Tema central
NUSO Nº 305 / Mayo - Junio 2023

Deus acima de todos?

Religião e eleições no Brasil (2018-2022)

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A interação entre política e religião é fundamental para entender o que aconteceu no Brasil nas últimas eleições. Se o voto evangélico conservador garantiu a vitória de Jair Bolsonaro em 2018, o dos católicos e das pessoas que se declaram sem religião parece ter sido decisivo na vitória apertada de Luiz Inácio Lula da Silva em 2022.

¿Dios por encima de todos?  Religión y elecciones en Brasil (2018 y 2022)

No Brasil, como na maioria dos países da América Latina – mas não somente neles –, sempre houve uma aproximação entre igrejas e Estado, religião e política, sobretudo no período eleitoral, quando tende a ocorrer uma «instrumentalização mútua entre religião e política»1. No entanto, nas duas últimas campanhas presidenciais brasileiras, de 2018 e de 2022, observou-se uma exacerbação dessa relação no Brasil. Minha sugestão é que este fato está relacionado à visão de mundo da qual é portadora uma extrema direita político-religiosa que ascendeu nos últimos anos no país e que apoiou fortemente o candidato Jair Messias Bolsonaro à Presidência da República, o qual saiu vitorioso em 2018, mas derrotado em 2022 pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

Este artigo mostra como em 2018 a parceria entre Bolsonaro e o cristianismo conservador (especialmente evangélico) foi decisiva para o êxito do candidato da extrema direita, e como tal relação foi ainda mais fortalecida nas eleições de 2022, mas insuficiente para levá-lo à vitória. 

O objetivo deste texto é duplo e complementar: compreender as estratégias e os significados que envolveram o alinhamento entre o candidato da extrema direita e um amplo e heterogêneo conjunto de forças religiosas conservadoras e reacionárias; e analisar o comportamento de eleitores em relação às principais formações religiosas nacionais, sobretudo cristãs, mas não só, em ambas as eleições presidenciais2

Eleições presidenciais de 2018 e religião

A vitória de Bolsonaro nas eleições presidenciais de 2018 está diretamente, mas não exclusivamente, relacionada ao fato de ele cristalizar os valores da extrema direita que emergiu fortemente no país durante o segundo mandato de Lula da Silva (2007-2010). Uma parte importante do peso eleitoral dessa vitória decorre dos votos obtidos no segmento cristão conservador, sobretudo evangélico3.

Bolsonaro: caixa de ressonância da extrema direita político-religiosa 

Capitão reformado do Exército, Bolsonaro ingressou na carreira política em 1988 quando foi eleito para a Câmara Municipal da cidade do Rio de Janeiro. Dois anos depois, foi eleito deputado federal pelo estado do Rio de Janeiro. Obteve seis sucessivas reeleições, totalizando 28 anos de mandato como deputado federal. Ao longo desse tempo, migrou por oito diferentes partidos políticos. Candidatou-se a presidente da República nas eleições de 2018 erguendo o lema (também utilizado em 2022): «Brasil acima de tudo, Deus acima de todos».

Ao longo do seu mandato como deputado federal, Bolsonaro sempre figurou no chamado «baixo clero», expressão utilizada para se referir aos deputados com pouca expressão na Câmara Federal. Com o passar dos anos, foi assumindo cada vez mais as pautas reivindicadas pela extrema direita e pela direita cristã, como a defesa da propriedade privada, da família tradicional, de pautas moralistas e de aversão ao Partido dos Trabalhadores (PT) e ao comunismo4. Essa «onda conservadora» teve sua gênese em grupos de discussão e militância na internet durante o governo Lula, e era formada por contrapúblicos com «identidades, interesses e discursos tão conflitivos com o horizonte cultural dominante que correriam o risco de enfrentar reações hostis caso fossem expressos sem reservas em públicos dominantes»5.

Assim, quando Bolsonaro se apresentou como candidato à Presidência da República, o largo espectro conservador viu nele a possibilidade de implementar seu projeto de poder, caracterizado, segundo Ronaldo de Almeida6, por quatro linhas de força: economicamente liberal, politicamente autoritária, socialmente intolerante e moralmente reguladora. Por sua vez, os cristãos conservadores, católicos e evangélicos, também perceberam no candidato da extrema direita seu entusiasmo em assumir os seus valores e ideais e consolidá-los de modo hegemônico para o conjunto da sociedade7: a defesa da família tradicional, a oposição à ideologia de gênero e ao aborto – mesmo em casos previstos em lei –, a contrariedade à legalização das drogas, a luta contra o comunismo, a desqualificação das reivindicações da comunidade LGBTQIA+, entre outros. Bolsonaro externou claramente em 18 de fevereiro de 2017, em Campina Grande, Paraíba, essa sua concepção conservadora e religiosamente intolerante para toda a nação quando afirmou: «Não tem essa historinha de Estado laico, não! O Estado é cristão, e a minoria que for contra que se mude. As minorias têm que se curvar às maiorias»8.

Bolsonaro e as formações cristãs nas eleições de 2018

Durante a campanha eleitoral de 2018, Bolsonaro se aproximou sobretudo de lideranças católicas e evangélicas detentoras de um perfil conservador. Assim, do lado católico ele visitou a comunidade carismática Canção Nova, de Cachoeira Paulista, e interagiu com o arcebispo do Rio de Janeiro, Orani Tempesta, com quem assinou um documento defendendo valores cristãos conservadores. Mas a maior proeza de Bolsonaro ao longo de 2018 foi ter obtido o apoio declarado à sua eleição dos principais expoentes evangélicos pentecostais e neopentecostais brasileiros, com destaque para Edir Macedo (Igreja Universal); Silas Malafaia (Assembleia de Deus Vitória em Cristo); Robson Rodovalho (Sara Nossa Terra); José Wellington Costa Júnior (Convenção Geral das Assembleias de Deus no Brasil); Samuel Câmara (Convenção da Assembleia de Deus no Brasil); Estevam e Sônia Hernandes (Igreja Renascer em Cristo); Romildo Soares (Igreja Internacional da Graça); Waldemiro Santiago (Igreja Mundial do Poder de Deus); Márcio Valadão (Igreja Batista da Lagoinha). Todos estes nomes são tidos até hoje, após as eleições de 2022, como «pastores bolsonaristas».

Segundo Ricardo Mariano e Dirceu André Gerardi, os líderes evangélicos «apoiaram Bolsonaro, acima de tudo, por considerá-lo representante legítimo de seus valores e capaz de derrotar o inimigo petista e os perigos que lhe atribuíam: implantar o comunismo, perseguir os cristãos, abolir o direito dos pais de educar os filhos, reorientar a sexualidade das crianças, destruir a família»9.

Dois eventos ocorridos na vida pessoal do candidato foram estrategicamente aproveitados para facilitar sua aproximação com o segmento evangélico: seu casamento, em terceiras núpcias, com Michelle Reinaldo, evangélica da Igreja Batista Atitude, cuja cerimônia foi presidida em 2013 pelo pastor Silas Malafaia, amigo de Bolsonaro, e o seu batismo no rio Jordão, em Israel, em maio de 2016, presidido pelo pastor e político Everaldo Dias Pereira. Ambos os pastores pertencem à Assembleia de Deus. Bolsonaro manteria assim uma espécie de dupla identidade: foi batizado como evangélico sem deixar de ser católico.

Como foi amplamente divulgado, Bolsonaro foi eleito para a Presidência, com 55,13% dos votos, promovendo um discurso anticorrupção em referência aos episódios atribuídos ao PT, que deram origem à Operação Lava Jato e levaram à prisão de Lula da Silva. Também contou para a sua eleição o atentado que sofreu em Juiz de Fora, em setembro de 2018, quando foi esfaqueado, o que lhe causou graves problemas intestinais. Este episódio atingiu sensibilidades cristãs conservadoras, que projetaram nele a figura de um mártir e mesmo de um «messias» (termo presente no seu próprio nome), destinado a «libertar» o país do «comunismo» e da degradação moral e, assim, inaugurar uma nova era para a «nação».

No que tange à variável religiosa, observou-se que em 2018 os evangélicos foram os maiores eleitores do candidato de extrema direita. José Eustáquio Alves, demógrafo do IBGE, mostrou, por exemplo, que enquanto o voto católico foi ligeiramente superior para Bolsonaro em relação a Haddad, o voto evangélico foi de 21.595.284 para Bolsonaro contra 10.042.504 para Haddad10. Considerando que a diferença final entre os dois candidatos foi de 10,76 milhões de votos, a diferença de 11,6 milhões de votos evangélicos pró Bolsonaro foi decisiva para o resultado final das eleições.

Sabemos que o vínculo religioso constitui uma entre outras variáveis acionadas pelos eleitores para definirem seu voto. No entanto, sugiro que entre os evangélicos brasileiros, em sua maioria pentecostais e neopentecostais (70%), o discurso moralista e conservador de Bolsonaro e seu forte investimento para conseguir o apoio das lideranças conservadoras, associado à autoridade que elas detêm, assim como à estrutura eclesial e à posição social majoritária dos fiéis nas camadas baixas da sociedade, tende a elevar o peso da religião na definição do voto para um patamar superior, cuja consequência foi o relevante número de votos para Bolsonaro.
Após ter assumido a Presidência da República, em 1° de janeiro de 2019, e durante os quatro anos do seu mandato, Bolsonaro nunca deixou de lado o segmento cristão conservador, sobretudo evangélico, tendo sempre em vista as eleições de 2022. Em 17 de dezembro de 2019, ele expressou claramente a preocupação com sua reeleição e a importância de manter os evangélicos ao seu lado, ao afirmar: «Qualquer político que tenha juízo sabe que a política de 2022 passa pelo movimento evangélico».

Assim, não por acaso, logo no início do seu governo Bolsonaro indicou vários indivíduos do campo evangélico para os mais altos escalões da República, inclusive ministros de Estado. Também fez questão de participar pessoalmente de vários eventos evangélicos. Nesse período, ele participou de um jantar organizado por muçulmanos, dois eventos da Igreja católica e 30 eventos organizados por lideranças evangélicas. Também nesse período participou de oito eventos promovidos pela Frente Parlamentar Evangélica11, totalizando, assim, 38 participações. Elas continuaram em 2020 e sobretudo em 2021, após a melhoria da situação sanitária devido à pandemia de covid-19. Sobre este último tema vale registrar, de passagem, que a melhoria sanitária no país ocorreu à revelia do próprio presidente, pois este se notabilizou no país e no exterior pelo negacionismo da pandemia, pelo ataque às vacinas, pela disseminação de notícias falsas e pelo estímulo a comportamentos contrários à orientação da Organização Mundial da Saúde (OMS). O resultado dessa política sanitária inadequada foi o absurdo número de 700.000 mortos pela covid-19 no Brasil, até o momento. 
Mas, graças à atuação de forças esclarecidas que durante a pandemia emergiram nos meios político, jurídico, médico, científico, jornalístico e religioso, entre outros, a pandemia no país arrefeceu, como no resto do mundo. Assim, durante 2022, especialmente por se tratar de ano eleitoral, Bolsonaro retomou o seu périplo em eventos evangélicos, sempre visando o voto dos eleitores. Neste sentido, ele se fez presente em quase duas dezenas de «Marchas para Jesus», ocorridas em diferentes cidades brasileiras. 

Não é preciso explicar que a participação de Bolsonaro nos eventos mencionados –quase sempre acompanhado de sua esposa – buscava uma instrumentalização política do religioso, uma vez que a tônica dos pronunciamentos e discursos consistia no enaltecimento da figura do presidente e na demonização do candidato adversário, bem como da «esquerda» e do «comunismo». 

Além disso, há especialmente duas situações promovidas por Bolsonaro que são reveladoras de sua «opção preferencial pelos evangélicos»12. A primeira, em 2021, foi quando ele indicou e depois nomeou (em 1° de dezembro) o pastor presbiteriano André Mendonça – tido pelo próprio presidente como alguém «terrivelmente evangélico», e não alguém «terrivelmente cristão» – para uma vaga no Supremo Tribunal Federal. A segunda, em 8 de março de 2022, foi quando ele realizou um ato político no Palácio da Alvorada, juntamente com sua esposa, políticos e líderes evangélicos conservadores. Na ocasião, pronunciou a seguinte frase: «Eu dirijo a nação para o lado que os senhores assim o desejarem». Lembremos que Bolsonaro está se dirigindo a «senhores» portadores de uma ideologia nada favorável à implementação de agendas progressistas e democráticas.

Poder-se-ia dizer, acertadamente, no sentido inverso, que Bolsonaro não desconsiderou os católicos, sobretudo conservadores, que o apoiaram e também participaram do seu governo. Mas, tanto isso quanto sua presença em eventos católicos nem de longe possuem a densidade verificada na sua relação com os evangélicos. Este fato pode estar relacionado, como veremos a seguir, com o tipo de relacionamento mantido entre o ex-presidente e a cúpula dirigente da Igreja católica no Brasil.

Eleições presidenciais de 2022 e religião

As eleições presidenciais de 2022 ocorreram em dois turnos, em 2 e 30 de outubro. O resultado do segundo turno foi de 50,90% dos votos válidos (60,3 milhões de votos) para Lula da Silva e de 49,10% (58,2 milhões de votos) para Bolsonaro. Assim, o antigo metalúrgico foi eleito para o seu terceiro mandato como presidente, na eleição mais disputada da história brasileira. 

As eleições aconteceram num contexto de retrocesso econômico no país e de graves problemas sociais, como aumento da pobreza, fome e violência. Esses temas foram pauta de inúmeros pronunciamentos de Lula durante a campanha, enquanto Bolsonaro centrava suas falas no conservadorismo moral, dando prioridade a questões como a condenação do aborto, o casamento homossexual, a legalização das drogas e a difusão da «ideologia de género». Aliás, uma dimensão do tema da família alardeado pelo ex-presidente aguarda uma pesquisa qualitativa por se tratar de uma das suas maiores contradições, pois, enquanto, por um lado, enaltecia o valor da família, por outro, devido a suas posições e a seu modo de ser, provocou não somente discussões, atritos e discórdias, mas também rupturas e rachas internos entre membros de um número significativo de famílias brasileiras que não se comunicam mais. 

Os números a seguir constituem uma estimativa das intenções de votos de eleitores religiosos às vésperas do segundo turno das eleições presidenciais de 2022. Resultam da calibragem de diferentes levantamentos sobre as intenções de votos religiosos efetuada por José Eustáquio Diniz Alves, demógrafo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatistica (IBGE) e pelo Agregador de Pesquisas Eleitorais por Religião, coordenado por Dirceu A. Gerardi e Ronaldo de Almeida13.

A partir desses números, Alves argumenta que, se fossem considerados apenas os grupos religiosos (católico, evangélico e de outras religiões), Bolsonaro teria vencido as eleições com uma vantagem de 3,8 milhões de votos. No entanto, o superávit de 5,9 milhões de votos obtidos entre o segmento sem religião propiciou a Lula uma vantagem final de 2,1 milhões de votos no resultado final. Esta colocação de Alves me conduz a aprofundar a análise sobre o voto preferencial dos sem religião para Lula em detrimento de Bolsonaro. Na sequência, analiso as intenções de votos dos segmentos cristãos aos dois candidatos à Presidência da República14.

Considerações sobre os votos das pessoas sem religião

Nas eleições de 2018, Haddad obteve pouco mais de 700.000 votos de vantagem sobre Bolsonaro no segmento dos que se declaravam sem religião. Nas eleições de 2022, Lula conseguiu um superávit de quase seis milhões de votos15.

Na expressão «sem religião» figura um conjunto bastante eclético e heterogêneo de eleitores. Estudos mostram que se trata de indivíduos majoritariamente «desigrejados», ou seja, sem vínculos religiosos institucionais, mas não necessariamente desprovidos de crenças religiosas. Igualmente, na análise realizada por Alves, concentram-se os ateus e agnósticos, em proporção pequena, mas difícil de ser alcançada pelas pesquisas eleitorais.

Há razões variadas para explicar a majoritária votação do segmento dos sem religião em Lula. Aqui, o perfil de cada um dos candidatos pode ser acionado como um forte elemento explicativo. Ao longo de sua carreira política, Lula tem expressado posicionamentos que agradam os «desigrejados», como o respeito às pessoas – independentemente de suas crenças ou não crenças –, a valorização isonômica de todas as religiões, o não uso da religião para fins eleitorais e a defesa do estado democrático e de direito. Bolsonaro, por sua vez, tem historicamente se mostrado reincidente em falas de caráter preconceituoso e racista, de liberação de armas para a população – incitando assim a violência – além de ser um defensor ardente do cristianismo para toda a nação brasileira. Além disso, não soou bem para os ouvidos dos sem religião a exacerbação da apropriação do simbólico por parte de Bolsonaro, incluindo citações de versículos bíblicos e a evocação, em incontáveis oportunidades, do nome de Deus, em expressões tais como: «Deus acima de todos», «Agradeço a Deus a minha segunda vida», «Deus no comando», «Deus no coração», «Deus, pátria, família», «Estou sendo instrumento de Deus», «Só Deus me tira daqui».

Portanto, minha sugestão é que os apelos exagerados de Bolsonaro ao transcendente, até mesmo no exercício político, associado ao seu empenho em trazer a religião – leia-se cristianismo – para a arena política, borrando, até certo ponto, as fronteiras entre Estado e religião, além de suas ideias preconceituosas, discriminatórias e racistas, sem falar nos seus constantes ataques às instituições democráticas, certamente afetaram de forma negativa as sensibilidades de indivíduos que se dizem sem religião e que, consequentemente, preferiram, em sua maioria, depositar seus votos em Lula.

Considerações sobre os votos evangélicos e católicos

Os números acima apresentados revelam que Bolsonaro colheu nas urnas todo o investimento realizado nos evangélicos durante o seu mandato presidencial. De fato, se compararmos a sua votação obtida nesse segmento religioso em 2018 (21.595.284) com a votação de 2022 (26.099.413), notamos que na última eleição a diferença positiva para Bolsonaro foi de 4.414.129 de votos. Assim, se em 2018, como vimos, o superávit de votos para Bolsonaro entre os evangélicos em relação ao seu adversário foi de 11.552.780, em 2022 a diferença aumentou para 14.373.590 votos.

Por sua vez, Lula obteve 11.725.823 votos evangélicos em 2022, ou seja, 1.683.328 votos a mais do que os recebidos por Haddad em 2018 (10.042.504). É possível que o investimento de Lula em favor dos evangélicos durante a campanha eleitoral, se não surtiu efeito no sentido de melhorar a sua votação nesse segmento religioso, ao menos pode ter freado a perda de votos. Refiro-me, por exemplo, a suas afirmações que geralmente iam na contramão das falas de Bolsonaro, como esta, contrária ao uso político da religião, dita em 2 de setembro de 2022: «Da mesma forma que o Estado não pode ter religião, a igreja não pode ter partido». E quanto às atitudes tomadas por Lula em favor dos evangélicos durante a campanha, destaco a «Carta aos evangélicos», divulgada em 19 de outubro, 11 dias antes das eleições. Nela, Lula desmentiu uma notícia falsa que circulou fortemente no meio evangélico, segundo a qual ele iria fechar as igrejas. Ao mesmo tempo, afirmou ser «pessoalmente contra o aborto», enalteceu os «valores da família» e defendeu «o livre exercício da religião sem interferência do Estado» e disse que o seu governo «jamais vai usar a religião para fins partidários». É curioso que os discursos sobre fechamento de igrejas tenham tido tanto eco, já que o próprio pt governou durante as presidências de Lula e Dilma Rousseff em aliança com setores evangélicos, e Dilma inaugurou o megatemplo da Igreja Universal de Salomão em 2016.

Inversamente proporcional ao que observamos no segmento evangélico, os números acima mostram que Bolsonaro pagou caro, em termos de votação, pelo fato de manter relações superficiais, quando não friccionais, com a Igreja católica. De fato, se nas eleições de 2018 Bolsonaro superou ligeiramente a votação de Haddad neste segmento religioso, nas eleições de 2022 Lula obteve um superávit de mais de dez milhões de votos em relação a Bolsonaro. Entre as razões que podem ser levantadas para o desequilíbrio entre as votações, sugiro, na mesma linha associada acima à figura e à performance dos candidatos, por um lado, as relações geralmente tensionais mantidas entre Bolsonaro e a cúpula da Igreja católica; por outro, o histórico vínculo de Lula com este segmento religioso.

Durante o mandato de Bolsonaro, sua relação com a Conferência Nacional dos Bispos Brasileiros (cnbb) foi marcada por tensões, polêmicas e atritos. Isto porque, em diferentes momentos conjunturais, a cnbb assumiu um posicionamento crítico em relação à política implementada pelo governo Bolsonaro. Foi o que ocorreu, por exemplo, por ocasião do Sínodo da Amazônia, realizado no Vaticano, entre 6 e 27 de outubro de 2019, quando os bispos brasileiros efetuaram duras críticas à política ambiental do governo. No auge da pandemia de covid-19, em julho de 2020, a cnbb divulgou a «Carta ao Povo de Deus», criticando a postura negacionista do presidente. Também foi severa a «Mensagem da cnbb ao povo brasileiro sobre o momento atual», assinada pelos 292 bispos reunidos em Aparecida por ocasião da 59ª Assembleia Geral da cnbb (entre 28 de agosto e 2 de setembro de 2022), um mês antes das eleições. Os bispos pontuavam, entre outros graves problemas do governo Bolsonaro, «os alarmantes descuidos com a terra, a violência latente, explícita e crescente, potencializada pela flexibilização da posse e porte de armas que ameaçam o convívio humano harmonioso e pacífico na sociedade»16.

Um dia após a divulgação desse documento da cnbb, mais de 450 padres de diversas dioceses, ordens e congregações religiosas divulgaram uma carta aberta na qual se posicionavam contra a reeleição do presidente a partir de dez tópicos negativos a ele imputados, a saber: uso do nome de Deus, discurso do ódio, fake news, má gestão da pandemia de covid-19, «volta da pobreza», aumento do desmatamento, sinais claros de corrupção, ataques ao Supremo Tribunal Federal, questionamento sobre o processo eleitoral, «claros sinais de autoritarismo e fascismo»17.

O documento acima mostra que não foi somente a cnbb que emitiu posicionamentos críticos em relação ao governo Bolsonaro. Membros do clero (como Padres da Caminhada e Padres contra o Fascismo) e leigos (como Movimento de Fé e Política), entre outros, também se posicionaram abertamente contra a política atentatória à vida humana e da natureza, aos direitos humanos e à democracia, que marcaram o governo Bolsonaro18.

Se, por um lado, somente uma pesquisa qualitativa poderia apontar o perfil ideológico e doutrinário dos fiéis que foram influenciados pelos posicionamentos críticos da CNBB e do clero, parece mais plausível, por outro lado, a possibilidade do endereçamento de votos a Lula por parte de fiéis simpáticos à igreja moderada e progressista e que reconhecem a afinidade pessoal de Lula com esta parcela da igreja.

De fato, Lula nunca deixou de externar publicamente o seu pertencimento ao catolicismo. A este propósito, em entrevista concedida em fevereiro de 2022 à Rádio Brasil Campinas, ele reafirmou o seu vínculo com o catolicismo nesses termos: «Sou batizado e crismado na Igreja católica. Sou católico há 76 anos» (sua idade nesse momento). Na oportunidade, Lula acrescentou que mantém amizade com vários líderes católicos, como Frei Betto, Leonardo Boff, Mauro Morelli, Pedro Casaldáliga, Hélder Câmara, Cláudio Hummes e Paulo Evaristo Arns, todos expoentes da ala progressista da Igreja católica (sendo já falecidos os quatro últimos).

Na mesma entrevista, Lula lembrou a importância das Comunidades Eclesiais de Base e da Teologia da Libertação para a criação de movimentos sociais e sindicais e para a própria fundação do pt em 1980. Naquele tempo (décadas de 1970 e 1980), para mostrar a sua relação com a ala progressista da Igreja, Lula arrematou: «Para onde eu viajava eu tinha uma igreja progressista, um padre progressista, uma casa paroquial, lá haveria uma reunião com a comunidade católica, para a gente discutir política»19.

Também não se pode desprezar a influência que exerceu sobre sensibilidades católicas o fato de Lula, em 7 de abril de 2018, poucas horas antes de se entregar à Polícia Federal para ser conduzido à prisão, em Curitiba, ter participado de uma missa em homenagem à sua esposa falecida Marisa Letícia, em São Bernardo do Campo. Do mesmo modo que a visita de Lula ao papa Francisco no Vaticano em fevereiro de 2020, três meses após deixar a prisão.

Para concluir esta análise, considero que a eleição de Lula não pode ser circunscrita aos quase seis milhões de votos a mais do que Bolsonaro obtidos entre os sem religião, como apontou Alves20. Além dos votos evangélicos, embora em proporção bem menor do que os obtidos por Bolsonaro, é importante salientar o superávit de mais de dez milhões de votos obtidos por Lula entre os católicos, cuja soma final levou o candidato do pt a superar a vantagem de mais de 14 milhões de votos obtidos por Bolsonaro entre os evangélicos.

Considerações finais

A parceria entre Bolsonaro e evangélicos de tendência conservadora obedeceu a uma lógica simbólica, tendo em comum esses atores não somente o enaltecimento do cristianismo como referência religiosa nacional, mas também a reivindicação dos valores, princípios e ideais que consideram como cristãos para toda a sociedade. Mas a parceria entre Bolsonaro e evangélicos obedeceu também a lógicas práticas, ou seja, interesses mútuos. Assim, os maiores líderes de igrejas pentecostais e neopentecostais brasileiros alinhados com o ex-presidente de extrema direita foram oportunistas ao reivindicarem e obterem benefícios de várias ordens por parte do Estado, especialmente econômicos e fiscais para suas igrejas, tais como recursos para obras sociais, verbas destinadas às emissoras televisivas e radiofônicas e, sobretudo, perdão das dívidas e obrigações fiscais21. Assim, por exemplo, somente em 2021 o governo Bolsonaro perdoou 1,4 bilhão de reais (cerca de 270 milhões de dólares americanos) de dívidas de igrejas evangélicas22

Evidentemente, o ex-presidente via os evangélicos sobretudo como eleitores, e suas iniciativas em favor deles visavam garantir seus votos. Ou seja, Bolsonaro usava os evangélicos para fins eleitorais. Esta situação se revelou tão escrachada que o teólogo brasileiro Osmar Ludovico, da ala evangélica progressista, chegou a afirmar que «Bolsonaro e os filhos dele devem dar risada dos crentes». O jornalista Josias de Souza assim sintetiza a relação entre o ex-presidente e os evangélicos que o apoiaram: «Bolsonaro firmou com um pedaço do mundo evangélico uma parceria político-financeira».

O cálculo político de Bolsonaro era amealhar o máximo de votos do segmento evangélico – detentor de um capital político que alcança quase um terço do eleitorado brasileiro –, o que, somado ao apoio proveniente de outras forças sociais e religiosas conservadoras, poderia assegurar-lhe a vitória nas urnas. Por sua vez, o então candidato Lula também não desconsiderou o segmento evangélico durante a campanha eleitoral. Mas, diferentemente de Bolsonaro, voltou sua atenção igualmente para todas as expressões religiosas nacionais, concentrando sobretudo nos setores menos favorecidos da população.

  • 1.

    A.P. Oro e Ricardo Mariano: «The Reciprocal Instrumentalization of Religion and Politics in Brazil» em Annual Review of the Sociology of Religion vol. 2, 2011.

  • 2.

    A metodologia empregada para a captação dos dados empíricos consistiu na exploração dos sites dos principais jornais e portais de conteúdo digital brasileiros –referidos ao longo do texto – que publicaram nos últimos anos matérias sobre o tema religião e eleições.

  • 3.

    Mapear tais forças cristãs conservadoras dentro do grande guarda-chuva do cristianismo é tarefa muito complexa, que vai além deste artigo. Ver A.P. Oro: «Bolsonaro e a laicidade brasileira em questão» em Debates do NER N° 42, 2022.

  • 4.

    Marina Lacerda: «Neoconservadorismo de periferia: articulação familista, punitiva e neoliberal na Câmara dos Deputados», tese de doutorado em Ciência Política, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2018.

  • 5.

    Camila Rocha: «‘Menos Marx, mais Mises’: uma gênese da nova direita brasileira (2006-2018)», tese de doutorado em Ciência Política, Universidade de São Paulo, 2018, p. 20.

  • 6.

    R. de Almeida: «Bolsonaro Presidente. Conservadorismo, evangelismo e a crise brasileira» em Novos Estudos Cebrap vol. 38 N° 1, 1-4/2019.

  • 7.

    Joanildo Burity e Emerson Giumbelli: «Minorias religiosas: identidade e política em movimento» em Religião e Sociedade N° 40, 2020.

  • 8.

    «Jair Bolsonaro afirma que o Brasil é um Estado cristão: ‘A minoria que for contra, que se mude’» em Gospel, 13/2/2017

  • 9.

    R. Mariano e D.A. Gerardi: «Eleições presidenciais na América Latina em 2018 e ativismo político» em Revista USP N° 120, 2019, p. 69.

  • 10.

    José E. Diniz Alves: «O voto evangélico garantiu a eleição de Jair Bolsonaro» em Ecodebate, 31/10/2018.

  • 11.

    Trata-se de uma organização suprapartidária, surgida na Constituinte de 1986, que reúne evangélicos de diferentes denominações e que atua como grupo de pressão política quando estão em discussão projetos e questões de ordem moral que consideram atentar contra os valores cristãos. Na atualidade, estima-se que a bancada evangélica seria formada por 132 deputados (sobre um total de 513) e de 14 senadores (sobre um total de 81). Vale destacar que nem todos os deputados evangélicos pertencem à Frente. Neste último caso, figuram alguns deputados tidos de esquerda, que integram o chamado Movimento Evangélico Progressista, um coletivo que aglutina um número reduzido, mas crescente, de membros.

  • 12.

    Marcelo Camurça e Paulo Victor Zaquieu-Higino: «Entre a articulação e a desproporcionalidade: relações do Governo Bolsonaro com as forças conservadoras católicas e evangélicas» em Revista Brasileira de História das Religiões N° 39, 2021.

  • 13.

    D.A. Gerardi e R. Almeida: «Agregador de pesquisas eleitorais por religião: consolidação de dados de pesquisas eleitorais com recorte religioso às eleições presidenciais de 2022», APP versão 1.0, São Paulo, 2022, disponível em cebrap.org.br/projetos/

  • 14.

    A análise dos votos de outras religiões é deixada de lado, posto que estatisticamente houve uma repartição dos seus votos entre os dois candidatos, com pouca vantagem para Lula, além de representarem uma fração menor de votantes, se comparada às demais expressões religiosas e não religiosas. 

  • 15.

    J. E. Diniz Alves: «O eleitorado sem religião foi o fiel da balança da vitória de Lula», cit.

  • 16.

    Silvonei José: «Mensagem da CNBB ao povo brasileiro sobre o momento atual» em Vatican News, 2/9/2022.

  • 17.

    «Carta aberta dos Padres contra o Fascismo e Padres da Caminhada», 7/9/2022, disponível em groups.google.com/g/fundomuniccultura-sjc-sp/c/zwsrr5zk-r0?pli=1

  • 18.

    Lembro, porém, que, no sentido contrário, membros de comunidades católicas carismáticas como a Canção Nova e organizações acadêmicas como o Instituto Brasileiro de Direito e Religião – analisado por R. Almeida, Paula Bortolin e João Moura –, dirigido por indivíduos vinculados à Opus Dei, apoiaram o governo Bolsonaro e dele participaram ativamente. R. de Almeida, P. Bortolin e J. Moura: «Cristianismo cultural e laicidade colaborativa no governo Bolsonaro», apresentação realizada no congresso «Laicidades em transformação: projeto Capes-Cofecub», Porto Alegre, 2 e 3 de março de 2023.

  • 19.

    «A igreja contribuiu com minha formação política, diz Lula», 2/9/2022, disponível em lula.com.br/a-igreja-contribuiu-com-minha-formacao-politica-diz-lula/

  • 20.

    J. E. Diniz Alves: «O eleitorado sem religião foi o fiel da balança da vitória de Lula», cit.

  • 21.

    Não se deve esquecer que havia também uma lógica pragmática de algumas igrejas evangélicas, como a Igreja Universal, em relação aos governos do PT.

  • 22.

    Vale aqui destacar, porém, que o pragmatismo político vai além dos evangélicos, tendo também sua importância na relação entre a Igreja católica e os governos ao longo de toda história do país.

Este artículo es copia fiel del publicado en la revista Nueva Sociedad 305, Mayo - Junio 2023, ISSN: 0251-3552


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