Tema central
NUSO Nº Julho 2018

Empreendedores jurídicos como empreendedores morais Combate à corrupção e moralização da política brasileira

Empreendedores jurídicos como empreendedores morais  Combate à corrupção e moralização da política brasileira

Introdução

O presente artigo busca apresentar as referências básicas para uma interpretação, ainda em desenvolvimento, do combate criminal à corrupção como uma forma de moralização da política. A hipótese não é nova, e já vem sendo explorada pela sociologia política da justiça, e por estudos antropológicos sobre a corrupção; neste texto, buscarei apresentar uma interpretação contruída em torno de alguns referenciais teóricos específicos, que articulam a criminologia à sociologia política da justiça – e também, de certa forma, à antropologia da corrupção e à sociologia (da) moral – e, desta forma, permitem uma investigação mais detalhada dos aspectos propriamente criminológicos e dos aspectos sociojurídicos e político-institucionais do combate criminal à corrupção como moralização da política.

O primeiro desses referenciais teóricos é a ideia de que todo processo de criminalização – entendido como criação legislativa de novas condutas criminosas típicas, mas também de atribuição interpretativa de caráter criminoso a práticas e sujeitos concretos – é também um processo de classificação moral, de atribuição de sentidos morais a sujeitos e práticas sociais, tidos como inaceitáveis, desviantes, criminosos. Na segunda seção do texto, buscarei demonstrar como o processo de internacionalização do combate criminal à corrupção pode ser entendido como um processo de criminalização, no sentido de estabelecimento de padrões morais relativos à política, à economia e à relação entre países na ordem global.

Essa análise me levará à consideração de que processos de estabelecimentos de regras morais sobre práticas e sujeitos, como o processo de internacionalização do combate criminal à corrupção, podem ser caracterizados como uma cruzada moral, lavada a cabo por empreendedores morais. O conceito de empreendedorismo moral é, portanto, o segundo referencial teórico da interpretação aqui pretendida, e que buscará destacar a agência no processo de criminalização, tanto no que se refere à constituição de atores protagonistas desse processo de imposição de novas moralidades, quanto na identificação do sentido social das ações desses empreendedores.

Aliado a esse conceito, mobilizarei o conceito de empreendedorismo jurídico, extraído de um referencial teórico da sociologia do direito que se dedica ao entendimento da internacionalização e da transformação dos campos jurídicos nacionais na globalização neoliberal. Combinado ao conceito de empreendedorismo moral, o empreendedorismo jurídico permitirá que os agentes judiciais responsáveis pela cruzada moral do combate criminal à corrupção sejam considerados também inovadores e importadores de práticas, doutrinas e instituições jurídicas que, difundidas na ordem global pós-Guerra Fria, são interiorizadas no campo jurídico brasileiro pelo trabalho desses empreendedores.

A «revolução moral» da internacionalização do combate à corrupção

A internacionalização do combate à corrupção é elemento conhecido da literatura sobre o tema desde o início da ordem global pós-Guerra Fria. Em geral, esses estudos focam a emergência de organizações, normas e mecanismos de cooperação, de direito internacional público e privado, voltados tanto para o combate à corrupção em transações internacionais como para a difusão de reformas institucionais domésticas, orientadas por padrões internacionais.

Dentre essas organizações, normas e mecanismos, os principais são: a Declaração sobre Investimento Internacional e Empresas Multinacionais, com pontos específicos sobre suborno transnacional, elaborada pela Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (ocde) em 1976; as Recomendações para o Combate à Extorsão e ao Suborno em Transações Comerciais, formuladas pela Câmara de Comércio Internacional (cci) em 1977; a Convenção das Nações Unidas Contra o Tráfico Ilícito de Entorpecentes (Convenção de Viena), que inclui medidas de combate à corrupção, por meio de mecanismos de criminalização da lavagem de dinheiro e de restrição ao sigilo bancário, de 1988; a fundação, em 1989, da Financial Action Task Force (fatf), organização intergovernamental voltada para o combate à lavagem de dinheiro, como desdobramento da Convenção de Viena; a fundação, por ex-executivos do Banco Mundial, da organização não-governamental de atuação internacional Transparência Internacional, em 1993; a recomendação aos Estados-membros da ocde para a adoção de medidas efetivas de prevenção e combate à corrupção em transações comerciais internacionais, em 1994; a criação do Grupo de Davos, na reunião do Fórum Econômico Mundial em 1995, como uma associação informal de empresários, funcionários públicos e especialistas para o estudo do problema da corrupção; a recomendação aos Estados-membros da ocde de abolição de mecanismos de dedução de taxação de subornos como «despesas comerciais», em 1996; a Convenção Interamericana Contra a Corrupção, editada pela Organização dos Estados Americanos (oea) em 1996; as regras de autorregulação corporativa e recomendações para governos e organizações internacionais, elaboradas pela cci em 1996; a revisão de regras de prevenção à corrupção na contratação de projetos financiados pelo Banco Mundial, em 1996; a declaração da Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (onu), de 1996, conclamando os membros da organização a adotarem medidas efetivas e concretas de combate a todas as formas de corrupção e outras práticas ilícitas em transações comerciais internacionais; a proposição, pela Organização Mundial do Comércio (omc) em 1997, de estudo sobre transparência e procedimentos de contratação governamentais; a Convenção sobre o Combate da Corrupção de Funcionários Públicos Estrangeiros em Transações Comerciais Internacionais, da ocde, em 1997; a criação do Global Corporate Governance Forum, uma entidade dedicada ao aperfeiçoamento da governança corporativa em países em desenvolvimento e mercados emergentes, incluindo questões relativas à corrupção, em uma parceria do Banco Mundial e da ocde em 1999; e a Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional (Conveção de Palermo), no ano 2000.

A síntese acima não pretende ser exaustiva, mas tão somente apresentar algumas iniciativas internacionais recorrentemente citadas em estudos sobre o combate internacional à corrupção; além disso, é preciso observar que as iniciativas listadas acima em geral produzem efeitos duradouros – como nos casos das convenções internacionais ou da ação da Transparência Internacional – ou produzem novas iniciativas pontuais, como é o caso da atualização das recomendações elaboradas pela fatf em 1996, 2001, 2003, 2012 e 2018. De qualquer forma, sua análise nos permite indicar alguns elementos importantes para a construção da interpretação aqui pretendida.

O primeiro deles tem a ver com a forte conexão entre os planos internacional e nacional que as medidas estabelecem, uma vez que se baseiam majoritariamente em recomendações a países membros de organismos internacionais, ou a compromissos assumidos por esses países para adotarem, em seus sistemas políticos e legislativos próprios, medidas de combate à corrupção doméstica e internacional, além de se engajarem em mecanismos internacionais de cooperação. Embora esse elemento possa parecer uma obviedade aos analistas da dinâmica do direito e das relações internacionais – que operam principalmente por adesões nacionais voluntárias a normas internacionais, com frágeis mecanismos de efetivação e sanção dessas normas –, ele nos indica que a opção preferencial da estratégia internacional de combate à corrupção, mesmo quando se pensa no fenômeno em âmbito transnacional, é a de indução de reformas institucionais e legislativas de âmbito nacional. Nesse sentido, é imprescindível que a análise das mudanças institucionais do combate criminal à corrupção no Brasil e em outros países comparados tomem em conta o fator de indução da ordem global à reforma doméstica, em especial as reformas judiciais.

O segundo elemento relevante é o da centralidade da questão comercial como eixo de articulação do combate internacional à corrupção, que apenas secundariamente vai aparecer relacionada a agendas propriamente de justiça criminal e de segurança. Nesse sentido, destaca-se a Convenção de Viena, de 1988, documento internacional orientador de várias políticas nacionais de combate criminal à corrupção e que é capaz de conectar duas dimensões do problema da corrupção que serão analisadas mais adiante: a eficiência da governança política e econômica e a virtude de uma ordem global comprometida com a erradicação de crimes que causam forte repulsa moral, como o tráfico de drogas e o terrorismo.

Esse segundo elemento nos leva ao exame de um terceiro fator que desponta da análise das iniciativas internacionais listadas anteriormente: a concentração das iniciativas internacionais na década de 1990, justamente o período de maior expansão do livre comércio, da virtualização digital das finanças internacionais e da abertura dos chamados mercados emergentes. Por fim, e também em conexão com esse último elemento, destaca-se a importância da ocde como grande propulsora dessas iniciativas, seja pelo pioneirismo ainda ao final dos anos 1970, seja pela recorrência com que participa da construção de padrões internacionais de combate à corrupção, sozinha ou ao lado de outras organizações, como o Banco Mundial.

Uma análise mais detida das iniciativas envolvendo a ocde nos permite inserir os Estados Unidos nos processos históricos e institucionais aqui interpretados. As primeiras iniciativas formuladas pela organização tiveram forte influência do governo estadunidense ainda nos anos 1970. O país já havia tentado construir junto ao Conselho Econômico e Social da onu (ecosoc) um acordo internacional sobre pagamentos ilícitos, iniciativa que foi abandonada em 1979 em função do clima de desconfiança da Guerra Fria, das acusações dos países industrializados de que os eua tentavam estabelecer por canais internacionais uma política unilateral, e das tentativas de países em desenvolvimento de incluírem no conceito de «pagamentos ilícitos» os recursos destinados ao regime do apartheid na África do Sul. Embora a declaração de 1976 da ocde seja considerada pouco eficaz, os esforços estadunidenses junto à organização foram bem-sucedidos com as recomendações de 1994 e 1996, tidas como indutoras de mudanças efetivas no âmbito doméstico dos Estados-membros.

Outra forte influência dos eua na internacionalização do combate à corrupção é o Foreign Corruption Practices Act (fcpa, Lei sobre Práticas de Corrupção no Exterior), legislação doméstica estadunidense de 1977 cujo alcance extraterritorial explica, inclusive, os esforços do país em construir as normativas internacionais mencionadas anteriormente, junto à onu e à ocde. Elaborada na reação aos escândalos de Watergate (que envolveu pagamentos ilegais de empresas à campanha de reeleição do então presidente Richard Nixon) e da empresa Lockheed (que envolveu o pagamento de propinas pela empresa estadunidense a funcionários públicos japoneses, levando à renúncia e à condenação do então primeiro-ministro Kakuei Tanaka), essa legislação estabeleceu alcance extraterritorial do law enforcement estadunidense sobre suas empresas nacionais, por atos de corrupção praticados por elas em outros países.

As restrições impostas pelo fcpa a empresas estadunidenses na competição local e internacional, bem como a resistência moral e política à reversão dessa legislação em curto prazo, fizeram com que o lobby dos interesses empresariais impulsionasse a diplomacia dos eua a exportar os padrões de restrições e criminalizações aplicados às suas empresas nacionais para a dinâmica da competição entre empresas no âmbito global. Nos anos 1980, o fcpa foi emendado para que sua aplicação alcançasse também empresas estrangeiras atuantes no território dos eua, acusada de atos de corrupção mesmo em outros países.

Talvez por isso, analistas desse processo de internacionalização, visivelmente entusiasmados com ele ainda nos anos 1990, falem de uma «revolução moral». É comum afirmar-se que o problema da corrupção articula dimensões morais e legais; nesse sentido, o processo da sua internacionalização como uma força revolucionária ou como parte de uma ética global teria dois aspectos que, na presente análise, serão explorados de maneira crítica.

O primeiro deles é a associação feita, por esse discurso moral, da corrupção como empecilho à livre concorrência e à livre circulação de mercadorias, vetores da ordem global neoliberal. A perspectiva de um predomínio definitivo das forças liberais na economia e na política que embalou os arautos da globalização neoliberal nos anos 1990 trazia consigo, portanto, a ideia de que nessa nova ordem a corrupção seria desfuncional e, portanto, intolerável. Nesse primeiro aspecto, a concepção de uma governança global, ética e funcional abrange tanto a economia como a política, ou seja, tanto a gestão das empresas como dos Estados, articulando virtude e eficiência.

O segundo aspecto do processo de internacionalização do combate criminal à corrupção como parte de uma ética global diz respeito às relações de poder que se estabelecem entre os países na ordem pós-Guerra Fria. Para vários dos analistas daquele período, e especialmente os especialistas no tema que emergeriam e se consolidariam no debate internacional nos anos posteriores, o problema da corrupção, enquanto problema moral e criminal, é essencialmente conectado aos países em desenvolvimento e que passam por processos de transição política e abertura econômica, e mantêm índices erráticos de crescimento e pobreza persistente.

Mecanismos de exportação e importação da ética global e das políticas anticorrupção

Os processos de exportação e importação do combate criminal à corrupção, estabalecidos nos padrões morais acima descritos, se deram por diferentes mecanismos, sintetizados no diagrama abaixo.

Podemos identificar basicamente quatro mecanismos de difusão e institucionalização da moral global anticorrupção, por meio da formulação e da indução de políticas e legislações domésticas: a) dos eua para organizações internacionais; b) das organizações internacionais para os demais países; c) pelos percursos institucionais bilaterais de difusão de expertise e exportação-importação de modelos e práticas institucionais entre eua e outros países; e d) pela circulação internacional de juristas, associada parcialmente ao mecanismo anterior.

No primeiro caso a), trata-se do tipo de processo já ilustrado com o caso do fcpa e da relação dos eua com a ocde; trataremos agora das outras três possibilidades, tendo por referência a incorporação pelo Brasil dos modelos institucionais produzidos no âmbito dessa nova moralidade global da governança política e econômica.

Dentre os principais instrumentos legislativos utilizados pelo Brasil em suas estratégias de combate à corrupção, estão a Lei da Improbidade Administrativa (lei Nº 8429/1992), a Lei de Lavagem de Dinheiro (lei Nº 9613/1998) e a Lei das Organizações Criminosas (lei Nº 9034/1995, revogada posteriormente pela lei Nº 12850/2013). Todas as três surgiram nos anos 1990, no contexto político no qual coincidem a instauração de uma nova ordem constitucional no Brasil, e a inserção do país em uma ordem econômica aberta e global.

Embora não haja na exposição de motivos da Lei de Improbidade Administrativa qualquer referência ao espaço global ou a diretrizes de organismos internacionais, ela pode ser considerada como parte da construção institucional da rede de accountability do Estado brasileiro alinhada aos padrões das democracias contemporâneas. Já nas outras duas legislações, as referências ao contexto global são evidentes. No caso da Lei de Lavagem de Dinheiro – que não apenas definiu crimes e procedimentos de responsabilização, mas também instituiu o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (coaf) como importante inovação institucional –, há expressa referência, em sua exposição de motivos, a compromissos internacionais assumidos pelo Brasil, com destaque para a já citada Convenção de Viena, o Regulamento Modelo sobre Delitos de Lavagem Relacionados com o Tráfico Ilícito de Drogas e Delitos Conexos, elaborado pela Comissão Interamericana para o Controle do Abuso de Drogas (cicad) em 1992, e também a Declaração de Princípios da Conferência Ministerial sobre a Lavagem de Dinheiro e Instrumento do Crime, realizada em Buenos Aires em 1995.

Já no caso da Lei de Organizações Criminosas, a justificação de sua primeira versão relaciona como objetivos do alcance da lei «tráfico ilícito de drogas, exploração de lenocínio, tráfico de crianças, furto de veículos, contrabando e descaminho, terrorismo e os chamados crimes de colarinho branco»; e prossegue, clamando pela necessidade de defesa contra os riscos «à sociedade internacional, à ordem econômico-financeira e às instituições públicas e privadas».

Outro dos mecanismos de difusão de modelos de combate criminal à corrupção é a difusão direta de políticas e práticas dos eua para os países periféricos (c), especialmente por meio do Departamento de Estado (a partir de agora identificado como dos) e do Departamento de Justiça (aqui identificado como doj) do governo estadunidense.

No caso do dos, destacam-se as ações classificadas como «esforços anticorrupção» do governo dos eua, que incluem: - prevenção da corrupção e aumento da accountability, por meio de assistência direta a governos e cidadãos de países comprometidos com o combate à corrupção e com reformas para o fortalecimento de instituições democráticas; - fortalecimento da efetividade da lei (law enforcement) além das fronteiras, por meio de parcerias internacionais para cooperação entre agências de justiça e segurança no sentido de compartilhamento de informações, recursos e ferramentas de investigação e recuperação de ativos resultantes de corrupção; - foco na conexão entre corrupção e segurança, por meio de ações que evidenciem como a corrupção ameaça a segurança nacional e a capacidade dos Estados nacionais de proteger cidadãos, impedir atos de terrorismo e defender a soberania nacional.

No caso do doj, foi possível identificar a importância das atividades da Unidade de Estratégias, Políticas e Treinamento, da Seção de Fraudes daquele órgão, e que incluem, entre outras medidas:

- coordenar a vasta experiência da seção no manejo de casos complexos e multijurisdicionais no intuito de lutar estrategicamente contra crimes econômicos sofisticados; - desenvolver e implementar junto a outras unidades iniciativas de ação estratégia para identificar e combater o surgimento de crimes do colarinho branco; - coordenar esforços interinstitucionais e intergovernamentais para aplicação da lei; - aumentar a cooperação entre agências nacionais e internacionais de aplicação da lei, bem como dos procuradores dos eua em todo o país.

É no âmbito desses dois conjuntos de políticas do dos e do doj que podemos entender, por exemplo, a cooperação internacional entre Brasil e eua e a existência de processos de responsabilização nas duas jurisdições nacionais em casos recentes de corrupção no Brasil – como os da Odebrecht, da Braskem e da jbs, todas elas empresas brasileiras com atuação internacional, investigadas por práticas de corrupção no âmbito da operação Lava Jato e que sofreram processos administrativos e judiciais no Brasil e nos eua.

Por fim, e para finalmente chegar ao ponto que mais nos interessa neste artigo, devemos destacar a influência da circulação internacional de juristas (d) como mecanismo de exportação e importação de modelos de combate criminal, práticas jurídicas e discursos morais sobre a corrupção. É no âmbito da análise da circulação internacional de juristas e da internacionalização dos campos jurídicos nacionais que Yves Dezalay1 formula a noção de empreendedores jurídicos (legal entrepreneurs), para analisar a capacidade que determinados juristas, portadores de estruturas diferenciadas de capitais jurídicos, políticos e sociais, têm de participar ativamente daqueles processos de exportação e importação de práticas e modelos jurídicos e de produzirem inovações nos seus campos jurídicos de origem, após passagens acadêmicas e de qualificação profissional em instituições acadêmicas e judiciais dos eua.

Os empreendedores jurídicos seriam, portanto, os agentes das tranformações operadas em nível estrutural pelas mudanças na ordem global (a emergência de uma nova ética da governança política e econômica global) e pelas reformas institucionais (por meio das quais modelos de políticas e legislações de combate à corrupção são difundidos na ordem internacional e interiorizadas por países periféricos como o Brasil). Os estudos sobre as transformações do campo jurídico brasileiro trazem diversas evidências desse processo, no qual mudanças culturais e institucionais do direito e das práticas jurídicas brasileiras são relacionadas a trajetórias de juristas que investem em especialização e acúmulo de capitais simbólicos, por meio de trânsitos internacionais acadêmicos e profissionais, que dão ao direito estadunidense centralidade como referência política e cultural dessas transformações.

No caso do protagonismo judicial recentemente explicitado pela operação Lava Jato, evidências de empreendedorismo jurídico estão presentes nas trajetórias de figuras importantes daquela articulação policial e judicial. É o caso do juiz Sérgio Moro, responsável pelos processos da operação na primeira instância da Justiça Federal, inclusive aqueles que levaram à condenação do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, e que antes disso já havia atuado em outros casos importantes de corrupção (o caso do Banestado, considerado «embrião» da Lava Jato, e no chamado «mensalão», como assessor da ministra Rosa Weber, do Supremo Tribunal Federal). Não apenas a vara judicial na qual atua Moro, na cidade de Curitiba, é especializada em crimes financeiros (o que demonstra a institucionalização de modelos e políticas de combate à corrupção pelo Judiciário brasileiro no âmbito de suas reformas ao longo dos anos 1990 e 2000), como também o próprio magistrado, individualmente, investiu em qualificação acadêmica e profissional nessa área (é doutor em Direito e professor universitário, com artigos, livros e traduções sobre crimes financeiros e mecanismos de combate a eles, e realizou cursos de aprimoramento nos eua, sendo um deles no Program of Instruction for Lawyers, na Harvard Law School, e outro deles oferecido pelo dos, com foco na prevenção e combate à lavagem de dinheiro).

Também é o caso dos procuradores da República que compõem a força-tarefa do Ministério Público Federal (mpf) dedicada à operação Lava Jato. Todos os seus membros realizaram investimentos profissionais na especialização no combate à corrupção em momentos anteriores de sua carreira no mpf, e também em outras carreiras eventualmente exercidas anteriormente, como a procuradora Isabel Groba Vieira, que foi auditora do Tribunal de Contas da União; pelo menos cinco deles têm mestrado e/ou doutorado em Direito, sendo um deles, o procurador Orlando Martello Junior, mestre em Gestão e Políticas Públicas.

Porém, são as trajetórias dos procuradores Deltan Martinazzo Dallagnol (coordenador da força-tarefa) e Carlos Fernando dos Santos Lima (considerado o «decano» do grupo) que mais se aproximam das características do empreendedorismo jurídico e da circulação internacional de juristas que pretendo analisar. Dallagnol cursou o llm (Latin Legum Magister, ou Master of Laws, em tese equivalente a um mestrado no Brasil) na Harvard Law School, com pesquisa sobre provas circunstanciais no processo penal, por meio da qual claramente intenciona introduzir na prática jurídica brasileira novas formas de conceituação e tratamento investigativo e judicial das provas criminais; realizou cursos de aprimoramento no combate a crimes financeiros oferecidos pelo próprio mpf e pelo Ministério da Justiça, e tem produção bibliográfica dedicada aos temas da lavagem de dinheiro e colaboração premiada no processo penal.

Além da publicação, no Brasil, de seu trabalho realizado nos eua, Dallagnol é autor de livro sobre lavagem de dinheiro, em coautoria com outros quatro membros da força-tarefa da operação Lava Jato, dentre outros autores – incluindo o procurador Lima, que também atuou no caso Banestado, foi coordenador criminal da Procuradoria da República no Paraná e tem mestrado em direito pela universidade estadunidense Cornell, com foco em crimes financeiros.

Além disso, outros elementos da análise das trajetórias dos procuradores da Lava Jato indicam a conexão deles com circuitos internacionais de produção da expertise anticorrupção. Diogo Castor de Mattos foi representante do Brasil no Encontro Mundial de Peritos em Tipologias de Lavagem de Dinheiro, promovido pela fatf em 2014; Isabel Groba Vieira participou da construção do acordo do Brasil com a Suíça para bloqueios de valores oriundos de corrupção; e, finalmente, todos os procuradores da força-tarefa receberam dois prêmios importantes no circuito internacional do combate à corrupção: o prêmio de «órgão de persecução penal» de 2015, concedido pelo Global Investigations Review, um portal especializado em conteúdo anticorrupção e que produz anuários e guias de práticas e organizações públicas e privadas de investigação; e o Anti-Corruption Award, concedido pela Transparência Internacional em 2016.

Empreendedores jurídicos como empreendedores morais

Contudo, e como pretendo demonstrar, o protagonismo daqueles juristas não deve ser entendido apenas pelo seu empreendedorismo na introdução de mudanças institucionais e culturais no campo jurídico brasileiro, a partir de sua participação em circuitos internacionais de exportação e importação de práticas e modelos jurídicos de combate à corrupção. Mais do que apenas empreendedores jurídicos, no sentido técnico-profissional, aqueles juristas podem ser considerados verdadeiros empreendedores morais, nos dois sentidos sugeridos por Howard Becker2: o de impositores de regras e o de criadores de regras.

O primeiro sentido revela-se quando os juristas envolvidos com a Lava Jato claramente reforçam a dimensão moral sobre a dimensão legal da corrupção, em suas intervenções públicas a respeito do problema e da sua própria atividade profissional anticorrupção, atuando a partir do arcabouço jurídico e institucional já existente para o combate à corrupção. Isso fica evidente, por exemplo, quando os membros da força-tarefa comparam a corrupção a um câncer a ser extirpado pela sua ação judicial3, ou caracterizam um esquema de corrupção por eles investigado como «diabólico»4.

O segundo sentido se revela quando aqueles mesmos juristas, além de traduzirem em termos explicitamente morais suas práticas legais ordinárias, se projetam no espaço público como reformadores de leis e instituições, igualmente baseados nos conteúdos morais do problema da corrupção. Um dos protótipos dos criadores de regra é aquele que Becker chama de reformador cruzado:

Ele está interessado no conteúdo das regras. As existentes não o satisfazem porque há algum mal que o perturba profundamente. Ele julga que nada pode estar certo no mundo até que se façam regras para corrigi-lo. Opera com uma ética absoluta; o que vê é total e verdadeiramente mal sem nenhuma qualificação. Qualquer meio é válido para extirpá-lo.5

De maneira bastante explícita, a ideia de uma «cruzada» contra a corrupção é recorrente nas intervenções públicas dos empreendedores jurídicos e morais da Lava Jato. É assim, por exemplo, que o juiz Moro qualifica a operação Mani Pulite, que combateu a corrupção política e a máfia na Itália nos 1990 – «uma das mais exitosas cruzadas judiciárias contra a corrupção política e administrativa»6 – e na qual ele busca inspiração para o combate à corrupção no Brasil. A mesma expressão também aparece na fala do juiz Marcelo Bretas, responsável pelos desdobramentos da Lava Jato no Rio de Janeiro: «Estamos em uma cruzada contra a corrupção»7.

Nesse aspecto, intervenções públicas de Moro na conjuntura recente expõem outras características do reformador cruzado analisado por Becker: a insatisfação com as regras existentes, expressa na avaliação de que é preciso pressionar as «lideranças políticas emperradas» para que adotem «postura reformista» quanto à corrupção sistêmica («Mas é frustrante ver como isso é demorado»8, acrescenta ele); a ética absoluta, expressa na afirmação de que «a vergonha está com eles [opositores e críticos do movimento anticorrupção]»9; e a justificação dos meios necessários, caracterizados como «remédios excepcionais», «métodos especiais de investigação» e «medidas judiciais fortes» para a interrupção do «ciclo vicioso» da «corrupção sistêmica»10.

A ideia de uma cruzada reformista no combate à corrupção, com forte conteúdo moral, também está presente na ação dos procuradores do mpf, para além dos processos judiciais nos quais atuam, na construção de uma campanha pública pela reforma legal e institucional das políticas anticorrupção e pela conscientização. É nesse sentido que podemos entender a campanha «10 medidas contra a corrupção», que propõe uma série de alterações legislativas, e que tem nos próprios membros da força-tarefa da Lava Jato seus principais propagandistas e coordenadores, realizando palestras e participando de atividades de convencimento junto a organizações da sociedade civil, instituições judiciais e políticas – contando, inclusive, com a participação eventual do juiz Moro nessas atividades.

Também nessa dimensão da cruzada do mpf há a reprodução de uma ética absoluta, verificável nas fortes reações expressas pelos procuradores da força-tarefa quando suas propostas de reforma sofreram oposições ou tentativas de alteração na tramitação legislativa regular no Parlamento. Durante a Conferência sobre Suborno e Corrupção Internacional – organizada pelo doj, pelo Federal Bureau of Investigations (fbi) e pela Securities and Exchange Comission (equivalente à Comissão de Valores Mobiliários) dos eua em novembro de 2016 – a procuradora da República Thaméa Danelon, uma das mobilizadoras da campanha pelas «10 medidas», defendeu a aprovação integral das propostas do mpf «para que a sociedade, maior vítima do dinheiro subtraído dos cofres públicos, não seja penalizada, e os corruptos beneficiados»11.

Alguns dias depois, quando a Câmara dos Deputados aprovou as medidas do mpf, mas com alterações, a mesma procuradora considerou que a proposta original foi «completamente desfigurada», e desqualificou os críticos da proposta, ao afirmar que «o trabalho do Ministério Público, da Polícia e dos juízes está tentando passar o Brasil a limpo, mas aqueles que têm envolvimento com corrupção não querem, querem que continue como está ou piore»12. No mesmo sentido se manifestou o procurador Dallagnol, após o Congresso ter incluído na tramitação das «10 medidas» propostas para coibir o abuso de autoridade praticado por policiais, juízes e membros do Ministério Público em suas atividades de combate à corrupção; segundo ele, esse teria sido «o golpe mais forte efetuado contra a Lava Jato concretamente em toda a sua história» e afirmou a existência de «evidente conflito de interesses entre o que a sociedade quer e o que o Parlamento quer. Se instala a ditadura da corrupção»13.

Considerações finais: é possível a salvação pela mão direita do Estado?

Pensar o combate criminal à corrupção em suas dimensões morais e institucionais é importante para a compreensão dos processos legais, sociais e políticos de criminalização vis-à-vis seus conteúdos morais, que muitas vezes se escondem sob a formalidade institucional e os discursos oficiais. O entendimento dos conteúdos morais do combate criminal à corrupção, por sua vez, permite uma análise mais precisa dos pressupostos e dos efeitos da mobilização da «mão direita do Estado» – o conjunto de instituições econômicas e penais da governança neoliberal, dentre as quais podemos incluir as políticas e as moralidades anticorrupção globalmente emergentes nos anos 1990 – sobre a dinâmica política e social de jovens democracias como a brasileira.

O surgimento, nos anos 1990, de uma nova ética global para a governança democrática e capitalista impõe-se sobre os países em transição política e econômica, e serve de referência para a construção institucional dessas novas democracias liberais. O Brasil insere-se nesse processo, e é a partir dessa inserção que a relação entre corrupção, democracia e economia de mercado deve ser compreendida. Essa inserção, porém, é mediada por processos específicos de importação dos modelos institucionais e conteúdos morais das políticas anticorrupção. A produção legislativa do Estado brasileiro que busca incorporar esses modelos de política anticorrupção se dá também no bojo do processo de implementação de uma ordem constitucional democrática, economicamente intervencionista e socialmente generosa. Em grande parte fortalecidas por essa nova ordem constitucional, as mesmas instituições e carreiras jurídicas responsáveis pela afirmação das promessas constitucionais em termos de direitos sociais e políticas públicas são as protagonistas da cruzada anticorrupção que marca a conjuntura política dos últimos anos.

Concomitantemente ao fortalecimento institucional do sistema de justiça, a circulação internacional e o empreendedorismo de juristas fortalecidos em suas estruturas de capitais simbólicos (jurídicos, culturais, sociais, acadêmicos) ajudam a compreender os rumos e o protagonismo que as instituições judiciais tiveram nos últimos 30 anos, de portadoras de promessas de democratização a tutoras de uma democracia deslegitimada. No caso do combate criminal à corrupção, o empreendedorismo jurídico vem acompanhado de empreendedorismo moral, fazendo daqueles juristas – já bastante empoderados pela força da expertise jurídica nas novas configurações dos campos jurídico e político brasileiros – agentes políticos capazes também de levarem adiante uma cruzada moral reformadora, voltada não apenas para a modernização do direito e das instituições de justiça, mas também para a reforma moral da política, da economia e da sociedade brasileiras.

Nesse aspecto, o já conhecido voluntarismo político de instituições voltadas para a defesa de uma sociedade (tida por aquelas instituições como) hipossuficiente, até então constitucionalmente ancorado, extrapola os parâmetros institucionais e legais dados pela Constituição e pelas políticas anticorrupção consolidadas nos anos 1990 para projetar juízes e membros do Ministério Público como salvadores e reformadores de uma ordem política e econômica corrompida. Esse processo, contudo, acontece em uma cultura política na qual o elogio da violência estatal e do autoritarismo político se dá em detrimento da efetividade dos direitos humanos e da garantia de liberdades civis. É possível temer, portanto, que o fato de que a «salvação» contra a «ditadura da corrupção» venha pela «mão direita» de um Estado inserido em uma ordem geopolítica, econômica e moral neoliberal só torna mais incertos e perigosos os efeitos da cruzada anticorrupção sobre a frágil democracia brasileira.

  • 1.

    Mikael Rask Madsen e Y. Dezalay: «Pierre Bourdieu’s Sociology of Law: From the Genesis of the State to the Globalisation of Law» em Reza Banakar e Max Travers (orgs.): Law and Social Theory, Hart, Oxford, 2013; Y. Dezalay e Bryant Garth: «A dolarização do conhecimento técnico profissional e do Estado: processos transnacionais e questões de legitimação na transformação do Estado, 1960-2000» em Revista Brasileira de Ciências Sociais vol. 15 Nº 43, 2000, pp. 163-176; e Y. Dezalay e B. Garth: La internacionalización de las luchas por el poder. La competencia entre abogados y economistas por transformar los Estados latinoamericanos, ilsa / Universidad Nacional de Colombia, Bogotá, 2002.

  • 2.

    H.S. Becker: Outsiders. Estudos de sociologia do desvio, Zahar, Rio de Janeiro, 2008.

  • 3.

    «Corrupção no país está em metástase, diz procurador da Lava Jato» em uol Mais, 28/7/2015; Rafael Moraes Moura: «Lava Jato trata de um câncer, mas sistema brasileiro favorece a corrupção, diz Dallagnol» em O Estado de S. Paulo, 10/8/2015; Folhapress: «Lava-Jato ‘vai retirar câncer de uma sociedade doente’, diz procurador» em Valor Econômico, 3/8/2015.

  • 4.

    Carolina Leal: «‘Esquema para montar a Sete Brasil foi diabólico’, afirma procuradora» em Valor Econômico, 28/4/2016.

  • 5.

    H.S. Becker: op. cit., p. 153.

  • 6.

    S.F. Moro: «Considerações sobre a operação Mani Pulite» em Revista cej, 2004, p. 60.

  • 7.

    Em Paula Bianchi: «Juiz da Lava Jato no Rio nega ‘ditadura do Judiciário’ e celebra ‘cruzada contra corrupção’» em uol, 12/6/2017.

  • 8.

    Em Ricardo Brandt e Fausto Macedo: «A vergonha está do lado de quem se opõe à Lava Jato» em O Estado de S. Paulo, 23/10/2017.

  • 9.

    Ibid.

  • 10.

    Em Cleide Carvalho: «Moro defende remédios excepcionais no combate à corrupção sistêmica» em O Globo, 29/9/2016.

  • 11.

    Em mpf: «Procuradora defende aprovação das 10 Medidas Contra a Corrupção em conferência nos eua», 2016.

  • 12.

    Julia Affonso, Mateus Coutinho e R. Brandt: «Completo descomprometimento com o combate à corrupção, diz procuradora» em O Estado de S. Paulo, 30/11/2016.

  • 13.

    «Lava Jato reage a mudanças nas ‘Dez Medidas’ e ameaça renúncia» em Veja, 30/11/2016.

Este artículo es copia fiel del publicado en la revista Nueva Sociedad , Julho 2018, ISSN: 0251-3552


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