A reação contra o gênero e a democracia
Nueva Sociedad 2019 / Dezembro 2019
Embora venha sendo discutida academicamente há cerca de quatro décadas, faz poucos anos que a noção de gênero se tornou comum em debates parlamentares, campanhas eleitorais e protestos na América Latina. A temporalidade desse conceito é a das disputas relacionadas às desigualdades entre mulheres e homens e ao controle da sexualidade. Meu argumento neste artigo está também relacionado à expansão ou regressão das democracias na região.
No período 1970-1990, a agenda da igualdade de gênero encontrou oportunidades na ampliação dos regimes democráticos. Mais tarde, nos anos 2000, as reações a essa agenda se ampliaram ao encontrar novas oportunidades, agora em sentido oposto, em um contexto de regressão democrática. Mas as campanhas contra o gênero vão além de se beneficiar de uma tendência existente: elas também contribuem para limitar as democracias, na medida em que colocam em xeque as garantias para minorias, direitos individuais, o princípio da laicidade e, sobretudo, a igualdade como valor de referência.
O aumento do número de democracias no mundo entre 1970 e 1990 não foi suficiente para transformá-las em regimes igualitários numa perspectiva de gênero. As políticas neoliberais restringiram o alcance da luta feminista, e os governos de centro-esquerda eleitos na América Latina a partir do final dos anos 1990, que compuseram a chamada «onda rosa», não tornariam o ambiente político menos contraditório em relação às políticas de gênero1.
Esse foi, no entanto, um período em que os movimentos feministas, recorrendo a um contexto internacional favorável, puderam posicionar as democracias como regimes que deviam algo às mulheres e às minorias sexuais, evidenciando sua exclusão sistemática, a violência de que são alvo e o privilégio masculino como problemas que demandam respostas políticas.
Hoje, enfrentamos mais do que a acomodação entre as democracias liberais e as desigualdades de gênero. Conservadorismo moral e uma agenda neoliberal extremada têm sido mobilizados conjuntamente por uma nova direita emergente. A rejeição à igualdade de gênero e à diversidade sexual tornou-se plataforma comum de governos de extrema-direita na Europa e nas Américas, como os de Viktor Orbán na Hungria e Jair Bolsonaro no Brasil. A ideia de que o gênero é uma ameaça que paira sobre as famílias se transformou em estratégia para reunir apoio popular a grupos e lideranças de direita e extrema-direita em diversos países.
O conceito de gênero e sua temporalidade
Nos anos 80, intelectuais feministas começaram a recorrer ao termo gênero para tratar das relações entre os sexos, compreendendo que as distinções que definem o feminino e o masculino são fundamentalmente sociais2. A abordagem histórica dessas diferenças e a compreensão relacional dos papéis e das identidades se tornariam matrizes relevantes para as pesquisas acadêmicas. Até o início dos anos 2000, essa perspectiva se ampliaria também no sistema internacional de direitos humanos e na construção de normas e políticas no âmbito nacional, em diversas partes do mundo.
Ainda que a abordagem de gênero tenha tido graus distintos de adesão no próprio feminismo e gerado debates sobre seus efeitos epistemológicos e políticos3, as reações mais agudas viriam de segmentos conservadores. Motivadas inicialmente pelos enquadramentos favoráveis aos direitos reprodutivos e sexuais produzidos nas conferências da Organização das Nações Unidas (onu) dos anos 90, essas reações produziriam a noção de «ideologia de gênero» como estratégia.
Uma nova temporalidade se estabeleceria, assim, com a politização reativa da reprodução e da sexualidade4, mas também da própria noção de gênero. Presente na produção de intelectuais argentinos e estadunidenses desde meados dos anos 905, seu registro em um documento da Igreja católica viria apenas em 1998, com a divulgação do informe «A ideologia de gênero: seus perigos e alcances», pela Comissão da Mulher da Conferência Episcopal Peruana.
Da perspectiva dos que recusam o conceito de gênero, a natureza é situada como determinante das aptidões e papéis, prevalecendo sobre as dinâmicas sociais. Uma necessária complementariedade entre os sexos daria sentido às relações, em vez de serem estas o ponto de partida para se compreender e superar hierarquias, injustiças e violências.
A «Carta aos Bispos da Igreja católica sobre a colaboração do homem e da mulher na Igreja e no mundo», de 2004, período final do papado de Karol Wojtyla, o papa João Paulo ii, afirmava que homens e mulheres têm naturezas distintas e devem trabalhar juntos. Assinada por Joseph Ratzinger, o futuro papa Bento xvi, quando este ainda liderava a Congregação para a Doutrina da Fé, a carta dizia que «o homem por seu temperamento está mais apto para lidar com os assuntos externos e os negócios públicos» enquanto «a mulher tem uma maior compreensão dos delicados problemas da vida doméstica e familiar e um toque mais seguro para resolvê-los, o que, é claro, não significa negar que algumas possam mostrar uma grande capacidade em qualquer esfera da vida pública».Estavam definidas, assim, as bases epistemológicas das campanhas posteriores. Como uma espécie de «cola simbólica»6, a noção de «ideologia de gênero» seria uma estratégia política eficaz, viabilizando a atuação conjunta de atores cujos interesses são originalmente distintos. Católicos e evangélicos conservadores têm se unido para bloquear avanços nos direitos sexuais, redefinir o sentido dos direitos e das políticas públicas e, em alguns casos, legitimar a censura. Contam com profissionais das áreas de direito, ciência política e psicologia, entre outras, e com políticos cuja identidade pública não é necessariamente de cunho religioso. Ao mesmo tempo, o apelo popular dessa estratégia ficaria evidente no ciclo de protestos iniciados em 2012 na Europa e, em 2016, na América Latina.
Protestos de rua, «o povo» contra o gênero
Na Europa, pode-se tomar 2012 como o início do ciclo de manifestações conservadoras nas quais a noção de «ideologia de gênero» foi utilizada como estratégia para a mobilização popular e a pressão contra governos. Trata-se do ano de criação do movimento La Manif pour Tous, na França, e do primeiro dos sucessivos protestos contra o gênero realizados na Polônia.
Desde 2010, organizações católicas ligadas à Opus Dei atuavam contra conteúdos associados à igualdade de gênero e à diversidade sexual nas escolas francesas. Mas foi o projeto de legalização do casamento igualitário, apresentado pelo governo ao Parlamento em 7 de novembro de 2012 e aprovado em 23 de abril de 2013, que disparou as manifestações que levaram milhares às ruas de Paris7.
Os cartazes utilizados nos protestos antecipavam o teor dos que seriam vistos nas manifestações contra a «ideologia de gênero», em diferentes cidades latino-americanas, a partir de 2016. Imagens de famílias nucleares apareciam acompanhadas de frases que (a) ressaltavam a rejeição ao termo gênero, como em «Não coloquem um dedo em nossos estereótipos de gênero»; (b) reafirmavam a heterossexualidade como fundamento moral da família, como em «Papai mais mamãe, não há nada melhor para uma criança»; (c) ressaltavam o caráter religioso da família, como em «A família é sagrada», e (d) evidenciavam os esforços para situar a posição contrária ao casamento homossexual no campo dos direitos, como em «Somos todos guardiões do Código Civil».
Na Polônia, há evidências das conexões entre os protestos que tomaram as ruas entre 2012 e 2014 e os processos de desdemocratização em curso. A campanha contra o gênero colaborou para a vitória da direita em 2015, quando algumas de suas lideranças passaram a fazer parte do governo. A cruzada contra o gênero teria sido lá o prelúdio do autoritarismo, justificando o desmantelamento das instituições democráticas, com o ataque a organizações de pesquisa e movimentos sociais8.
A proibição dos estudos de gênero nas universidades húngaras por um decreto do primeiro-ministro de extrema-direita Orbán, em 13 de outubro de 2018, acentuaria a compreensão de que a campanha contra o gênero é um componente do populismo antiliberal na Europa, opondo supostos clamores populares a uma elite global9.
Na América Latina, o ciclo de mobilização popular e de protestos de rua contra a chamada «ideologia de gênero» se iniciaria em 2016. Os alvos foram os mesmos dos protestos na Europa: as políticas para a educação sexual integral, incluídas nos planos educacionais e em legislação específica em vários países a partir de 2010, e o reconhecimento do casamento igualitário por meio de leis específicas (Argentina em 2009 e Uruguai em 2013) ou de decisões das cortes constitucionais (Brasil em 2011, Colômbia em 2016, Equador em 2019). O tema da adoção por casais do mesmo sexo também teve destaque.
Na Colômbia, a Marcha de la Familia levou milhares às ruas em 10 de agosto de 2016, contra as políticas do Ministério da Educação para a educação sexual. Um mês depois, seria a vez do México, com a marcha organizada pela Frente Nacional por la Familia contra o casamento igualitário. Grupos de todo o país se reuniriam duas semanas depois, em 24 de setembro, na Cidade do México, para a Marcha Nacional por el Matrimonio, los Niños y la Familia, quando foi lançado o projeto do Frente Latinoamericano por el Derecho a la Vida y a la Familia. No Peru, em novembro de 2016, seria lançada a campanha #ConMisHijosNoTeMetas contra as diretrizes para a educação sexual do Ministério da Educação. Poucos meses depois, em março de 2017, ela levaria cerca de 25.000 pessoas ao centro de Lima para protestar, enquanto demonstrações menores, mas também significativas, ocorriam em outras cidades do país.
Na Colômbia, os protestos de 2016 colaboraram para a vitória do «Não» no plebiscito sobre o acordo de paz entre o governo colombiano e as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (farc), em 2 de outubro de 2016, e para a demissão da ministra da Educação Gina Parody, dois dias depois10. No Peru, os ministros da Educação Jorge Saavedra e Marilú Martens também foram substituídos por pressão do movimento e de seus aliados no Congresso, em 14 de dezembro de 2016 e 13 de setembro de 2017, respectivamente. Mais tarde, o movimento Padres en Acción obteria uma vitória na Justiça em ação pela proibição da educação sexual nas escolas, revertida em maio de 2019 por uma decisão da Corte Constitucional peruana.
A liderança na organização das campanhas e dos protestos mencionados tem sido, sobretudo, evangélica (com forte presença de lideranças femininas, como a deputada colombiana Ángela Hernández), com o apoio de católicos conservadores. Alguns são velhos conhecidos de quem acompanha a atuação conservadora católica na América Latina, como o cardeal peruano Juan Luis Cipriani e o procurador colombiano Alejandro Ordoñez.
Nessa divisão do trabalho entre evangélicos e católicos, a Igreja permanece atuante na produção de uma matriz ideológica na qual a «ideologia de gênero» seria uma realidade e os «feminismos radicais», um risco para a humanidade e a família. Isso ficou claro em pronunciamentos informais, como o de Jorge Mario Bergoglio, o papa Francisco, em diálogo com bispos poloneses durante o Encontro Mundial da Juventude em Cracóvia, na Polônia, também em 2016. Naquele momento, ele ressaltou que «verdadeiras colonizações ideológicas» estariam em curso no mundo hoje e uma delas, disse, «é o gender!». Hoje, completou, ensinam às crianças que «o sexo, cada um pode escolhê-lo», e o fazem porque «os livros são os das pessoas e instituições que te dão dinheiro»11. Em 2019, um documento da Congregação pela Educação Católica, intitulado «Macho e fêmea ele os criou: em direção a um caminho para o diálogo na questão da teoria de gênero na educação» apresentaria uma nova clivagem, a distinção entre a «ideologia de gênero», que se apresentaria como «inquestionável», e o campo mais amplo das teorias de gênero, em que se buscaria um «entendimento mais profundo das maneiras como a diferença sexual entre mulheres e homens tem sido vivida em várias culturas». A distinção entre feminismo radical e feminismos denominados igualitários vem se tornado mais frequente entre os conservadores.
A Igreja católica não é homogênea, como se sabe, mas suas diretrizes nos ajudam a compreender como os enquadramentos principais dos protestos circulam globalmente. Na América Latina, no entanto, seria impossível compreender a permeabilidade e os efeitos das reações ao gênero sem levar em conta a crescente atuação política de setores evangélicos12.
Enquadramentos
Nos vídeos e cartazes dos protestos ocorridos na América Latina em 2016 e 2017, há três enquadramentos predominantes:
a) a família está ameaçada pela ação de lobistas feministas e lgbtq, que estão introduzindo mudanças nas leis e políticas públicas contra os valores da maioria;
b) elites econômicas globais, organizações internacionais como a onu e elites nacionais globalizadas em conluio com as primeiras promovem um novo tipo de colonização por meio da agenda de gênero, contra as tradições nacionais;
c) famílias, isto é, os pais precisam retomar sua autoridade na educação infantil, reduzindo a interferência do Estado, pois as crianças são os principais alvos dos grupos feministas e lgbtq.
Este último é particularmente significativo na América Latina, onde os principais slogans da campanha contra o gênero são #ConMisHijosNoTeMetas e «A mis hijos los educo yo». No Brasil, o Escola Sem Partido, originalmente voltado para combater a «doutrinação marxista» nas escolas, incorporaria a noção de «ideologia de gênero» como forma de ganhar protagonismo nos debates sobre o Plano Nacional de Educação, em 2014. Embora tenha sido a matriz para a produção de projetos de lei nos estados e municípios brasileiros visando a proibição do debate político e de conteúdo orientado pelos valores da igualdade de gênero e da diversidade sexual nas escolas, não encontrei evidências que indiquem mais do que convergência com outros movimentos latino-americanos e com redes internacionais como CitizenGo. Esta última patrocinou o Bus de la Libertad, que circulou em várias cidades do continente americano e da Europa propagando a ideia de que o gênero é uma ameaça à infância. Também esteve na origem dos protestos contra a visita de Judith Butler ao Brasil, para palestra no sesc Pompéia em novembro de 2017.
Um quarto enquadramento já estava presente no Escola Sem Partido, mas ganharia expressão regional com a publicação de El libro negro de la nueva izquierda. Ideología de género o subversión cultural, em julho de 201613. Seus autores, o advogado argentino Nicolás Márquez e o cientista político e também advogado argentino Agustín Laje, estão entre os principais difusores da agenda antigênero na América Latina, proferindo palestras e dando entrevistas em diversos países da região nesse período. Seus argumentos são laicos e apresentados na linguagem da ciência e dos direitos, fundamentais para que pudessem firmar a ideia de que:
d) o feminismo é um agente do «marxismo cultural», e a abordagem feminista da igualdade e da diversidade não passa de ideologia. Ela expressaria as posições de um «feminismo radical» indefensável cientificamente e inaceitável moralmente.
Em outubro de 2017, o Ministério da Educação e Ciência do Paraguai proibiu a «difusão e utilização de materiais impressos ou digitais, referentes à teoria de gênero e/ou ideologia de gênero, em instituições educativas», por meio da Resolução 29.664. Dias depois, o então presidente Horacio Cartes exibiu o livro de Márquez e Laje em reunião na qual se declarou contrário à «ideologia de gênero». Alinhado ao Escola Sem Partido e à campanha protagonizada por evangélicos conservadores no Brasil, o presidente eleito Jair Bolsonaro destacaria o combate à «ideologia de gênero» em seu discurso inaugural, em 1o de janeiro de 2019, antecipando sua incorporação à agenda do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, do Ministério das Relações Exteriores e do Ministério da Educação em seu governo. As campanhas antigênero se transformariam, assim, em políticas de caráter antiliberal e antidemocrático de governos eleitos com significativo suporte popular, nos quais o conservadorismo se apresenta alinhado a agendas econômicas ultraliberais.
O gênero da regressão democrática: conservadorismo, neoliberalismo e a família
Em 2019, o relatório anual da Freedom House, Freedom in the World, foi intitulado «Democracy in Retreat» e manifestou preocupação pelo fato de sua pontuação agregando indicadores de procedimentos democráticos, direitos políticos e liberdades civis ter registrado o 13º ano consecutivo de declínio global. O «índice de democracia» da The Economist, implementado em 2006, mostrou desde então uma decadência nas liberdades civis, bem como no «funcionamento do governo», uma variável que inclui a confiança nos governos e partidos políticos. Vale ressaltar que, em 2018, sua pontuação global para o processo eleitoral e o pluralismo permaneceu inalterada, pois a deterioração da democracia continuou evidente, indicando uma possível desconexão entre liberdades, a funcionalidade e legitimidade das instituições democráticas e os processos eleitorais.
Desde o início dos anos 2000, a ideia de que a democratização deu lugar à desdemocratização e à desconsolidação vem recebendo mais atenção. O fato de a política não poder ser isolada das desigualdades foi enfatizado pelas abordagens mais críticas durante as décadas de expansão da democracia liberal14, antecipando o debate sobre a despolitização da vida pública15. As análises mais recentes abordam as novas desigualdades relacionadas ao capital financeiro, informação e conhecimento técnico-científico16, bem como o poder corporativo17 e seus efeitos sobre a legitimidade e a capacidade do governo nacional18. Também relacionam a regressão democrática à ascensão de políticos populistas antiliberais19.
O enfraquecimento da dimensão pública da política pode, segundo esses estudos, ser rastreado pelo menos desde a década de 1980, quando o neoliberalismo se tornou uma diretriz econômica e política e se expandiu como um «novo regime de evidências»20, no qual as desigualdades são cada vez mais o normal e o normativo21.
O Sul global apresenta movimentos pendulares em direção à democracia e ao autoritarismo ao longo do século xx22, afetados pela ação das elites locais contra a institucionalização de procedimentos e direitos democráticos, bem como pelas desigualdades pós-coloniais23. Essas democracias frágeis são mais vulneráveis a variações econômicas e interesses corporativos na era do capitalismo financeirizado. A desilusão popular decorrente da corrupção e dos crescentes níveis de desigualdade e insegurança pode, também, ser orientada contra a democracia.
A desdemocratização tem impacto mesmo nos casos em que é precedida por democracias frágeis. Ela enfraquece as instituições construídas para conter violações dos direitos humanos, abre o caminho para a militarização e a descontinuação de políticas para promover a igualdade e o empoderamento de mulheres, negros e grupos indígenas, aumentando sua vulnerabilidade.
Como dito anteriormente, os novos padrões da politização reativa ao gênero, nos anos 2000, coincidem com a regressão democrática. Há algo além de uma coincidência cronológica? Que relações é possível estabelecer? É a essas questões que dedico os parágrafos finais deste artigo.O conservadorismo atual não é original em sua oposição à igualdade de direitos e ao reconhecimento legal da diversidade sexual. A noção de neoconservadorismo não remete, assim, ao conteúdo, mas aos padrões de mobilização, ao reforço a tendências iliberais, à sua contribuição para justificar medidas autoritárias e naturalizar as desigualdades. Algo relevante a se ressaltar é que o neoconservadorismo reforça sua identidade pública no antagonismo aos feminismos como atores políticos coletivos, em um contexto em que se tornaram mais expressivos e capilarizados. Na América Latina, movimentos como #NiUnaMenos e #EleNão levaram milhares às ruas nos anos recentes em defesa de agendas específicas, mas também de democracias qualificadas numa perspectiva de gênero – de democracias nas quais a igual cidadania signifique a superação da violência e das desigualdades de gênero, mas também do racismo. Com o #8m e o chamado às greves feministas, os feminismos ganham protagonismo também na crítica à sociedade de classes e, em especial, aos efeitos do capitalismo neoliberal.
Para abordar o gênero da regressão democrática é preciso focar conjuntamente no neoliberalismo e no conservadorismo, que convergem no destaque à família de uma perspectiva privatizante e moralmente convencional, por isso excludente24. Também convergem na produção de um cidadão antidemocrático, que não se aflige com concentrações exorbitantes de poder político e econômico, revogações rotineiras do estado de direito25 e a restrição de direitos e garantias efetivas àqueles caracterizados como não-merecedores, assustadores e abjetos.
A família é a chave que conecta as dimensões econômica e moral da regressão democrática. O desmantelamento da infraestrutura pública e a restrição dos direitos econômicos e trabalhistas tornam a proteção e o apoio por e dentro da família uma necessidade prática e um antídoto para as incertezas e a precariedade26. Reforçam as desigualdades entre as famílias e a pressão pelo provimento, na medida em que ampliam a responsabilidade das unidades familiares por saúde, educação e moradia, crescentemente mercantilizadas. Dada a divisão sexual do trabalho, acentuam a carga de trabalho das mulheres na medida da restrição de políticas e equipamentos públicos de cuidado. Ao mesmo tempo, os enquadramentos dos protestos contra o gênero apontam para o controle sobre os corpos, enquanto contam uma história das inseguranças dos indivíduos e da precariedade dos laços. O risco estaria numa desordem moral, que ameaçaria a autoridade paterna, a infância e as tradições. Dessa forma, são mobilizados para construir apoio popular à censura, à restrição de direitos individuais e à oposição a pactos coletivos para a educação das crianças. Podem servir, ainda, para legitimar a violência contra minorias. A moralização das incertezas se torna, assim, um componente político central dos processos de restrição democrática e da ascensão de lideranças autoritárias e de extrema-direita.
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