Tema central
NUSO Nº Agosto 2016

A tentação autoritária A nova esquerda europeia: entre o ressurgimento e o populismo

O descontentamento da população tem feito emergir algumas forças políticas de esquerda, especialmente no sul da Europa (como Syriza e Podemos), e provocado realinhamentos em algumas das forças tradicionais, como o Partido Trabalhista britânico. No entanto, apesar de fazer frente a um problema existente – a crescente desigualdade e as políticas pró-mercado –, os novos movimentos tergiversam as soluções ao estabelecer uma clivagem entre «o povo» e «a casta», em um tom populista que dá margem a derivações nem sempre desejáveis. Ao mesmo tempo, novos tipos de soberanismo debilitam o olhar sobre as mudanças que afetam a Europa como um todo.

A tentação autoritária  A nova esquerda europeia: entre o ressurgimento e o populismo

Em numerosos países europeus, o panorama político vive mudanças históricas. Em apenas três anos, a coalizão grega Syriza, do primeiro-ministro Alexis Tsipras, deixou de ser um partido marginal para se tornar a força dominante do espectro da esquerda; após a última vitória eleitoral de setembro, tudo indica que não será possível alterar esse status. Na Espanha, apesar da recente queda nas pesquisas, não restam dúvidas de que o Podemos conseguiu quebrar o sistema bipartidário tradicional. Atualmente, já são várias as legendas alternativas que, organizadas em torno do jovem partido de esquerda, governam grandes cidades como Madri, Barcelona e Zaragoza. Apesar de todos os vaivéns, há uma esquerda nova, ou com novos brios, que está colhendo êxitos especialmente no sul da Europa, como mostraram também as eleições de outubro em Portugal, nas quais o Bloco de Esquerda se transformou, de maneira surpreendente, na terceira força.

Entretanto, quando observamos em detalhe, vemos um quadro inquietante. Por um lado, presenciamos o tardio distanciamento da tendência neoliberal vigente nas últimas décadas. É em parte por isso que os novos expoentes geram agora expectativas tão grandes. Por outro lado, os desenvolvimentos subjacentes são muito mais ambíguos do que o sugerido pela imagem simplista da guinada à esquerda, em especial porque entre os portadores dessas novas esperanças há uma evidente tendência populista, que ameaça danificar severamente o almejado ressurgimento.

Seja qual for a sua cor, o populismo gera um amplo receio entre as forças políticas tradicionais, as instituições estatais e a grande imprensa. Nos diferentes países da Europa, todos esses atores vieram sofrendo desde a década de 1980 uma perda gradual de credibilidade, que culminou nos anos de crise a partir de 2008. As sociedades caracterizadas durante longo tempo como apolíticas são propensas a receber uma crítica geral dirigida às «elites», por enganarem o «povo». Por certo, o sucesso crescente dos populistas se baseia essencialmente nas desigualdades e incertezas criadas ao longo de décadas pela política econômica neoliberal. As forças populistas reagem então diante de um problema que efetivamente existe, mas o tergiversam. Em sua crítica ao populismo de esquerda, Albrecht von Lucke alude circunstancialmente a este pano de fundo socioeconômico1. Ao analisar o aumento da polarização social, não se pode subestimar a responsabilidade dos políticos neoliberais. Os partidos tradicionais não são sempre o centro moderado que pregam ser; durante longo tempo, eles mesmos radicalizaram a política econômica e social de seus países. Recentemente, The New Yorker publicou um agudo comentário a esse respeito, com foco na Grã-Bretanha: «Os conservadores são os extremistas. (...) A partir de uma motivação ideológica, eles visam reduzir o Estado britânico, especialmente o Estado social»2. A posição de Angela Merkel no tocante à cotação do euro tem um efeito similar no plano continental. Desde 2010, com a ajuda dos mercados – e em defesa de seus interesses –, os governos liderados pela chanceler alemã impõem um drástico plano de ajuste, principalmente às economias do sul da Europa. Em nome da competitividade, invocada como um mantra por Merkel, faz-se necessário reduzir os custos salariais para poder enfrentar países emergentes como a China. Isso acirra a divisão das sociedades europeias e de todo o continente. Mas a desconfiança nas forças políticas dominantes também cresce, porque em muitos lugares não existe nenhuma alternativa na esfera partidária. Com demasiada frequência, os sociais-democratas – inclusive, por muito tempo, os gregos e os espanhóis – apoiam o projeto da «Europa competitiva de Merkel a favor dos donos do capital»3. Assim, alimenta-se a impressão de uma elite fechada, que desdenha as preocupações da população.

A primeira resposta progressista a esta situação deu-se nos anos posteriores a 2008, com numerosos movimentos de protesto que exigiam mais democracia e o fim da política de austeridade. Ali jogaram um papel importante muitos ex-ativistas do movimento alterglobalização, como Pablo Iglesias (atual líder do Podemos), Ada Colau (prefeita de Barcelona) e Rena Dourou (governadora pelo Syriza da região da Ática). Na década de 2000, os setores europeus críticos da globalização ainda se mostravam, em grande medida, longe do poder, mas as novas correntes logo compreenderam que era necessário lutar por mudanças nas instituições, já que o protesto das ruas se desenvolve de maneira espontânea. Muitos ativistas se uniram a partidos pequenos já existentes ou fundaram um próprio.

O independentista Partido Nacional Escocês (snp, na sigla em inglês) conseguiu se transformar no veículo deste ressurgimento com um programa social-democrata com elementos verdes, pacifistas e pró-imigração. Na vizinha Irlanda, o Sinn Féin (antigo braço político do Exército Republicano Irlandês, ira, na sigla em inglês) busca se posicionar como alternativa para a disputa eleitoral de 2016. Mais sólida está a opção na Inglaterra, onde o novo líder do Partido Trabalhista, Jeremy Corbyn, desperta similares expectativas4. Sua eleição como chefe do partido se deve em grande medida ao apoio daqueles setores que haviam organizado protestos maciços em 2010 e 2011: os jovens e os sindicalistas. Tanto o trabalhismo de Corbyn como o snp constituem uma raridade, visto que se trata de partidos com uma rica tradição e muita experiência acumulada, inclusive no âmbito governamental. Por sua vez, vários agrupamentos mais jovens estão ainda em pleno processo de aprendizagem na atividade política. É o caso, por exemplo, da aliança Združena levica da Eslovênia, com uma orientação afim ao Syriza. Com sua vitória eleitoral de 2014, pela primeira vez um novo partido socialista conseguiu se afirmar dentro de um país pertencente ao antigo bloco do Leste.

Se conseguirem manter sua estabilidade no âmbito interno, esses partidos possuem boas chances de adquirir influência no terreno político com o passar dos anos, porque a desconfiança nos poderes estabelecidos é muito profunda e foi gerada ao longo de um período excessivamente extenso, o que não sugere uma pronta reabilitação. Vale lembrar, adicionalmente, que nem sempre há um outsider ao estilo de Corbyn disposto a intervir em um partido desprestigiado para lhe insuflar nova credibilidade. Nem sequer a recuperação econômica garante a recuperação dos partidos tradicionais, como mostra o exemplo da Islândia; após a dura queda de 2008, o país retomou há tempos o caminho do crescimento, mas, ainda assim, há meio ano o Partido Pirata se mantém à frente nas pesquisas eleitorais.

No melhor dos casos, surgem partidos esquerdistas que querem reconfigurar a sociedade e formulam visões positivas. Isso marcaria uma diferença com a social-democracia do Novo Trabalhismo, que abandonou suas pretensões de intervir na política econômica, deixando prevalecer as forças do mercado, mas também em relação ao fundamentalismo opositor da esquerda tradicional. Não obstante, o maior risco radica na possibilidade de terminarem como correntes populistas, sem perspectivas efetivas mas com a chance de ocupar o espaço à esquerda da social-democracia e obstaculizar desse modo as políticas progressistas. A nova esquerda se encontra diante de uma pergunta crucial e deve decidir qual direção adotar, o que pode ser observado com especial clareza em três partidos: o Syriza já deu uma resposta e se apresenta como uma força reformista com perspectiva europeia; o Podemos oscila entre a renovação e o populismo; já o Movimento 5 Estrelas da Itália, considerado às vezes como uma alternativa de esquerda, se encapsulou em uma modalidade autoritária.

Syriza diante de uma prova de fogo

Após a derrota de julho em Bruxelas, o Syriza encontrou um novo grande tema. Agora apresenta-se como o partido da modernização social, que conseguirá o maior equilíbrio social que as circunstâncias permitirem, que defende os direitos das minorias e, sobretudo, que promove um Estado eficiente e sem corrupção. Isso significou uma rápida reação perante a mudança na situação política interna: até poucos meses atrás, o principal confronto na Grécia era entre aqueles que se opunham à austeridade e aqueles que a reivindicavam. Depois de Tsipras se submeter em Bruxelas, o sistema partidário passou a se dividir entre os herdeiros do clientelismo e o ar fresco dos renovadores. O Syriza baseou sua campanha eleitoral nesse esquema.

Isso implica uma diferença em relação à Unidade Popular do ex-ministro de Energia Panagiotis Lafazanis, que pouco antes das eleições se separou da coalizão e hoje continua exigindo a interrupção incondicional da política de recortes. Mas o partido de Tsipras também demonstrou ter uma melhor compreensão política se comparado com as demais forças de seu próprio setor. Para além de qualquer divergência, todas as correntes situadas à esquerda do Syriza são unidas pelo apelo visceral à soberania nacional. Segundo seu critério comum, somente uma ruptura com o euro ou inclusive com a União Europeia permitirá à Grécia adotar uma política econômica que defenda os interesses da maioria da população. Os votantes não quiseram segui-los nesse caminho: a soma dos votos da Unidade Popular, do Partido Comunista (kke, na sigla em grego) e da frente ultraesquerdista de Antarsya mal superou os 9%. Essas forças vão em uma direção equivocada porque não percebem a própria perda de soberania: em um país dependente das importações, sem uma indústria significativa ou possibilidade de obter créditos nos mercados financeiros, o governo fica submetido a fortes restrições. O retorno ao dracma, a redistribuição e as nacionalizações não seriam suficientes para pôr fim à austeridade; mesmo com essas medidas, Atenas se veria obrigada a administrar sua economia em um contexto de escassez. Apenas mediante créditos externos seria possível terminar com a política de recortes, embora pareçam vãs as esperanças que alguns defensores esquerdistas do dracma depositam na Rússia ou na China, restando unicamente o Fundo Monetário Internacional (fmi), cujas preferências econômicas são conhecidas.

Dada esta situação, não cabem dúvidas, como reconheceu Tsipras, de que a melhor opção é renunciar à soberania a favor da ue. O problema é que, durante longo tempo, seu próprio partido não prestou muita atenção à Europa e subestimou o significado das instituições de poder no plano continental. Giorgos Chondros, membro do Comitê Central do Syriza, faz uma dura autocrítica e aponta para «a inutilidade de nossa posição voluntarista, de acreditar que era possível terminar com a política de austeridade em um único país da ue»5.

Hoje o Syriza deve tornar efetiva sua missão autoimposta como partido da modernização e se encontra, assim, diante de uma tarefa gigantesca devido à longa tradição clientelista do país. Se fossem reduzidas ostensivamente a desigualdade e a pobreza, o governo obteria a legitimidade necessária na luta contra a corrupção e a evasão fiscal, mas é difícil concretizar essa meta sob as condições do programa europeu de créditos.

A tarefa de renovação não encaixa, no entanto, com a incorporação dos Gregos Independentes na coalizão. Embora esse partido não pertença ao antigo establishment, está longe de representar a liberalização social; apenas um dia após o juramento do novo gabinete, um vice-ministro pertencente a esse agrupamento viu-se forçado a renunciar ao cargo após o escândalo provocado por seus numerosos tuítes de corte antissemita e conspiracionista. Esses atritos políticos poderiam continuar afastando a base partidária. Uma parte significativa de seus membros já se distanciou em decorrência do frustrante resultado das negociações levadas a cabo em julho; Tsipras tem ficado então cada vez mais dominante. Várias provas de fogo esperam pelo Syriza no futuro.

Podemos e a antipolítica

A esquerda alternativa da Espanha, à qual pertence o Podemos, poderia promover importantes medidas, como já fez nas cidades que governa. Nelas, por exemplo, suspenderam os despejos forçados de proprietários de moradias altamente endividados e começaram a adotar iniciativas de boas-vindas aos refugiados.

Até agora, no entanto, a cúpula do Podemos aposta expressamente no populismo6. Assim, tenta canalizar um estado de ânimo que se encontra muito difundido, não só na Espanha: esta posição antipolítica rejeita em bloco toda a direção política, acusada de não representar a vontade popular. Trata-se de um reflexo que só faz limitar o horizonte político. Nos movimentos europeus de protesto dos últimos anos, em meio à grave crise econômica, a crítica ao capitalismo já passara estranhamente a um segundo plano. O alvo dos ataques massivos foram os partidos tradicionais, que não haviam proporcionado nenhuma proteção contra as turbulências do mercado7. Os indignados da Espanha concluíram então que a diferenciação entre esquerda e direita era obsoleta. O Podemos retoma essa ideia e explica que o verdadeiro antagonismo está entre «os de cima» e «os de baixo». Em essência, recorre a um conceito pré-moderno, que marca «o regresso a essa perigosa divisão entre o príncipe e os povos»8. Isso pode fazer com que se percam de vista tanto os diversos interesses da população como as diferenças políticas entre os partidos tradicionais.

Sob a condução de seu secretário-geral Pablo Iglesias, a cúpula do Podemos assume deliberadamente esta posição. Seu objetivo era aproveitar o grande apoio gerado na sociedade pelo movimento dos indignados e transformá-lo em uma união multissetorial que aglutinasse as pessoas endividadas e empobrecidas. Nessa tentativa aparentemente sensata de se tornar um partido de alcance nacional, segue o exemplo do Syriza. Cabe destacar que a coalizão grega liderada por Tsipras conseguiu se instalar como força principal não apenas dentro de seu âmbito acadêmico urbano, mas também em bairros populares e em áreas rurais.

Porém, no caso de Iglesias, o limite entre a necessária popularidade e o perigoso populismo aparece nebuloso. Por exemplo, o líder do Podemos apela aos dois conceitos da esquerda espanhola que haviam se transformado em tabu a partir da Guerra Civil: ele invoca a «soberania nacional» e faz alusão à «pátria». Não se trata de uma reintrodução inócua do vocabulário patriótico, mas sim de uma política identitária deliberada. O Podemos diz «as pessoas» (la gente) e não «o povo» (el pueblo), não visualiza um sujeito etnicamente definido, embora busque forjar um povo unido. Tal como sustentam os estrategistas partidários sob o marco teórico de Ernesto Laclau e Chantal Mouffe, os interesses comuns não criam necessariamente um sentimento de pertencimento. Portanto, é preciso construir esse sentimento e «estabelecer uma nova ‘vontade popular’», como assinala Errejón com toda franqueza9. Dessa forma, o povo unido deve ser gerado a partir de cima. Isso lembra uma concepção um pouco mais antiga, segundo a qual o proletariado era produzido como sujeito político pelo partido de vanguarda10.

O Podemos apresenta como antagonista «a casta», na qual inclui todos os setores privilegiados da política, da economia e da mídia. Desse modo, o partido joga deliberadamente o jogo da antipolítica. E o faz com sucesso: agora o conceito passou a fazer parte da linguagem cotidiana na Espanha e é utilizado não só no círculo do Podemos; o processo viu-se favorecido, também, pelos numerosos escândalos de corrupção nos partidos tradicionais. Isso corresponde a uma compreensão problemática da política, que o jovem partido tomou emprestada mais uma vez de Laclau. De acordo com ela, toda política genuína é populista, enquanto o resto cai dentro da categoria de tecnocracia. Sob esta definição arrogante, que estabelece que a ação política fica reduzida aos populistas, vê-se também afetada a possibilidade de alianças com outros partidos. Note-se, por exemplo, a dificuldade para alcançar um acordo eleitoral com a Esquerda Unida.

Para não pôr em risco a unidade dos descontentes na luta contra a casta, o Podemos não se define nem sequer como esquerda. Pelo mesmo motivo, evita questões controversas: não questiona o sistema monárquico nem se expressa claramente sobre o tema do aborto. As próprias alternativas programáticas do partido ficam relegadas. A organização conta com um plano econômico neokeynesiano e, da mesma forma que o Partido Socialista Operário Espanhol (psoe), com o assessoramento do economista-estrela Thomas Piketty.

O cálculo pensado para aparecer como a força geral da renovação não deu o resultado esperado: a maioria dos partidários do Podemos pertence à esquerda e provém principalmente dos setores médios, sobretudo do âmbito acadêmico. Além disso, a estratégia se entrecruza com a do partido Ciudadanos, de tendência liberal-conservadora. Trata-se de um agrupamento que também é relativamente jovem e que critica duramente os partidos tradicionais, embora aposte na continuidade econômica. Desse modo, o Podemos perdeu sua aura de única força representante do novo. Dado que agora a contraposição inclui dois partidos velhos e dois de formação recente, a dicotomia esquerda-direita volta a adquirir importância.

Independentemente disso, o Podemos continua se reivindicando como o autêntico representante da vontade majoritária. Seu popular líder aparece como o fiador da própria estabilidade. Antes de sua etapa como político, Iglesias era um conhecido apresentador de televisão e professor universitário, e atualmente também conduz dois programas de debates. Até hoje, o Podemos é guiado por um pequeno grupo que gira em torno do famoso secretário-geral e justifica seu «centralismo de cores leninistas»11 pela proximidade das eleições e da necessidade de ter solidez organizativa para essa instância.

A demonstração da vontade de poder por parte da cúpula do Podemos deixa claro que aprendeu o significado das instituições e cria a esperança de estarmos diante de uma força que efetivamente quer e pode mudar alguma coisa. Entretanto, o estilo de liderança autoritária desbarata tanto o próprio discurso (que prega a democracia de base) como as aspirações dos seguidores do Podemos. Porque o partido vive da maior necessidade de participação que existe na sociedade espanhola. O movimento dos indignados promoveu a auto-organização e a responsabilidade própria, e o Podemos retomou esse impulso: por todo o país, há cerca de 900 círculos nos quais os membros do partido e as pessoas interessadas podem discutir acerca de diferentes conteúdos e estratégias. Não obstante, o resultado dos debates praticamente não chega até as altas esferas. Cada vez mais, a cúpula comanda o partido como uma empresa política que «tenta se posicionar no mercado das opiniões através de estratégias inteligentes de comunicação»12.

Sem perspectivas com Beppe Grillo

Existe mais alguém que fez exatamente o mesmo à perfeição: Beppe Grillo, o chefe do Movimento 5 Estrelas da Itália, demonstra como é possível imobilizar uma base ativa. Quando em 2013 seu partido obteve surpreendentemente mais de 25% dos votos, ainda era considerado por muitos como uma força da esquerda em seu sentido mais amplo. Na realidade, o movimento 5 Estrelas se dirigia a setores ecologistas e críticos da globalização. No entanto, da mesma forma em que o ex-comediante de televisão destaca o caráter informal de seu grupo, sua autoridade no seio interno é absoluta. Grillo dirige o Movimento como uma empresa e se reserva o direito de demitir regularmente os membros malvistos. Isso inclui aqueles representantes parlamentares que não se atêm estritamente ao fundamentalismo opositor de seu chefe.

No ponto em que Iglesias até agora fracassa, Grillo teve sucesso: serve satisfatoriamente a uma posição antipolítica contra aqueles que, segundo sua denominação, também fazem parte da casta. E leva a postura pós-ideológica a tal extremo que nem sequer estabelece uma separação clara em relação ao neofascismo13. Nesse terreno, Grillo tira proveito do trabalho prévio de Silvio Berlusconi, que assentou o populismo na cultura política italiana e o fez de tal maneira que até o primeiro-ministro Matteo Renzi, do Partido Democrático (pd), recorre a esse tipo de retórica.

Grillo canaliza assim a frustração pela falta de perspectivas e pela política de austeridade: a debilidade dos partidos situados à esquerda do pd pode ser atribuída essencialmente à política do líder do 5 Estrelas. Suas respostas, porém, não são de esquerda sob nenhum ponto de vista; elas distorcem os conflitos: Grillo responsabiliza os idosos pelo alto desemprego juvenil e vincula o euro à política econômica neoliberal do continente. Dentro dessa linha, chama a abandonar a moeda comum e faz acordos no Parlamento Europeu com o direitista Partido da Independência Britânico (ukip, na sigla em inglês).

Europa: soberania compartilhada, bem comum

Quando a nova esquerda reclama soberania, parte de uma pergunta correta, embora por vezes ofereça uma resposta falsa. Iglesias, por exemplo, chegou inclusive a afirmar recentemente que o presidente François Hollande não tinha se comportado como um «bom patriota francês» ao se submeter a Merkel em matéria de política europeia14. Mas Hollande não falhou apenas porque rompeu a promessa que fizera aos votantes de seu país de pôr fim à austeridade; o mais grave foi ele ter perdido a oportunidade de mudar o rumo da Europa, o que teria beneficiado os setores precarizados que Iglesias representa, cujos interesses são os mesmos em todo o continente.

A nova esquerda deveria representar esses interesses europeus. Afinal de contas, dentro de um mundo globalizado, a soberania se materializa cada vez menos no Estado nacional. A tarefa que resta consiste em lutar pela soberania do demos e pelos direitos da população a determinar o futuro da sociedade. Para tanto, precisamente na área da política econômica, o plano europeu termina sendo decisivo. Tsipras anunciou que quer introduzir novas mudanças. Iglesias deverá demonstrar qual é a sua aptidão para favorecer alianças na Europa e provavelmente deverá fazê-lo em breve.

O tempo urge porque Bruxelas se dispõe a presenciar um confronto determinante. Tanto o ministro alemão de Finanças, Wolfgang Schäuble, como o ministro francês de Economia, Emmanuel Macron, têm analisado as consequências da crise na zona do euro: ambos sustentam que, sem novas instituições, haverá uma queda da moeda comum. Mas enquanto Schäuble quer estabelecer uma supervisão do euro para vigiar o cumprimento das regras, Macron – discutido entre a esquerda francesa – propõe um Ministério de Finanças para a zona do euro, que estaria subordinado a uma segunda e nova câmara do Parlamento Europeu. As ideias de Schäuble apontam para um controle tecnocrático; as de Macron, para um debate democrático.

Se fosse aprovada uma reforma da zona do euro como a promovida pela França, que também prevê políticas de transferências, aumentaria consideravelmente a margem de ação de países como a Grécia. Mas para que isso ocorra, será necessário que Paris obtenha respaldo. A nova esquerda pode demonstrar então que sua vontade transformadora não se limita ao âmbito nacional.

  • 1.

    Vide A. von Lucke: «eu in Auflösung? Die Rückkehr der Grenzen und die populistische Gefahr» em Blätter für deutsche und internationale Politik No 10/2015.

  • 2.

    John Cassidy: «Five Things Jeremy Corbyn Has Right» em The New Yorker, 14/9/2015, disponível em www.newyorker.com.

  • 3.

    A. von Lucke: Die Schwarze Republik und das Versagen der deutschen Linken, Droemer, Munique, 2015, p. 126.

  • 4.

    Vide Michael R. Krätke: «Corbyns Sieg: Hoffnung für Europas Linke?» em Blätter fur deutsche und internationale Politik No 10/15.

  • 5.

    G. Chondros: Die Wahrheit über Griechenland, die Eurokrise und die Zukunft Europas. Der Propagandakrieg gegen Syriza, Westend, Frankfurt, 2015, p. 184.

  • 6.

    V. o interessante debate entre Íñigo Errejón, estrategista do Podemos, e Alberto Garzón, líder da Esquerda Unida em 19 de novembro de 2014: «Ante la duda: populismo» [Na dúvida: populismo], disponível em Transform! Red Europea para el Pensamiento Crítico y el Diálogo Político, www.transform-network.net.

  • 7.

    Vide S. Vogel: Europa im Aufbruch. Wann Proteste gegen die Krisenpolitik Erfolg haben, Laika, Hamburgo, 2014.

  • 8.

    Jacques de Saint Victor: Die Antipolitischen. Mit einem Kommentar von Raymond Geuss, Hamburger Edition, Hamburgo, 2015, p. 27.

  • 9.

    «Ante la duda: populismo», op. cit.

  • 10.

    Vide Benedetto Vecchi: «L’antisistema si fa governo» em Il Manifesto, 24/7/2015.

  • 11.

    César Rendueles e Jorge Sola: «Podemos y el ‘populismo de izquierdas’. ¿Hacia una contrahegemonía desde el sur de Europa?» em Nueva Sociedad No 257, 7-8/2015, p. 39, disponível em www.nuso.org.

  • 12.

    Raúl Zelik: Mit Podemos zur demokratischen Revolution? Krise und Aufbruch in Spanien, Bertz + Fischer, Berlim, 2015, p. 175.

  • 13.

    V. a entrevista com Giuliano Santoro em: «Grillo bietet einfache Lösungen» em Jungle World, 7/3/2013.

  • 14.

    Léa Salamé: «Pablo Iglesias: ‘François Hollande aurait dû être plus courageux devant l’Allemagne’», entrevista em France Inter, 9/9/2015.

Este artículo es copia fiel del publicado en la revista Nueva Sociedad , Agosto 2016, ISSN: 0251-3552


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