Opinión
diciembre 2023

«Que se danem todos»

Por que o Chile voltou a dizer «não»

Disponible en español

Pela segunda vez, o eleitorado chileno rejeitou um texto constitucional. Se em 2022 o texto foi rechaçado por estar «muito à esquerda», este foi rejeitado por estar «muito à direita». Por trás disso não há uma exigência de mero «centrismo», e sim um clima subjacente de «Fora todos os políticos». Esse resultado desorganiza a casa da direita e atinge fortemente as ambições presidenciais do radical José Antonio Kast, embora não coloque em ordem a casa da esquerda.

<p>«Que se jodan todos»</p>  Por qué Chile volvió a decir «no»  ​

Nos últimos tempos, o Chile, que costumava ser visto como uma exceção estranha e entediante à política latino-americana, tornou-se foco de atenção devido à intensidade de suas disputas eleitorais. Estas confirmaram uma mobilização social antipolítica implacável. O resultado do último plebiscito constitucional, realizado em 17 de dezembro, confirma essa realidade. Na consulta, em que o eleitorado chileno teve que escolher entre a favor e contra o projeto constitucional pela segunda vez em menos de dois anos, 55,7% das pessoas votaram pelo não e 44,2% pelo sim.

Não há registro de um caso como esse, em que um processo constitucional tenha terminado em duas consultas populares com resultados adversos. Em muitos aspectos, o que aconteceu no Chile é excepcional, mas, ao mesmo tempo, parece dar algumas pistas sobre o aprofundamento de uma tendência política regional. Dois momentos (e duas imagens) permitem sintetizar esse processo.

Momento 1. No já distante março de 2021, o país estava imerso na campanha eleitoral para eleger seus representantes na Convenção Constitucional, órgão encarregado de redigir uma proposta de nova Carta Magna em substituição à redigida em 1980 e parcialmente reformada durante a transição democrática. Tal como estabelece a legislação chilena, as diferentes forças políticas tinham o direito de comunicar suas mensagens num espaço televisivo gratuito: a chamada «faixa eleitoral». Entre os muitos candidatos e spots da TV, houve sem dúvida um que atraiu todas as atenções. Era uma mensagem com fundo preto na qual celebridades e renomados atores e atrizes nacionais chamavam as pessoas a votar numa lista de candidatos independentes: a chamada Lista do Povo. Sua mensagem foi absolutamente clara:

«Sem empresas, sem triangulações, sem mentiras, sem armadilhas, sem partidos políticos (…) para salvar a nova Constituição dos mesmos de sempre. Esses partidos que sequestraram a política (…) sequestraram nossa felicidade. Você sente que ninguém te representa e que são todos uns vendidos? Junte-se a nós neste 11 de abril para votar na Lista do Povo».

Quando chegaram as eleições, a lista teve um resultado espetacular, que marcaria o primeiro processo constituinte. Um processo com grande protagonismo de forças de esquerda independentes que acabaria produzindo uma proposta de Constituição de vanguarda em vários aspectos cruciais para o progressismo. Mas a proposta acabaria sendo rejeitada de forma esmagadora num plebiscito pouco mais de um ano depois, com apenas 38% de votos a favor (a mudança do voto facultativo para obrigatório parece ter acentuado o resultado adverso).

Momento 2. Em dezembro de 2023, o Chile estava novamente em processo eleitoral. Desta vez, foi votada uma proposta constitucional redigida por um novo órgão, eleito após o fracasso da Convenção Constitucional original. Neste segundo processo, um órgão com claras maiorias de direita e extrema direita havia elaborado um texto que era exatamente o oposto da proposta de 2022. Um texto maximalista e com vários elementos programáticos fundamentais para a direita, como a constitucionalização de isenções tributárias, o papel predominante do mercado na prestação de bens e serviços públicos, e uma concepção conservadora da pátria e do patriotismo, entre muitos outros.

Ao contrário do texto anteriormente rechaçado, cujos promotores se mostraram confiantes em  sua aprovação até o último momento, a nova proposta conservadora aparecia majoritariamente rejeitada em todas as pesquisas. Diante dessa realidade e com medo de sofrer o mesmo destino do primeiro processo constituinte, o mundo da direita abandonou uma estratégia de comunicação inicial centrada na defesa do texto. Nesse contexto, no spot mais impactante da faixa televisiva, aparecia a seguinte mensagem na voz dos cidadãos chilenos, entre bandeiras nacionais e imagens do país em chamas:

«Aqueles que queimaram um país inteiro para ter uma nova Constituição querem agora deixar a que existe. Querem manter tudo como está (…) Aqueles que ficaram famosos por exigir uma educação de qualidade para todos estão agora no poder. E o que fizeram? Aqueles que acreditavam que o Chile seria curado com incêndios nas ruas agora querem continuar com a Constituição existente (…) Eu vou votar a favor. E que se danem».

A mensagem era adornada com a estética da direita, mas tinha inegáveis semelhanças com a da Lista do Povo: a unidade da população contra uma política que defendia o status quo. O «que se danem» aparecia como um eco da mensagem da Lista do Povo contra os «mesmos de sempre» que não queriam mudar nada, e depois desse spot o lema continuou sendo utilizado pela direita. Duas campanhas dirigidas a partir de espaços opostos do espectro político, mas unidas pelo mesmo mandato: o mandato de destituir «os políticos».

O segundo processo constituinte

A discussão em torno do segundo processo constitucional foi marcada por vários elementos que explicam seu desfecho. O fracasso do processo anterior envolveu um esforço consciente e sustentado para garantir que desta vez fosse «diferente». Mas esta segunda tentativa nunca interessou significativamente os cidadãos que, de acordo com as pesquisas de opinião, permaneceram em grande parte alheios e céticos. Por fim, observou-se uma crescente presidencialização do novo processo constitucional, à medida que a pré-candidatura de José Antonio Kast, candidato da extrema direita, associava-se cada vez com mais força à nova proposta de texto constitucional. E o voto a favor aparecia ao mesmo tempo como um voto plebiscitário contra o governo de Gabriel Boric.

Desse modo, é possível dividir o segundo processo em três etapas: a lua de mel consensual, a «Kastituição» e o «Que se danem».

Quando o primeiro projeto de nova Constituição foi rejeitado, uma das interpretações repetidas foi a de que a Convenção Constitucional havia falhado porque tinha ido ao extremo (da esquerda) e que, portanto, para ter um novo processo bem-sucedido era necessário garantir maiores níveis de acordo. A mensagem da centro-direita seguia nessa direção. Seus lemas de campanha contra a primeira proposta constitucional foram a favor de «uma [Constituição] que nos una» e «uma com amor», fazendo referência ao mandato de unir as diferentes visões do Chile e não ficar como defensores do texto de 1980. Ou seja, foi uma campanha centrada na crítica ao primeiro processo constitucional por ter se deslocado demais para a esquerda e deixado de fora amplos sectores da sociedade.

Em linha com esta visão, 77% dos chilenos afirmavam preferir acordos, mesmo que isso significasse ceder em determinadas questões. Ao mesmo tempo, 61% percebiam que não era isso que havia acontecido. De fato, segundo a pesquisa Cadem, a rejeição ao primeiro texto foi majoritária entre os que se identificavam com a direita, no centro e entre os que não se identificavam com o eixo esquerda-direita. Além disso, no final do processo, aumentou a já elevada demanda de que especialistas redigissem o texto constitucional, que passou de 63% para 80%. 

Essa convicção traduziu-se na formação de uma Comissão de Especialistas, designada pelo Congresso, que refletia a diversidade ideológica das forças políticas chilenas. Esses especialistas foram encarregados de redigir um «anteprojeto» que serviria de insumo para a discussão que os representantes eleitos teriam posteriormente para redigir a nova Constituição. Talvez o melhor exemplo da força dessa «lua de mel» consensual tenha sido o fato de que a comissão conseguiu aprovar o projeto de forma unânime, com o voto da direita mais radical e do Partido Comunista. Essa conquista surpreendente contrastou com a dificuldade que a política chilena tem tido de chegar a um acordo sobre quase todas as reformas significativas (como a da saúde e a da previdência), o que paralisou as discussões ao longo da última década.

No entanto, as expectativas de confluência colidiram com um muro quando foi finalmente realizada a votação para eleger os membros do novo Conselho Constitucional, que considerariam o anteprojeto dos especialistas como um insumo não obrigatório. O resultado das eleições de 7 de maio de 2023 foi um duro golpe para o novo otimismo das forças moderadas. A centro-direita obteve um resultado bem abaixo das suas expectativas, e a centro-esquerda não conseguiu eleger um único representante. Esta última derrota foi especialmente dolorosa, pois a lista de candidatos estava repleta de figuras históricas ilustres da política chilena da transição, com grande presença de ex-ministros e ex-parlamentares. Sem dúvida, os grandes vencedores dessas eleições foram os candidatos de extrema direita do relativamente novo Partido Republicano de Kast. Assim, nem a moderação nem a experiência venceram.

O peso da direita – tradicional e radical – fez com que a nova Constituição pudesse ser aprovada sem um único voto do centro, da centro-esquerda ou da esquerda. Mais do que isso: a extrema direita obteve poder de veto sobre qualquer artigo que fosse discutido. A mesma direita que se opunha à ideia de ter uma nova Constituição – já que defendia a de 1980 – de repente se viu no comando da redação do novo texto.

A mudança de tom do debate constitucional desde aquele momento foi muito notória. Quando o novo Conselho Constitucional foi instalado, sua presidente, a conselheira do Partido Republicano Beatriz Hevia, repetia com insistência sobre a importância da unidade e dos acordos. Mas no discurso de encerramento deste mesmo órgão, quando o documento foi entregue para ser plebiscitado, a frase central do discurso final da mesma conselheira foi que esta seria uma Constituição para os «verdadeiros chilenos». A lua de mel consensual havia terminado e, em seu lugar, a nova Constituição trazia a marca indelével do Partido Republicano e, sobretudo, do seu candidato presidencial José Antonio Kast. Se o destino da aprovação no primeiro processo pareceu por vezes ligado ao apoio ao presidente Gabriel Boric, no segundo processo o apoio ao novo texto moveu-se em paralelo com o apoio a Kast, que conseguiu reunir em torno de si (e da proposta constitucional) toda a centro-direita e sufocar as poucas vozes de resistência  ainda existentes.

O problema era que as pesquisas mostravam sistematicamente uma rejeição maioritária ao segundo texto constitucional. À medida que as forças políticas decidiam entre a favor e contra, ficava cada vez mais claro que associar uma destas posições a uma força política era mais um fardo do que um apoio. Conscientes disso, as forças de centro-esquerda enfatizavam o vínculo do texto constitucional com Kast. A ideia de que se tratava de uma «Kastituição», e de um plebiscito para a candidatura presidencial de Kast, acabou sendo um forte obstáculo à campanha a favor. A «Kastituição» não conseguia convencer.

Diante das previsões negativas das pesquisas, a campanha a favor apostou numa nova mudança de estratégia discursiva que se refletiu no seu espaço televisivo. Tentando tirar o foco da futura candidatura de Kast, buscou capitalizar o sentimento antipolítica da população, associando o contra ao governo e, em geral, à política. Não isenta de controvérsias internas, a centro-direita deixou de pedir «uma [Constituição] com amor» a dizer «que se danem» na reta final da campanha, com claras intenções polarizadoras.

A guinada na comunicação parece ter dado resultado. Em geral, as pesquisas pareciam mostrar que, à medida que o a favor se afastava da discussão sobre a proposta constitucional e se apresentava como uma rejeição ao governo e à política, aumentava a visão favorável à nova Constituição. Por exemplo, após essa guinada comunicacional, a pesquisa Cadem mostrou um aumento do a favor de 40% (onde havia se estancado) para 46% em 7 de dezembro (que foi a última pesquisa disponível antes das eleições). Além disso, poucos dias antes do plebiscito, uma tempestade perfeita de fatos importantes, que incluiu as detenções de dois representantes do governo por acusações de corrupção (caso de transferências de dinheiro para a fundação Democracia Viva) e a prisão de um indultado de 2019, acusado de sequestro, acabou consolidando um clima de protesto antigovernamental. Nunca se saberá a quantidade de votos mobilizados em consequência desses acontecimentos de última hora, mas o que é inegável é que o contexto imediatamente anterior ao plebiscito não poderia ser mais favorável à estratégia do «que se danem».

Afinal, o que os chilenos querem?

Para além do que aparece nas urnas, as eleições sempre envolvem muitas questões ao mesmo tempo. Isto é especialmente certo numa votação onde o que está em jogo é um texto jurídico complexo e extenso como uma Constituição. Por isso, não gera surpresa que, tanto na primeira rejeição como na segunda, fatores contextuais que extrapolavam o debate constitucional tenham desempenhado um papel importante.

São dois os marcos de interpretação que definiram a política chilena na última década e que nos permitem compreender os resultados eleitorais recentes. Primeiro, uma disputa tradicional que poderia ser classificada como intrapolítica. Ou seja, em termos gerais, a primeira proposta constitucional foi percebida como de esquerda, enquanto a segunda foi percebida como de direita. De forma coerente com esta interpretação, as pesquisas mostraram um apoio muito majoritário à primeira proposta entre aqueles que se identificam com a esquerda, mas não em todos os outros setores ideológicos da sociedade, e a segunda proposta constitucional teve entre aqueles identificados com a direita o único setor ideológico onde se observava uma clara maioria de apoio.

O problema com esse quadro interpretativo é que pode ser insuficiente. Isto é especialmente verdade dado o progressivo abandono pela população chilena dos marcos ideológicos tradicionais da política. Segundo dados do Centro de Estudos Públicos, a percentagem de pessoas que se identificavam com um partido caiu de 53% da população em 2006 para 19% em 2019. Da mesma forma, a percentagem de cidadãos identificados com algumas das posições do eixo esquerda-direita caiu de 88% na década de 1990 para apenas 38% em 2019. Ou seja, para além das preferências de quem se identifica com a esquerda ou com a direita, a enorme maioria dos chilenos não se identifica com nenhuma das duas; o que os mobiliza é um marco anti ou extrapolítico. Essa situação foi exacerbada pelo fato de o primeiro plebiscito constitucional ter coincidido com a implementação do voto obrigatório no Chile, o que trouxe a incorporação de quatro a cinco milhões de novos eleitores, com baixos níveis de relação histórica com a política.

Assim, a pesquisa do Centro de Estudos de Conflito e Coesão Social (COES) mostra um novo universo de eleitores ainda menos identificados com o eixo esquerda-direita, com uma visão mais antielitista e com posições mais tradicionalistas ou conservadoras no que diz respeito aos erroneamente chamados «temas sociais». Por outro lado, a pesquisa UDD mostra que esses novos eleitores tendem a ser mais religiosos e a dar mais importância à sua religião. Em questões como a ordem e a segurança pública, o aborto e a diversidade sexual, esses eleitores apresentam posições tipicamente associadas ao conservadorismo chileno, mas enquadradas num forte antielitismo e numa identificação muito baixa com espaços de mediação política. Esses novos eleitores, de acordo com um estudo recente de David Altman et al. (2023), inclinaram-se de forma esmagadora pela rejeição no primeiro processo. Ou seja, em termos do marco interpretativo que mobiliza esses novos eleitores, foi possível explicar seu voto tanto por um sentido antipolítico como por preferências ideológicas mais tradicionalistas.

A vitória do contra enterra definitivamente a ideia de que só apelando aos seus posicionamentos tradicionalistas a direita poderia convocar esses eleitores sem assumir que seu sentido antipolítico aponta tanto para ela como para a esquerda. Em outras palavras, nesta eleição os eleitores chilenos parecem ter dito «Sim, que se danem», mas acrescentaram «Que se danem todos». Nem a direita nem a esquerda parecem capazes de conduzir esse sentido antipolítico.

E agora? Os paralelos com o «Fora todos os políticos»

O resultado do plebiscito marcará os próximos passos eleitorais rumo às eleições presidenciais de 2025. Por um lado, a centro-direita havia se rendido completamente a Kast. Após o plebiscito, o desconforto dos setores liberais e institucionalistas aumentará e provavelmente se traduzirá em algumas tentativas de rebeldia.

Nos partidos de direita, a derrota do texto desorganiza a casa e permite o surgimento de lideranças mais moderadas; em particular, surgiu a figura da prefeita Evelyn Matthei, que manteve uma posição de apoio muito mais morna à proposta constitucional – quase sem fazer campanha – e vem se consolidando como a alternativa moderada a Kast.

Por outro lado, o governo e a esquerda enfrentam um cenário que torna muito difícil a execução de sua agenda. Embora o resultado possa ter freado uma recuperação da extrema direita, também consolida o ambiente antipolítico. A pior coisa que poderiam fazer é interpretar isto como um apoio às suas ideias, como fez a direita com sua maioria no Conselho Constitucional. No fim das contas, o contra da esquerda foi uma posição muito incômoda, pois ao triunfar fica em vigor a «Constituição de Pinochet» que, embora muitas vezes reformada, foi um dos alvos dos protestos de 2019.

O debate constitucional estava condenado a terminar como terminou, ou poderia ter sido alcançada uma trégua das elites com apoio popular? Uma pista para responder a essa pergunta é que, uma vez concluída a discussão constitucional, os atores mais bem  avaliados foram os especialistas que tiveram um papel no início e chegaram a um acordo transversal. A antipolítica também tem sua versão «especializada» ou técnica. O sentimento antipolítico não é o mesmo que o sentimento antielite. Muitos se perguntarão hoje se era possível, de alguma forma, sustentar a lua de mel consensual que marcou o início do processo.

Em qualquer caso, a via constitucional para canalizar o mal-estar social termina num aparente beco sem saída. Em outras palavras, o mal-estar continua, mas o cartucho constitucional acabou de queimar sem alcançar o resultado esperado após a eclosão de 2019. Em vez de alcançarem a estabilidade baseada num novo pacto social inclusivo, é provável que as próximas eleições aprofundem ainda mais a complexa situação da política nacional. O Chile pode estar se aproximando de um momento similar ao do «Caiam fora todos os políticos» da Argentina. Afinal, «caiam fora» e «que se danem» não parecem muito diferentes.

Tradução: Eduardo Szklarz 




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