou a representar os setores econômicos que pedem «menos integração» e mais abertura econômica.Em março de 2019, o presidente brasileiro fez sua primeira visita a Washington movido por esse programa de ortodoxia neoliberal e assinou com Trump a Agenda para a Prosperidade, acordo-quadro que fundamentou a política de alinhamento com os eua. No plano político, isso se tornou claro nas críticas ao multilateralismo e no apoio à formação de um tipo de aliança internacional conservadora como contrapartida ao «globalismo». As posturas negacionistas em matéria ambiental, os ataques à Organização Mundial da Saúde (oms), a reprovação da agenda de defesa dos direitos humanos e o abandono do Pacto Global das Nações Unidas para a Migração são exemplos eloquentes do alinhamento com o trumpismo. Essa rejeição ao multilateralismo – que, cabe mencionar, é um fenômeno crescente em vários países da região11 – não só coloca em questão uma tradição arraigada na política internacional latino-americana de apoio às normas e instituições internacionais, mas também aprofunda a fragmentação dos organismos regionais12.No âmbito econômico, Washington e Brasília firmaram diversos acordos sobre facilitação comercial, boas práticas regulatórias e medidas anticorrupção, cujos objetivos são eliminar barreiras não tarifárias e adequar a norma brasileira aos padrões jurídico-administrativos estadunidenses13. Além disso, Bolsonaro renunciou, a pedido de Trump, à condição de «país em desenvolvimento» na omc, abrindo mão do tratamento especial e diferenciado recebido por tais países, e liberou a importação de trigo estadunidense, prejudicando assim a Argentina, seu fornecedor tradicional e sócio estratégico no Mercosul até agora.Todas essas decisões – às quais podemos somar a entrada como membro pleno na Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (ocde) – não só revelam o viés econômico liberal da mudança nas relações com Washington, mas também aprofundam o distanciamento entre o Brasil e os demais países do Sul. Não é por acaso que, até este momento de seu mandato, Bolsonaro tenha feito mais visitas aos eua que a países da América Latina.O cenário regional também se tornou um ponto central da marca assumida pelas relações entre os eua e o Brasil. Desde o início de seu governo, Bolsonaro se subordinou à postura estadunidense com relação à Venezuela, apostando na exclusão do país caribenho e assumindo a linha dura no Grupo de Lima, chegando inclusive a apoiar a possibilidade de uma intervenção militar, finalmente rejeitada pela oposição das Forças Armadas. Não obstante, a agitação do «fantasma venezuelano» passaria a ser uma ferramenta utilizada permanentemente por Bolsonaro e a ala mais ideológica de seu governo, para uso interno, mas também para contribuir para a reeleição de Trump. Por exemplo, a visita do secretário de Estado Mike Pompeo à fronteira entre o Brasil e a Venezuela em setembro de 2020 teve um duplo objetivo: promover Trump entre a população latina do estado da Flórida e, ao mesmo tempo, enfraquecer o governo de Nicolás Maduro, mostrando receptividade à recente onda migratória venezuelana. Algo semelhante ocorreu com a eleição do presidente do Banco Interamericano de Desenvolvimento (bid), na qual o Brasil apoiou a inédita candidatura de um estadunidense. A postura de Bolsonaro aumentou seu distanciamento da tradição diplomática latino-americana, ajudando simultaneamente a consolidar o voto latino anticubano e antichavista favorável ao candidato republicano.Contudo, cabe destacar que os resultados do alinhamento automático com os eua têm sido mais escassos e superficiais até o momento: desde que teve início a guinada «americanista», não houve aumento no investimento direto, e o fluxo comercial com o país do Norte atingiu seu nível mais baixo dos últimos 11 anos. Entre outros aspectos, isso evidencia o caráter fortemente ideológico do vínculo com Washington – ou melhor, com o próprio Trump – e revela uma profunda assimetria, já que o Brasil serve apenas de representante das diretrizes básicas da potência hegemônica enquanto esta reserva para si total autonomia na formulação da agenda regional14.No entanto, a vitória de Joe Biden nas eleições estadunidenses e a demora de Bolsonaro a reconhecê-lo como novo presidente geram dúvidas quanto ao futuro da relação entre esses dois países e a possibilidade de manter um alinhamento sem condicionalidades. Por exemplo, já é possível prever desavenças em temas ambientais, como a preservação da Amazônia, uma frente de conflito que Bolsonaro já tem aberta com os países europeus.

O afastamento do Itamaraty

O terceiro elemento que ajuda a compreender por que Bolsonaro pode empreender um movimento de des-sul-americanização se relaciona com a marginalização do Itamaraty no processo decisório da política exterior. Seguindo o proposto na introdução, outra das heranças mais notáveis do Barão de Rio Branco é o que podemos chamar de o «mito do Itamaraty», isto é, que o Brasil, diferentemente de outros países da região, conseguiu formar um corpo diplomático altamente profissionalizado, com autonomia ante o poder de turno, e que soube configurar uma série de princípios e tradições que permaneceram inalteradas ao longo do tempo. Desse ponto de vista, as etapas de descontinuidade na política exterior brasileira coincidiram com momentos em que a Chancelaria foi relegada na condução das relações exteriores15. A corporação diplomática foi fundamental na construção do discurso geopolítico que posicionou a América do Sul como o polo prioritário da política regional do Brasil. Segundo Luiz Felipe Lampreia, ministro das Relações Exteriores de Cardoso, o Itamaraty foi o ator que começou a operacionalizar, no início da década de 1990, o conceito de América do Sul como o espaço preferencial para articular a integração com os países vizinhos16. Tanto é assim que as referências à identidade sul-americana se tornaram constantes na linguagem diplomática brasileira e as iniciativas institucionais, como a criação da Unasul, foram também uma expressão dos interesses e objetivos do Itamaraty17. Nesse sentido, seria buscada a alternativa sul-americana como uma opção de longo prazo e não um programa de um determinado governo.No entanto, é preciso mencionar também que a autonomia e a centralidade do Itamaraty no processo de elaboração da política exterior vêm perdendo força há vários anos, seja por disputas entre diferentes grupos dentro do corpo diplomático, por um aumento da diplomacia presidencial18 ou pela crescente concorrência de atores – estatais e não estatais – em temas internacionais19. Embora tenha havido uma tentativa de restabelecer o lugar tradicional do Itamaraty durante a gestão de Temer, apelando para uma suposta desideologização da política exterior, a verdade é que não foram obtidos muitos avanços. De fato, os dois chanceleres daquele governo – José Serra e Aloysio Nunes – foram os primeiros não provenientes do próprio Itamaraty em mais de 15 anos.

Por tudo isso, podemos afirmar que Bolsonaro recebeu um terreno fértil para avançar sobre o corpo diplomático e aprofundar seu afastamento da condução das relações exteriores. Com o impulso da ala ideológica – na qual se destacam Eduardo Bolsonaro, o «guru» presidencial Olavo de Carvalho, o chanceler Ernesto Araújo e o assessor presidencial Filipe Martins –, o governo implementou uma série de reformas institucionais no Itamaraty que possibilitaram que pessoas não pertencentes à carreira diplomática ocupassem cargos-chave e reforçaram o setor mais antiglobalista da Chancelaria. Em sua cerimônia de posse como ministro, Araújo, até então chefe do Departamento dos eua, deixou clara a intenção refundadora do corpo diplomático ao declarar que «o presidente Bolsonaro está libertando o Brasil, e nós vamos libertar o Itamaraty»20.Duas medidas simbolizam o avanço do governo sobre a diplomacia, o afastamento da região e a priorização do vínculo com os eua: por um lado, a eliminação da Subsecretaria da América Latina e do Caribe, cujas funções foram transferidas para a nova Secretaria das Américas; por outro, a decisão de retirar a matéria História dos Países da América Latina do curso de formação diplomática do Instituto Rio Branco e aumentar a carga horária dos cursos dedicados à «cultura clássica ocidental»21.

A intervenção bolsonarista, contudo, abriu uma inédita frente de conflito entre o governo e os diplomatas, que não demoraram a manifestar suas críticas à política exterior do governo em entrevistas, debates, conversas e documentos. Os pontos mais questionados seriam o alinhamento automático com Trump, a política ambiental, a reivindicação da ditadura militar e a rejeição ao multilateralismo, além do abandono de uma política ativa para a América do Sul.

Um piromaníaco em uma região em chamas

Bolsonaro chegou à Presidência em um momento no qual a integração sul-americana já se encontrava em crise. Na verdade, o processo de dissolução da Unasul havia começado em abril de 2018, quando os governos da Argentina, Brasil, Chile, Colômbia, Paraguai e Peru suspenderam sua participação no organismo. Pode-se dizer inclusive que boa parte dos problemas do bloco sul-americano data da época em que ainda predominavam os governos progressistas.Algo semelhante ocorre com as instâncias econômicas regionais, como o Mercosul. O comércio entre os países do bloco vem sofrendo uma queda progressiva desde 2011, alimentando as dinâmicas centrífugas e reduzindo o interesse dos atores econômicos em apostar no mercado regional. Nesse sentido, as tendências à abertura e à flexibilização – simbolizadas nos apelos de «fazer convergir» o Mercosul com a Aliança do Pacífico (ap), habilitar as negociações individuais com países terceiros e revisar a união aduaneira – também surgiram na etapa do regionalismo pós-neoliberal. No caso brasileiro, a postura favorável a assinar o acordo ue-Mercosul sob uma lógica de «duas velocidades» e a aproximação com a ap ocorreram durante o governo de Rousseff e foram se aprofundando após a crise econômica. Como já mencionado, as transformações na estrutura produtiva e a ascensão dos setores mais transnacionalizados da economia explicam em grande medida essa mudança de posicionamentos no Estado brasileiro e a perda de centralidade do projeto sul-americano em termos autonômicos e desenvolvimentistas.Em meio a esse cenário, seria possível dizer que a chegada de Bolsonaro aprofundou as tendências de desintegração preexistentes a ponto de levá-las à beira da ruptura. No caso do Mercosul, ainda que o presidente brasileiro tenha deixado de lado a ideia – esboçada no início de seu mandato – de abandonar o bloco, sua visão do Mercosul passou a ser estritamente utilitarista e comercialista, mesmo que isso coloque em risco a associação estratégica com a Argentina. Enquanto o governo de Alberto Fernández convoca a fortalecer a institucionalidade e os vínculos econômicos entre os membros do bloco, o governo brasileiro busca um Mercosul reduzido a sua expressão mínima e propõe diminuir a tarifa externa comum, revogar a norma que impede de comercializar individualmente com outros países e conduzir uma reforma institucional que minimize a estrutura do organismo. Além disso, o governo brasileiro praticamente deixou de contribuir para o Fundo para a Convergência Estrutural do Mercosul (focem), o que marca o abandono por parte do Brasil da agenda de desenvolvimento e redução de assimetrias entre os países do bloco22.Por outro lado, cabe acrescentar o efeito negativo gerado pela pandemia de coronavírus sobre os processos de integração. Até o momento, os acordos no Mercosul se limitaram a declarações de intenções e à aprovação de um aporte de 16 milhões de dólares para um projeto de pesquisa biotecnológica. Algo similar ocorreu no Prosul: desde março de 2020, os presidentes do bloco emitiram várias declarações nas quais se comprometeram a estabelecer medidas de coordenação e compras conjuntas de insumos médicos, destacando a importância do multilateralismo e dos organismos regionais para obter um acesso universal à vacina contra a covid-19. No entanto, as tentativas de coordenação entram em choque com as diferentes abordagens sanitárias de cada país. A postura negacionista do governo brasileiro, suas críticas às recomendações da oms e a recusa a adquirir vacinas fabricadas na China marcam um limite concreto para as possibilidades de articular medidas coordenadas entre os países sul-americanos.A isso cabe acrescentar que a política de depredação da Amazônia tem sido contraproducente para o projeto de regionalismo proposto por Bolsonaro. Os principais membros da ue já deixaram claro que, se o Mercosul não assumir um maior compromisso ambiental, não haverá progressos na assinatura do acordo birregional. Do mesmo modo, a postura soberanista e refratária do governo brasileiro em temas ambientais também estabelece um limite para avançar em acordos dentro do Mercosul em questões relativas a essa matéria.Seja como for, a crise do Mercosul é bastante mais profunda, e sua resolução não passa por aumentar as conquistas em áreas específicas, reformar o desenho institucional ou coordenar medidas de combate à pandemia23. O bloco atravessa uma crise de identidade na qual seus países membros devem definir se mantêm o espírito do Tratado de Assunção ou se modificam seu leitmotiv para torná-lo algo semelhante à Aliança do Pacífico.Em suma, podemos concluir que, ao desarmar o projeto sul-americanista e se afastar da região, Bolsonaro acaba assumindo sem nenhum tipo de questionamento o imaginário geopolítico tradicional da América Latina, isto é, segundo Heriberto Cairo, o imaginário de uma região periférica no sistema-mundo, marginal nos modelos geopolíticos dominantes e subordinada ao projeto pan-americano conduzido pelos eua24. No entanto, alguns movimentos da conjuntura recente podem afetar os três fatores que desenvolvemos aqui para explicar a des-sul-americanização do Brasil.Em primeiro lugar, a saída de Trump da Casa Branca coloca em sérias dificuldades a postura antiglobalista de Bolsonaro. E, embora a prioridade do vínculo com Washington seja compartilhada por todos os atores que formam a coalizão de governo (inclusive as Forças Armadas), a verdade é que a relação especial que Bolsonaro tentou construir chegou muito provavelmente a seu fim. Isso pode pressionar o governo a rever sua política e se aproximar da região. É possível que Bolsonaro tente agradar a administração Biden substituindo Araújo do comando da Chancelaria. Se isso ocorrer, pode permitir que a diplomacia do Itamaraty recupere algum protagonismo no desenho da política exterior e que o Brasil retome algumas de suas bandeiras históricas em matéria internacional.Finalmente, os resultados desfavoráveis obtidos pelo bolsonarismo nas eleições municipais de novembro de 2020 e o crescimento dos partidos do «centrão» podem levar o governo a adotar um posicionamento mais pragmático; por exemplo, reduzindo o nível de confrontação com a Argentina. De fato, temos visto ultimamente que não falta a Bolsonaro pragmatismo no momento de manter sua base de poder: por exemplo, limitou as visões ultraliberais de Guedes em favor de uma renda cidadã para sustentar o consumo popular durante a pandemia e, ao mesmo tempo, disputar a base lulista no nordeste do país.Seja como for, vale destacar que a integração sul-americana não depende unicamente da dinâmica política brasileira. Reverter ou, de qualquer modo, atenuar a política incendiária de desintegração de Bolsonaro requer também que outros atores – estatais e não estatais – dos países da região se movam no sentido da construção de algum entendimento regional que possa conter e equalizar as diferenças.

  • 1.

    Clodoaldo Bueno: A República e sua política exterior (1889 a 1902), Editora UNESP, São Paulo, 1995.

  • 2.

    Luiz Alberto Moniz Bandeira: «A integração da América do Sul como espaço geopolítico» em Geopolítica e política exterior: Estados Unidos, Brasil e América do Sul, FUNAG, Brasília, 2010.

  • 3.

    Celso Lafer: A identidade internacional do Brasil e a política externa brasileira: passado, presente e futuro, Editora Perspectiva, São Paulo, 2001.

  • 4.

    Javier Vadell e Clarisa Giaccaglia: «El rol de Brasil en el regionalismo latinoamericano. La apuesta por una inserción internacional solitaria y unilateral» em Foro Internacional vol. 60 No 3, 2020.

  • 5.

    Nas negociações do Tratado de Assunção, a delegação brasileira recusou a proposta de que o novo organismo se chamasse «Mercado Comum do Cone Sul», pois não queria limitar a projeção do plano integracionista para o restante do subcontinente.

  • 6.

    Um código geopolítico é um conjunto de supostos estratégicos sobre outros Estados que um governo elabora para orientar sua política exterior, identificando as potenciais ameaças, os temas de agenda e instituições sobre os quais se deseja intervir politicamente. Peter Taylor e Colin Flint: Geografía política: economía mundo, Estado-nación y localidad, Trama, Madri, 2002.

  • 7.

    Camila Rocha: «Los think tanks promercado y las fuentes ideológicas de Bolsonaro» em Nueva Sociedad edição digital, 1/2019, www.nuso.org.

  • 8.

    Ezequiel Ipar: «Neoliberalismo y neoautoritarismo» em Política y Sociedad vol. 55 No 3, 2018.

  • 9.

    Matias Spektor: «Diplomacia da ruptura» em Sérgio Abranches et al.: Democracia em risco? 22 ensaios sobre o Brasil hoje, Companhia das Letras, São Paulo, 2019.

  • 10.

    Amanda Barrenengoa: «De la unidad suramericana a la fragmentación regional: contradicciones en la Unasur a partir de las políticas de los gobiernos lulistas y las tensiones con las clases dominantes» em Conjuntura Austral vol. 11 No 56, 2020.

  • 11.

    Alguns exemplos são as recentes críticas ao sistema interamericano de proteção de direitos humanos na Colômbia e no Paraguai, ou a recusa do governo do Chile a assinar o Acordo de Escazú, que amplia os direitos de acesso à informação e a participação pública em questões ambientais.

  • 12.

    Alberto van Klaveren: «La crisis del multilateralismo y América Latina» em Análisis Carolina No 10, 2020.

  • 13.

    Ana Paula Fonseca Teixeira, Gabriel Soprijo, José Luís de Freitas e Tatiana Berringer: «Governo Bolsonaro celebra acordos ainda incertos com os EUA», Observatório da Política Externa e da Inserção Internacional do Brasil (OPEB), 31/10/2020.

  • 14.

    Gisela Pereyra Doval e Emilio Ordoñez: «De pivote a proxy» em Foreign Affairs Latinoamérica, 19/6/2020.

  • 15.

    Maria Regina Soares de Lima: «Ejes analíticos y conflicto de paradigmas en la política exterior brasileña» em América Latina/Internacional vol. 1 No 2, 1994.

  • 16.

    L.F. Lampreia: «Brasil lidera continente sem imposição» em Correio Braziliense, 24/8/2000.

  • 17.

    Detlef Nolte e Nicolás Comini: «Unasur: Regional Pluralism as a Strategic Outcome» em Contexto Internacional vol. 38 No 2, 2016.

  • 18.

    Octavio Amorim Neto e Andrés Malamud: «The Policy-Making Capacity of Foreign Ministries in Presidential Regimes: A Study of Argentina, Brazil, and Mexico, 1946-2015» em Latin American Research Review vol. 54 No 4, 2019.

  • 19.

    Dawisson Belém Lopes e Camilo López Burian: «La política exterior brasileña del siglo XXI: un cambio epocal» em Diego Abente Brun y Carlos Gómez Florentin (eds.): Panorama de las relaciones internacionales en el Paraguay actual, Universidad Nacional de Asunción, Assunção, 2018.

  • 20.

    Paulo Silva Pinto: «‘Nós vamos libertar o Itamaraty’, diz novo chanceler em cerimônia de posse» em Correio Braziliense, 2/1/2019.

  • 21.

    «Ernesto Araújo exclui curso sobre América Latina de formação de diplomatas» em Folha de S. Paulo, 16/2/2019.

  • 22.

    Em 2016, o Brasil vinha realizando aportes de aproximadamente 100 milhões de dólares anuais; em 2018, não fez nenhum aporte e, em 2019, anunciou-se uma contribuição de apenas 12 milhões de dólares.

  • 23.

    José Briceño-Ruiz e Andrea Ribeiro Hoffmann: «The Crisis of Latin American Regionalism and Way Ahead» em Bettina De Souza Guilherme, Christian Ghymers, Stephany Griffith-Jones e A. Ribeiro Hoffmann (eds.): Financial Crisis Management and Democracy, Springer, Cham, no prelo.

  • 24.

    H. Cairo: «A América Latina nos modelos geopolíticos modernos: da marginalização à preocupação com sua autonomia» em Caderno CRH vol. 21 No 53, 2008.

Este artículo es copia fiel del publicado en la revista Nueva Sociedad 2021, Agosto - Setembro 2021, ISSN: 0251-3552


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