Coyuntura
NUSO Nº 308 / Noviembre - Diciembre 2023

O «modelo Bukele» e os desafios latino-americanos

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As medidas implementadas em El Salvador têm como base o fracasso das políticas de segurança ensaiadas na maior parte da América Latina. Mas quais são as conquistas de Nayib Bukele e quais os déficits das políticas aplicadas nos demais países da região?

El «modelo Bukele» y los desafíos latinoamericanos

Introdução

O presidente de El Salvador, Nayib Bukele, obteve 90% de aprovação segundo o Latinobarómetro 2023, o que o torna o mais bem avaliado entre todos os presidentes latino-americanos desde 1995. Além disso, o presidente mais jovem da história de seu país se definiu como o «mais cool do mundo» por seu uso das redes sociais e sua estratégia geral de comunicação política1. Sem dúvida, sua principal conquista tem sido a midiatizada política de segurança, que fez com que El Salvador deixasse de ser um dos países mais inseguros da região para estar entre os que exibem as menores taxas de homicídios. Uma situação que levou o mandatário a declarar, na 78ª sessão da Assembleia das Nações Unidas, que o modelo salvadorenho é «um modelo mundial, já que decidiu enfrentar os riscos e não aceitar o destino que outros haviam traçado».

Não há dúvida de que, em meio à crise de legitimidade sofrida pela maioria dos países e por seus governantes, a situação de Bukele é uma notável exceção. E isso faz com que, por exemplo, no Chile ele ocupe o segundo lugar entre os líderes do mundo mais bem avaliados2. No Peru, por sua vez, o recentemente falecido primeiro vice-presidente do Congresso, Hernando Guerra García, havia afirmado que seu país não precisava de um Bukele, «mas de dois» para enfrentar a insegurança3. Chama a atenção que não sejam abordados os problemas econômicos enfrentados pelo jovem presidente, ou o impacto de algumas de suas medidas mais conhecidas, como o uso do bitcoin como moeda oficial4. Isso sem falar da perseguição a jornalistas e acadêmicos5, da aparente vinculação de seu governo com diversas gangues6 e até mesmo das alterações discricionárias nas regras de reeleição presidencial. Por todos esses fatores, muitos analistas afirmam que «o regime político não cumpre os requisitos mínimos de uma democracia liberal»7.

Isto posto, de quais conquistas estamos falando? Talvez a mais evidente seja a diminuição da taxa de homicídios, que, embora já estivesse em queda desde 2015, segundo dados oficiais, passou de 106 homicídios por 100.000 habitantes em 2018 para 7,8 em 20228. Esse resultado estaria diretamente vinculado ao encarceramento em massa de mais de 70.000 jovens (mais de 1% da população total do país) que supostamente são membros de gangues juvenis. Essa política, que tem como um dos seus eixos uma maior presença policial e militar no patrulhamento cotidiano, desenvolve-se no contexto de um regime de exceção constitucional declarado em março de 2020 e que já sofreu 17 prorrogações sucessivas. Esse regime permite detenções sem ordem judicial ou flagrante e a realização de julgamentos em massa, ao mesmo tempo em que elimina os controles legais sobre processos administrativos de uso de recursos públicos e contratações do Estado, assim como o direito de acesso à informação pública9. Finalmente, a campanha nas redes sociais sobre a construção e a utilização da «maior prisão da América Latina» teve um impacto claro na percepção geral sobre o bem-sucedido «modelo Bukele». O chamado Centro de Confinamento do Terrorismo, com capacidade para 40.000 presos, tornou-se um emblema da sua campanha de conquistas em segurança e gerou tentativas de replicá-la em vários países. Os pontos fortes do chamado «modelo Bukele» de segurança se nutrem das limitações das políticas desenvolvidas durante as últimas duas décadas na América Latina, que tiveram impactos limitados e retrocessos evidentes. Neste artigo, pretendemos caracterizar o contexto latino-americano, assim como analisar os elementos centrais das estratégias de políticas públicas desenvolvidas na região, a fim de mostrar que o caminho para políticas sérias e sólidas não deveria se basear na violação de direitos humanos ou encarceramentos indiscriminados, mas sim na concepção e na implementação de políticas sérias, baseadas em evidências, sustentadas ao longo do tempo e apoiadas por uma férrea vontade política. Paradoxalmente, são os resultados deficientes das antigas políticas de prevenção e controle da criminalidade, mais do que as atuais conquistas do modelo, que parecem nos encaminhar rumo a um dilema fundamental: avançar seriamente em políticas de longo prazo e resultados claros, ou abrir a porta à deterioração final do Estado de direito.

Violência, crimes e organizações

A América Latina é considerada a região mais violenta do mundo, com 33% de todos os homicídios10. Segundo o Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC), em 2017 as taxas na América Central (25,9) e na América do Sul (24,2) foram 300% superiores à média mundial de 6,1 homicídios por 100.000 habitantes11. Embora a taxa de homicídios não seja um indicador totalmente preciso para analisar os níveis de violência, a falta de sistemas de informação confiáveis, transparentes e comparáveis em quase toda a região obriga a sua utilização12. Sem dúvida, os países com maior população «escondem» ou omitem diferentes anomalias e vieses nos registos quando têm de enfrentar um aumento muito substancial de casos para que a média nacional se modifique. Um exemplo claro pode ser visto na comparação entre o México e o Uruguai. Segundo dados oficiais do Instituto Nacional de Estatística e Geografia (INEGI), em 2022 o México teve uma taxa de 25 homicídios por 100.000 pessoas, sendo 87 em Zacatecas e 53 em Chihuahua; ao mesmo tempo, a Cidade do México registou uma taxa de 8 homicídios por 100.000 pessoas, e 21 estados tiveram taxas inferiores à média do país13. Por sua vez, o Uruguai teve uma taxa de 10,7 homicídios por 100.000 pessoas durante o mesmo ano, o que representa um aumento significativo em relação à taxa de 8,6 em 2021. A perspectiva de análise detalhada por espaço geográfico mostra que em Montevidéu a taxa foi de 15,6 e que a da zona 3 de trabalho policial (de maior complexidade criminal) atingiu 28,114.

A partir dessas informações, poderíamos afirmar que a zona 3 do Uruguai enfrenta os mesmos problemas de violência criminal que a média do México? Essa conclusão não parece evidente quando se analisam os fenômenos criminais dos dois países, mas em ambos os casos o crime é um problema de primeira ordem que se distribui de forma não homogênea nos territórios e que requer várias camadas de informação para formular políticas públicas que controlem e/ou evitem seu desenvolvimento.

Para aprofundar ainda mais o diagnóstico, podemos comparar os níveis de vitimização15 dos dois países, que, segundo o Projeto de Opinião Pública da América Latina (LAPOP) 2021, foi de 22,4% no Uruguai e 32% no México. Outro indicador é o nível de percepção de insegurança16: 42,9% dos uruguaios e 51,6% dos mexicanos sentem-se muito ou um pouco inseguros em seu local de residência. Ou seja, nos dois casos os crimes comuns afetam uma percentagem significativa da população, o que por sua vez tem impacto nos níveis de insegurança. Claro que é necessário caracterizar os crimes que mais afetam cada país. Certamente, um cenário onde o crime principal é o roubo de celulares não é o mesmo que que aquele caracterizado por roubos violentos, embora em termos da percepção de insegurança ambos os crimes afetem a sensação de desproteção da população.

Além das comparações nacionais, esta mesma análise pode ser desenvolvida em escala subnacional dentro dos países da região, o que torna impossível falar de um problema geral comum. Existem, no entanto, dez elementos comuns a toda a região latino-americana que mostram um cenário preocupante:
(a) Aumento e maior visibilização da violência diária em locais como trabalho, espaços públicos e escolas.
(b) Persistência de altos índices de violência contra as mulheres, que no processo pós-pandemia incluem um aumento da violência contra meninas e idosas e múltiplas mensagens de ódio e violência contra as mulheres nas redes sociais.
(c) Rotinização de crimes diários no espaço público, marcada por roubos e furtos de menor escala, mas com ampla presença geográfica.
(d) Consolidação de economias locais informais que propiciam o desenvolvimento de crimes contra a propriedade (especificamente, permitem a comercialização de mercadorias roubadas em feiras ou espaços de venda ambulante, mas também por meio de redes sociais).
(e) Maior violência no desenvolvimento de crimes cotidianos devido ao uso de armas ou violência física no roubo de celulares e veículos ou dentro de residências.
(f) Presença de múltiplas quadrilhas criminosas, entendidas como pequenas organizações ligadas a crimes de oportunidade, formadas principalmente por jovens e inclusive crianças com acesso a armas e com clara diversificação criminosa.
(g) Incapacidade dos governos locais e nacionais de abordar os fatores sociais ligados ao início de carreiras criminosas. Centenas de milhares de crianças e jovens enfrentam consumo problemático de drogas, abandono escolar, violência doméstica, problemas de saúde mental e gravidez na adolescência, entre outras variáveis estruturais que potencializam uma vida de ilegalidade.
(h) Consolidação de mercados ilegais transnacionais que abrangem toda a região. Embora inicialmente este fenômeno estivesse concentrado no tráfico de drogas (especialmente cocaína, entre a América do Sul e os Estados Unidos), atualmente é muito mais diversificado. Muitos relatórios enfatizam o tráfico de armas, pessoas e migrantes, assim como mineração e desmatamento ilegais, entre muitos outros mercados presentes na região.
(i) Consolidação de esquemas de comercialização transnacional de produtos e articulação de múltiplas organizações nacionais que permitem sua movimentação. Para além da espetacularidade com que os programas televisivos mostram grupos criminosos, a presença de organizações regionais sólidas ainda carece de evidências contundentes. Quando se fala em «traslado» de grupos criminosos, é necessário verificar a presença de estruturas replicadas, envio de dinheiro e estruturas hierárquicas, entre diversas outras dimensões; a presença de migrantes ou de contatos ilegais no mercado não é suficiente. O que é evidente é a construção de uma complexa rede de organizações locais de pequeno e médio portes que se interconectam em mercados cada vez mais diversificados e regionais.
(j) A luta contra o dinheiro gerado pelos mercados ilegais ainda é muito fraca. Em praticamente nenhum país foi possível consolidar iniciativas que enfrentem o verdadeiro negócio dos mercados ilegais.

Nada serve?

Nas últimas três décadas, diversas iniciativas de políticas públicas foram desenvolvidas na América Latina para resolver problemas de segurança cidadã. Os aprendizados são múltiplos e reconhecem que a região partiu na década de 1990 com instituições policiais acostumadas ao papel de polícia política e baixos níveis de profissionalização e especialização, mas também com condições de trabalho profundamente precárias17. Além disso, a sistematização da informação era quase inexistente, assim como a transparência: as decisões sobre segurança eram tomadas dentro das forças policiais, principalmente com base na intuição e na opinião especializada de vários líderes policiais. A prevenção do crime era entendida como um exercício de presença policial; o que hoje conhecemos como dissuasão era assumido como o principal (e, em muitos casos, o único) mecanismo preventivo.

Os governos nacionais e municipais não contavam com equipes especializadas em questões criminais, nem eram definidas políticas nacionais, e o crime era considerado um problema de segurança interna do Estado (especialmente durante ditaduras e conflitos armados) ou de segurança pública (em cujo âmbito a principal responsabilidade pela segurança recaía sobre as polícias e o sistema prisional). No mundo acadêmico, também não havia capacidade analítica para um problema considerado muito tangencial ou distante, salvo para grupos específicos que realizavam análises criminológicas, principalmente no campo do direito.

Mas esse é um cenário que sem dúvida mudou. As instituições policiais têm hoje níveis mais elevados de investimento público, reforçaram seus sistemas de treinamento e formação, potencializaram suas áreas de informação e sofisticaram suas respostas aos fenômenos criminais.

Em países como Colômbia, Chile e Uruguai, as polícias desenvolveram sistemas estatísticos que lhes permitem analisar fenômenos criminais em tempo real e inclusive avançaram na definição de modelos preditivos. Embora a informação continue sendo pouco transparente, foram feitos esforços significativos, como a criação de observatórios de segurança locais, nacionais e institucionais que permitiram compreender melhor os contornos do problema enfrentado. O investimento público nas forças policiais da América Latina tem crescido de forma constante e garantido melhores condições de trabalho, embora a disparidade na cobertura de saúde e na qualidade dos sistemas previdenciários continue sendo notável.

Desde meados da década de 2000, há um consenso regional de que a segurança cidadã requer múltiplas intervenções para abordar não só os crimes cometidos, mas também os fatores que fortalecem as carreiras criminais.

A responsabilidade não é apenas policial, mas sistêmica, e a prevenção é uma tarefa urgente e fundamental para enfrentar uma parte central dos problemas. Nesse sentido, foram concebidas e implementadas múltiplas iniciativas de policiamento comunitário e orientado para a resolução de problemas que tentam reconhecer o papel preventivo do trabalho policial.
Além disso, os governos locais começaram a desempenhar um papel cada vez mais destacado na prevenção do crime e mostram resultados relevantes, como nos casos de Bogotá e Medellín. Os governos avançaram na busca de iniciativas preventivas que fortaleçam o capital social, a confiança cidadã, o uso do espaço público e a melhoria das condições do espaço escolar, entre outras. Os aprendizados permitem reconhecer pelo menos cinco elementos fundamentais:
(a) a prevenção geral, isto é, destinada a toda a população, tem pouco impacto nos problemas de insegurança; assim, iniciativas preventivas como aulas de dança ou reparações em parques geralmente têm impactos pequenos;
(b) a prevenção situacional, isto é, centrada nos espaços públicos, tornou-se a área de maior intervenção, com cada vez mais ênfase na colocação de alarmes comunitários, câmaras de vigilância e outros dispositivos tecnológicos, em geral com resultados limitados; 
(c) as intervenções específicas, por exemplo para limitar o roubo de caixas eletrônicos bancários no Chile, têm resultados relevantes quando a cooperação público-privada é fortalecida e são definidos objetivos e metas claros;
(d) é deficiente a prevenção secundária ou terciária, isto é, em relação às pessoas que podem já ter um vínculo pessoal ou familiar com o mundo da informalidade ou da ilegalidade;
(e) os programas policiais de prevenção baseados na relação com a comunidade, que incluem mecanismos de denúncia e entrega de informações, tendem muitas vezes a ser vistos como instrumentos de controle.
Nas últimas duas décadas, também foram inúmeras as iniciativas de «mano dura» [repressivas] e inclusive «súper mano dura» promovidas na região. Estas defendem aumento das penas para todos os tipos de crimes, criação de tipos penais, redução dos requisitos para o uso da prisão preventiva, desenvolvimento de mecanismos de facilitação para a detenção de suspeitos, fortalecimento das forças policiais e participação do Forças Armadas em tarefas policiais, entre um longo repertório de iniciativas que buscam reduzir o medo dos cidadãos.
As diversas crises de segurança que os países latino-americanos têm enfrentado, marcadas pelo aumento da violência e da criminalidade, reconhecem alguns processos especialmente críticos: nos países do triângulo norte da América Central (Honduras, Guatemala e El Salvador), com o desenvolvimento das maras; no Brasil, com o aumento do poder das organizações criminosas instaladas nas principais favelas do país, a presença constante de organizações criminosas dedicadas à produção e ao tráfico de cocaína e seus diversos tentáculos em múltiplos cenários criminais no Peru, na Colômbia e na Bolívia. Mais recentemente, a violência nas prisões e, de forma mais ampla, as atividades criminosas explodiram no Equador, e o Haiti caiu de maneira dramática nas mãos de gangues com elevado poder de fogo e vinculações com a política. Numa dimensão diferente, mas não menos preocupante, há um aumento das taxas de homicídio nos países considerados mais seguros da América Latina, como Chile, Costa Rica e Uruguai.

Poderia-se dizer na região foram implementadas quase todas as receitas de boas práticas utilizadas em outras partes do mundo, e a sensação geral da população é que não se conseguiu que elas tenham resultados. Seria a região um contexto muito específico onde nada funciona? A resposta rápida é: não sabemos. Mas precisamos levar em conta pelo menos dez características dos processos de implementação de políticas de segurança na América Latina:
(a) A maioria das medidas desenvolvidas responde a um processo de importação de iniciativas que tiveram resultados positivos em outros contextos. Importadas de países onde houve intervenções de controle e prevenção geralmente baseadas em evidências, as iniciativas de política desenvolvidas na América Latina copiaram nomes mais do que conteúdo. Foi assim, em grande medida, com as polícias comunitárias, o sistema CompStat , a polícia orientada a problemas e o desenho urbano para a prevenção do crime, entre muitos outros exemplos.
(b) As iniciativas geralmente são pensadas a partir de diagnósticos equivocados. As urgências políticas frente a situações críticas ou escândalos de vários tipos, a falta de flexibilidade para a concepção de programas de políticas públicas ajustados às problemáticas locais, a falta de informação consistente e atualizada e a limitada cooperação real com a academia e com o setor privado são quatro elementos que geralmente dificultam a concepção de políticas públicas adequadas. Um exemplo disso são os programas de prevenção da violência juvenil centrados em medidas de capacitação profissional em lugares onde os problemas locais estão principalmente ligados à presença de gangues.
(c) A pressa em implementar políticas poucas vezes é acompanhada de financiamento conforme o tamanho dos desafios do processo. Na maioria dos casos analisados na literatura sobre segurança cidadã, são reconhecidos programas-piloto que depois não são avaliados, iniciativas ou abordagens locais de programas importados ou diretamente lançamentos de programas que depois não são implementados.
O problema não é tanto a falta de investimento público, mas o fato de que este se destine sobretudo a iniciativas que têm um resultado muito visível e imediato, como o aumento de viaturas policiais, a compra de armas e instrumentos ou a colocação de câmaras de vigilância, mas cujo impacto é baixo se não estiverem ligadas a uma estratégia de médio e longo prazos. Exemplo disso é a instalação de milhares de câmeras que depois não têm centrais de monitoramento, ou mesmo capacidade de resposta policial.
(d) As políticas costumam ser de curta duração. Pensar em políticas de Estado tornou-se uma tarefa impossível em muitas áreas das políticas públicas da região, mas na segurança o problema é ainda maior. Em muitos casos, nem sequer as iniciativas de reforma policial – que deveriam envolver processos constantes de concepção, implementação e avaliação de mudanças institucionais – duram mais do que alguns anos, o que gera processos constantes de contrarreforma e baixa aprendizagem institucional.
(e) A resistência institucional às mudanças é também um elemento comum na maioria das iniciativas de segurança implementadas nos últimos anos. Os baixos níveis de transparência nas informações, a disputa orçamentária e inclusive o enfrentamento pelo reconhecimento da população somam-se a outros elementos que limitam a colaboração. Em muitos países é possível encontrar iniciativas semelhantes desenvolvidas por instituições que, longe de colaborar, duplicam seu trabalho. A competição entre centros de vigilância dos governos nacionais, da polícia, dos governos municipais e até regionais é um claro exemplo desse problema.
(f) Possivelmente um dos elementos que mais conspiram contra o sucesso das políticas implementadas na região é uma vontade política difusa. Muitas iniciativas são o resultado de escândalos de corrupção, violência ou criminalidade que ativam uma resposta política de urgência. No entanto, essas urgências duram pouco e só reaparecem com a próxima crise. A vontade política ao mais alto nível é um ingrediente fundamental nos programas de segurança, devido à necessidade lógica de cooperação interinstitucional, ao impacto orçamental e à prioridade que a segurança alcança na agenda pública.
(g) A criminalidade é um problema complexo que requer respostas complexas. A aprendizagem das últimas décadas deixou claro que a limitada engrenagem interinstitucional existente na região é um dos fatores que dificultam a implementação de iniciativas bem-sucedidas. E isto não se refere apenas à politização da resposta, mas também à competição institucional ou à falta de interesse em somar ações ou atividades, que parecem sempre recair apenas na responsabilidade policial. Todas as evidências mostram claramente que a polícia não é a única responsável por controlar e prevenir o crime. Para o controle, são necessários cooperação entre todas as agências policiais, trabalho diário e eficaz com os Ministérios Públicos e coordenação com os sistemas penitenciários, entre outras instituições do sistema de justiça criminal. Para a prevenção, a polícia deve fazer parte de um ecossistema em que as atividades dos governos locais, as políticas de habitação, transporte, educação e saúde, assim como as políticas culturais e esportivas, tenham a segurança e a coexistência pacífica como elemento central. Caso contrário, não é possível avançar.
(h) O aumento da sensação de insegurança da população, acompanhado ou não pelo aumento dos índices de criminalidade, traz consigo a priorização de respostas rápidas e visíveis. Neste esforço, são abandonadas áreas-chave vinculadas, por exemplo, à situação prisional, marcada durante décadas pela superlotação, pela violência e pela absoluta falta de programas de reinserção e reabilitação. Depois ficamos surpresos quando em países como Brasil ou Equador são as gangues prisionais que acabam dominando o cenário do crime. Mas não somente as prisões foram invisibilizadas; da mesma forma, o consumo problemático de drogas tem sido o principal desencadeador do tráfico, que não tem resposta séria em praticamente nenhum país da região.
(i) A presença de mercados ilegais em todos os países da região é um fato inegável. A diversificação dessas estruturas criminosas inclui o tráfico de drogas, armas e migrantes, o tráfico de pessoas, a mineração e o desmatamento ilegais, o comércio de aves exóticas e outras atividades criminosas. Essa diversificação também tem um rosto cotidiano nos milhões de pessoas que vivem diariamente extorquidas por grupos criminosos locais que cobram «pedágios» para lhes permitir viver, trabalhar e circular por seus bairros. O crime organizado tem vários graus de influência e estruturação territorial, mas existem, sem dúvida, diferentes vinculações regionais que permitem que os migrantes do Haiti acabem no Chile, ou que o ouro ilegal do Peru saia pela Venezuela. Nenhuma dessas atividades pode ser desenvolvida sem Estados marcados pela corrupção individual ou institucional, que incentivam, ou mesmo participam, de seus benefícios econômicos. Tais mercados ilegais geram lucros que totalizam bilhões de dólares, a maior parte deles perdidos em extensas redes de lavagem de dinheiro, o que, por sua vez, confirma que as políticas contra o crime organizado que visam aumentar as apreensões ou a detenção de pequenos vendedores de drogas costumam ser absolutamente ineficientes. Na prática, tornam-se uma forma de mostrar certa ação estatal enquanto os negócios ilegais crescem sem controle.
(j) A vocação pela mudança jurídica como forma quase única de enfrentar o crime é uma miragem. Em geral, a realidade não muda por ajustes normativos e, embora o aumento das penas possa gerar dissuasão ou mesmo redução dos grupos criminosos, o cenário latino-americano não mostra essa situação. Pelo contrário: após décadas de aumento das penas, não são percebidas mudanças reais na magnitude dos problemas. Sejamos claros: aumentar as penas focadas em criminosos violentos e reincidentes traz resultados positivos, mas conseguir que o sistema de justiça criminal concentre suas ações e, assim, evite encher as prisões com pessoas com baixa incidência criminal parece uma tarefa impossível. A incapacitação genérica ao estilo Bukele, isto é, encarcerar milhares de pessoas só porque possuem características pessoais (como traços físicos) ou sociais que poderiam vinculá-las à ação criminosa, não é apenas ineficiente, mas profundamente antidemocrática.
A situação é então desesperadora para a maioria dos latino-americanos, que levam sua vida cotidiana marcada pela presença de múltiplos mercados ilegais que se movimentam com total impunidade e que o Estado, as instituições e a política parecem não poder deter.

O desafio não é copiar…

Este é o contexto em que a experiência do presidente Bukele em El Salvador aparece como bem-sucedida. Ela apresenta resultados concretos, como a diminuição de homicídios, a recuperação de diversos espaços públicos e a redução da presença de gangues, o que impacta na redução dos crimes que ocorrem nos lugares de vida e trabalho. Em especial nos bairros mais populares de El Salvador, é inegável que a qualidade de vida da população mudou substancialmente. Mas essa mudança também inclui detenções em massa de jovens sem quaisquer critérios aparentes de flagrante e detenções prolongadas de pessoas que não têm denúncias específicas, além de denúncias de violações dos direitos humanos que ocorrem nos principais centros penitenciários. A isso é preciso acrescentar a perseguição aos meios de comunicação não afins ao governo, o uso das redes sociais para fornecer informações tendenciosas e as decisões administrativas discricionárias.
Os pontos fortes do chamado «modelo Bukele» baseiam-se principalmente na sensação de que não existem outras alternativas possíveis que possam trazer resultados rápidos e benéficos; no acúmulo de experiências fracassadas; e na sensação generalizada de temor e impunidade.

Mas o encarceramento em massa de jovens e o uso indiscriminado da força estatal são realmente a solução para a criminalidade? Se assim fosse, provavelmente as experiências de repressão implementadas anteriormente em El Salvador teriam trazido resultados sustentados no longo prazo, para além da complexidade das estruturas criminosas e da sofisticação dos mercados ilegais. Apesar da diminuição das taxas de homicídio, a normalização da violência estatal e da discricionariedade na tomada de decisões políticas é uma má notícia para as democracias latino-americanas.

Existem formas sérias e sólidas de limitar a violência e controlar a criminalidade, as mesmas que têm sido implementadas em vários países do mundo, sem que isso implique a erosão dos princípios do Estado de direito ou o encarceramento em massa de jovens que se tornam reféns de condições de violência.

O paradoxo fundamental para as democracias que enfrentam elevados níveis de insegurança cidadã e a consolidação de múltiplos mercados ilegais é que, para evitar o caminho da violência estatal, é necessária uma mudança na forma como as políticas de segurança são formuladas e implementadas. Ou seja, deve-se começar por reconhecer que os esforços têm sido significativos mas limitados, que as respostas têm sido insuficientes e que a politização de uma questão tão fundamental como a segurança não está permitindo o desenvolvimento de políticas sérias e de longo prazo.

Em outras palavras, é necessário reconhecer que continuar definindo iniciativas de políticas públicas de forma esporádica, espontânea, opaca, volátil e em muitos casos irresponsável é o caminho perfeito para fortalecer um modelo que pode ter resultados no curto prazo, mas à custa de múltiplas incertezas para o futuro de nossas frágeis democracias.

  • 1.

    Albertina Navas: «Nayib Bukele, ¿el presidente más cool en Twitter o el nuevo populista millenial?» em gigapp Estudios / Working Papers vol. 7 N° 166-182, 2020.

  • 2.

    Pesquisa Praça Pública cadem, 2023, disponível em https://insight-chile.cl

  • 3.

    «Hernando Guerra García: ‘Necesitamos por lo menos dos Bukele’» em PTV Perú, canal do YouTube, 25/8/2023.

  • 4.

    Isabella Cota: «Dos años de bitcoin en El Salvador de Bukele: un experimento opaco con una moneda poco utilizada» em El País, 2/9/2023.

  • 5.

    Anistia Internacional: «El Salvador: President Bukele Engulfs the Country in a Human Rights Crisis after Three Years in Government», 2/6/2022; Gabriel Labrador e Julia Gavarrete: «Asamblea controlada por Bukele aprueba ley mordaza bajo la excusa de combate a pandillas» em El Faro, 6/4/2022.

  • 7.

    Mneesha Gellman: «The Democracy in Crisis in El Salvador», Regional Expert Paper Series, Center for Mexico and Central America Studies, Columbia University, 9/2022.

  • 8.

    Para mais detalhes, v. Secretaria de Comunicação da Presidência, Governo de El Salvador: «El Salvador registra el promedio de homicidios más bajo de Centroamérica», comunicado de imprensa, 5/1/2023. Embora sejam dados oficiais, a limitada transparência das informações oficiais e a redefinição dos homicídios, assim como diversas dúvidas sobre a construção dos indicadores, torna difícil confirmá-los. «Pronunciamiento de Wola. Corrupción y régimen de excepción en El Salvador: una democracia sin oxígeno», 27/9/2022.

  • 9.

    «Pronunciamiento de Wola», cit.

  • 10.

    Nicolás Jaitman e Laura Ajzenman: «Crime Concentration and Hot Spot Dynamics in Latin America», idb Working Paper Series N° idb-wp-699, bid, 6/2016.

  • 11.

    UNODC: «Global Study on Homicide», Viena, 2019.

  • 12.

    Miguel Emilio La Rota et al.: «Política criminal en contra del homicidio en Colombia», Laboratório de Justiça e Política Criminal, Bogotá, 2022; Centro de Estudos Latino-Americanos sobre Insegurança e Violência, Universidade Nacional de Tres de Febrero: Estudio sobre homicidios en Argentina: un análisis del periodo 2001-2021, Buenos Aires, 2023; Emiliano Rojido, Ignacio Cano e Doriam Borges: Diagnóstico de los homicidios en Uruguay (2012-2022), Centro de Informações e Estudos do Uruguay / Laboratório de Análise da Violência, Montevidéu, 2023.

  • 13.

    INEGUI: «Defunciones por homicidio enero a diciembre 2022», comunicado de imprensa N° 418/23, 25/7/2023.

  • 14.

    E. Rojido, I. Cano e D. Borges: op. cit.

  • 15.

    A pergunta específica era: «¿Você foi vítima de algum ato de criminalidade nos últimos 12 meses?». Barómetro de las Américas, disponível em www.vanderbilt.edu/lapop

  • 16.

    A pergunta específica é: « Falando sobre o lugar ou bairro onde você mora e pensando na possibilidade de ser vítima de agressão ou roubo, você se sente muito seguro, um pouco seguro, um pouco inseguro ou muito inseguro?». Barómetro de las Américas, disponível em www.vanderbilt.edu/lapop

  • 17.

    Mary Fran T. Malone, L. Dammert e Orlando J. Pérez: Making Police Reform Matter in Latin America, Lynne Rienner, Boulder, 2023.

Este artículo es copia fiel del publicado en la revista Nueva Sociedad 308, Noviembre - Diciembre 2023, ISSN: 0251-3552


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