Tema central
NUSO Nº Dezembro 2020

Os «coletes amarelos» e as exigências da representação política

O movimento dos gilets jaunes expressou sentimentos profundos de injustiça que não são mais representados, expressos ou politizados pelos sindicatos nem pelas organizações de esquerda tradicionais. A rejeição a toda representação, que constituiu sua força, também levou ao seu enfraquecimento. Essa dinâmica de «desintermediação» da política não é exclusiva da França: vem minando o conjunto das democracias ocidentais.

Os «coletes amarelos» e as exigências da representação política

Os gilets jaunes («coletes amarelos») estiveram em grande medida ausentes dos processos eleitorais europeus. Embora tenham dominado a agenda política e midiática durante seis meses e desestabilizado fortemente o poder vigente, eles marcaram muito pouco a campanha eleitoral, cujo resultado consolidou a posição de La République en Marche (A República em Marcha) de Emmanuel Macron e confirmou o sismo eleitoral de 2017. O movimento produziu, sem dúvida, efeitos estruturais de politização e socialização, e não se descarta um possível ressurgimento, mas a curto prazo ele parece apenas se dissolver. A ordem eleitoral e a política instituída recuperaram suas atribuições e reimpuseram seus códigos. Tal restauração era previsível. Mas a situação remete também às contradições e aporias do movimento, que uma revisão dos últimos meses permite analisar. O movimento dos «coletes amarelos» participa da dinâmica sociopolítica atual de «desintermediação» (cuja expressão inversa é o macronismo). Ele se desenvolveu fora das estruturas organizadas (partidos e sindicatos), desacreditados e pouco representativos, e esta subversão dos quadros tradicionais foi condição de possibilidade tanto de seu desenvolvimento quanto de seu sucesso. O movimento conseguiu se estruturar sem se apoiar em uma organização. Ao longo das semanas, na medida em que a vontade de ser mais do que um movimento de protesto pontual foi afirmada, surgiram aspirações de formalização. No entanto, elas se mostraram rapidamente contraditórias e, rejeitando a representação em todas as suas formas (personificação do movimento em um representante, entrada na arena eleitoral, organização), o movimento foi perdendo força com o passar do tempo. Os «coletes amarelos» revelam a decomposição dos canais políticos tradicionais, mas também a necessidade de mediações e a restrição inescapável da representação nas regras do quadro democrático dominante, cuja legitimidade é, porém, cada vez mais frágil. Revisaremos, em um primeiro momento, a dinâmica de «desintermediação» política e analisaremos como o movimento pôde se desenvolver fora das estruturas existentes, alcançando ao mesmo tempo uma organização. Mostraremos, em seguida, por que sua desmobilização se deve em parte à sua incapacidade de formalizar uma estratégia e sua rejeição a toda forma de mediação representativa.

Um processo multiforme de «desintermediação» política

Em poucos meses, A República em Marcha e os «coletes amarelos» encarnaram duas representações do processo de desintermediação política em andamento. A priori, tudo parece opor esses emergentes sociopolíticos: suas palavras de ordem, seu estilo, sua geografia social e os atributos sociais de seus participantes. Os dois movimentos são ideológica e sociologicamente contraditórios. Não obstante, são dois lados da mesma moeda: o do enfraquecimento do sistema de partidos e das organizações tradicionais. Defendem a «democracia de audiência», que se liberta das instituições da sociedade civil e das elites tradicionais1. Esses movimentos não são produto de tradições organizativas, culturas políticas ou filiações intelectuais estabelecidas, mas sim de uma conjuntura e atualidade precisas, de uma lógica de situação, em aparência ex nihilo2. Em alguns meses, subverteram e desestabilizaram o sistema político: por cima, o movimento de Macron, mais elitista; por baixo, os «coletes amarelos», mais próximos de uma base popular (de contornos complexos e variáveis, conforme as configurações territoriais). Irromperam na «velha política» e no «velho mundo» das organizações e quebraram seus códigos dominantes. Encontramos em ambos os casos uma rejeição da «velha política» e uma aspiração à desprofissionalização da política, que fazem parte de uma tendência comum ao «degagismo»3. Movimentos improváveis em muitos aspectos, não couberam nos esquemas de análise e deixaram perplexos os atores dominantes, que não os conseguiram antecipar, suscitando uma miríade de interpretações, na medida em que desestabilizaram as rotinas analíticas dos pesquisadores4. Os dois movimentos se estruturaram também sob formas um tanto similares (de maneira horizontal e a partir das redes sociais, sem estrutura preestabelecida), mas ao mesmo tempo muito diferentes (personalização muito forte em um líder de um lado, recusa de toda e qualquer liderança e questionamento do próprio princípio de representação do outro). Não dispondo absolutamente dos mesmos recursos iniciais, ambos os movimentos « hackearam» e simplesmente ignoraram os atores representativos tradicionais do sistema político. Dessa forma, A República em Marcha e os «coletes amarelos» são tanto produto como fermento de uma dinâmica de desintermediação da política que não é exclusiva da França, mas que vem minando o conjunto das democracias ocidentais. Encarnam os interesses invisibilizados ou negligenciados de grupos sociais que não se sentiam mais representados. As mediações tradicionais são esquivadas por organizações ou movimentos que surgem e as desestabilizam utilizando as redes sociais, as plataformas e formas ao mesmo tempo horizontais e verticais de mobilização. Traduzem, assim, cada um a seu modo, a decomposição das organizações políticas e o enfraquecimento de sua ancoragem social. Mas se A República em Marcha conseguiu entrar na política e se integrar ao sistema institucional (assim como o Movimento 5 Estrelas, ainda que de outra forma, na Itália), consolidando algumas de suas tendências (presidencialização e ultrapersonalização5), o movimento dos «coletes amarelos» se debilitou (mesmo contando com um apoio elevado e persistente da opinião pública), em parte porque não soube oferecer uma saída política para a mobilização. A dificuldade para estruturar o movimento e o fracasso de suas legendas nas eleições europeias são emblemas desse processo. O movimento revelou a decomposição social dos partidos, por sua ausência de peso social, e a inadaptação dos sindicatos perante as transformações do mundo do trabalho. Demonstrou igualmente a capacidade de se organizar por fora das estruturas de representação. Mas este aspecto se transformou em debilidade e pôs em xeque a durabilidade do movimento e de suas «saídas» políticas.

Uma mobilização por fora dos partidos e sindicatos

Um movimento social «auto-organizado» que surge e se desenvolve fora dos canais tradicionais da contestação e da representação social não constitui nenhuma novidade. Pensemos nas «coordenadoras» dos anos 1980. Mas estas estavam estritamente relacionadas e confinadas a um meio profissional assalariado e foram em grande medida impulsionadas pelos militantes da «esquerda sindical», provenientes principalmente da Confederação Francesa Democrática do Trabalho (cfdt). Elas designaram interlocutores para negociar com o governo. O movimento dos «coletes amarelos» é muito mais amplo e reúne uma parcela importante de pessoas que estão se envolvendo pela primeira vez. É emblemático daquilo que o sociólogo Albert Ogien chama de «práticas políticas autônomas», que se desenvolvem à margem das instituições tradicionais da democracia representativa: agrupamentos, plataformas partidárias, novos partidos como o Momentum na Gran Bretanaha, o Tea Party nos Estados Unidos, o Movimento 5 Estrelas, os indignados, etc., que não buscam conquistar o poder, e sim instalar contrapoderes democráticos e ser fatores de mudança social6. O modus operandi clássico das mobilizações iniciadas pelas organizações tradicionais consiste em lançar uma convocação, fixar uma data e um local, organizar o transporte para os mobilizados e buscar atrair a atenção dos meios de comunicação e dos governantes. A ação coletiva dos «coletes amarelos» não constitui de todo uma ruptura: houve de fato um chamado à mobilização de 17 de novembro de 2018, preparado com bastante antecedência. Mas a dinâmica foi de modo geral espontânea, descentralizada, de início essencialmente local (o movimento se nacionalizou através dos canais de informação contínua e das marchas para a capital dos sábados). O modo de mobilização que perturba os esquemas clássicos de análise é aqui molecular, sem centro nem líder, e não se enquadra em um partido ou organização sindical. O movimento conseguiu impor seu vocabulário e seus símbolos e pontos de concentração: os coletes amarelos nas rotatórias.É uma dinâmica que faz com que os repertórios de ação tradicionais se vejam antiquados e fora de lugar. O poder está desconcertado diante de um movimento sobre o qual não tem chegada e que se recusa a colocar interlocutores para negociar. O jogo representativo tradicional se funda em uma divisão do trabalho entre partidos e sindicatos: a defesa dos interesses setoriais corresponde aos sindicatos, e a tarefa de articular essas reivindicações com propostas políticas pela mediação das instituições políticas é dos partidos. O modelo das «práticas políticas autônomas» abala esse jogo estabelecido e em grande medida esgotado. O movimento agiu como um sinal revelador do desmoronamento das organizações políticas: desvitalizadas e demasiadamente fechadas em seus jogos e objetivos próprios, elas não pesam mais no debate público nem conseguem definir a agenda pública. O protesto social passa por outros canais. A falta de compreensão dos sindicatos – particularmente a Confederação Geral do Trabalho (cgt) – é eloquente nesse sentido. Estes, de início, ignoraram completamente o movimento que, sem dúvida, não compreendem, porque surgiu fora das empresas, prospera em desertos sindicais e é sociologicamente heterogêneo. Um dirigente da cgt de Lyon expressa a posteriori, após seu congresso de maio de 2019, esse desconcerto: «Pela primeira vez, eclodiu um movimento poderoso com o qual não tivemos nada a ver»7.A cgt, precoce e estrategicamente, identificou-o com a extrema direita e pensou que fosse fogo de palha. Em especial sob o efeito da profissionalização do trabalho sindical, os responsáveis sindicais estão cada vez mais defasados em relação às aspirações que são tão próximas à sua tarefa reivindicativa, defendidas por tantos trabalhadores pobres, aposentados humildes ou jovens com emprego temporário8. Como mostrou o sociólogo do sindicalismo Karel Yon, os fatores conjunturais também jogam seu papel: os sindicatos estavam centrados em seus próprios jogos quando o movimento surgiu (os escândalos na Força Operária que levariam à demissão de Pascal Pavageau, as eleições sindicais, etc.)9. Depois a cgt buscou se aproximar do movimento. Em meados de dezembro houve tentativas de aproximação, mas a palavra de ordem comum a favor da greve não teve sucesso.Os partidos políticos, por sua vez, não tiveram nenhuma influência no movimento. O jornal Le Monde aponta, em 6 de fevereiro de 2019, como resultado de uma pesquisa minuciosa sobre os principais grupos no Facebook relacionados ao movimento, que «discursos e argumentos dos partidos políticos tradicionais ocupam apenas um lugar marginal, até mesmo anedótico». O Agrupamento Nacional e a França Insubmissa10 estão muito pouco instalados nas cidades médias ou periurbanas. Os trabalhos sobre a implantação eleitoral da extrema-direita nesses territórios mostram que esta não tem uma verdadeira implantação militante. Vale lembrar que o Agrupamento Nacional não possui mais do que uma vintena de sedes em toda a França11.Os partidos não representam a França «dos setores médios baixos», que são o coração sociológico do movimento12. Os profundos sentimentos de injustiça que este exprime não são mais representados, expressados, politizados pelas organizações de esquerda tradicionais, incluindo os mais radicais como a França Insubmissa. Ainda que os «coletes amarelos» aprovem as palavras de ordem degagistas de Jean-Luc Mélenchon (a «revolta cidadã» contra as elites, a auto-organização do povo), mostraram-se incapazes de se apropriar do movimento. A França Insubmissa se ancora sociologicamente de forma essencial na função pública, nos universitários rebaixados de classe ou na «França dos bairros» (um terço de seus deputados foram eleitos em Seine-Saint-Denis13), segmentos pouco presentes entre os «coletes amarelos» mobilizados. Usando a velha linguagem da ciência política, os «coletes amarelos» demonstram que a função tribunícia já não é exercida por nenhuma organização. Outrora exercida pelo Partido Comunista, ela permitia a incorporação do protesto social e sua organização, mas também sua canalização. Na ausência dessa regulação, o movimento dos «coletes amarelos» assumiu um caráter relativamente incontrolável e não pôde domesticar a violência em seu seio. A República em Marcha demonstrou que sua maioria parlamentar está em grande medida sem base. Os 300 deputados macronistas possuem uma fraca influência em seus territórios locais de eleição e foram com frequência mais alvo de críticas do que mediadores. A sequência mostrou que A República em Marcha paga o preço da ausência de um verdadeiro partido no qual se apoiar. Quase todos os partidos de oposição tentaram se apropriar do movimento a partir de modalidades e ângulos diferentes (os republicanos viram isto primeiro como a ratificação de sua retórica contra os impostos), mas sem um verdadeiro sucesso. A intenção de incluir a todo custo o movimento nas categorias interpretativas da política e dos esquemas partidários revelou-se um fracasso. A composição social heterogênea do movimento não era, evidentemente, «apropriável» pelos partidos. François Dubet o relembra: as organizações partidárias são uma herança do «regime de classes sociais»14. As classes ofereciam uma representação unificada e estável das desigualdades e forjavam identidades coletivas. Os partidos se inseriam (parcialmente) sobre suas identidades e as fomentavam; integrando-os, davam aos dominados uma dignidade. Os «coletes amarelos», por sua vez, manifestam uma forma de individualização do descontentamento social, que torna problemática sua agregação em reivindicações mais articuladas, ainda que François Dubet subestime, equivocadamente a nosso ver, a dimensão coletiva e política do movimento. Essa ausência geral de influências partidárias sobre o movimento e a sensação de que o movimento escapa a todos os enquadramentos da política representativa alimentaram a percepção de que havia uma crise política instalada. O movimento se revelou de fato apartidário e/ou antipartidário. Segundo uma pesquisa realizada por uma equipe de cientistas políticos de Grenoble, 60% dos entrevistados não se situam no eixo esquerda/direita (rejeitam esse eixo) e 8%, nem à esquerda nem à direita (níveis de desfiliação muito mais altos do que na população francesa de modo geral)15. Uma imensa desconfiança em relação às organizações políticas e do mecanismo representativo emerge dos materiais coletados pelos pesquisadores. A crítica dos partidos corre lado a lado com uma concepção da política consensual e sem conflito, com a crença de que os interesses de cada um podem ser respeitados e com uma representação monista e idealizada do «povo», que não se pensa como atravessado por conflitos de classe. A desconfiança se dirige às elites políticas e à política profissional («o povo contra os governantes»16), e muito pouco à patronal, que mal é questionada. Ainda no mesmo estudo, a heterogeneidade social do movimento e sua diversidade ideológica são um obstáculo a toda politização que aceite o conflito. Como afirma Samuel Hayat,

o movimento dos coletes amarelos se opõe aos tecnocratas, mas retoma em grande parte sua concepção pejorativa da política partidária e a forma de pensar a ação pública. O «cidadanismo» é o equivalente democrático do macronismo; ambos nos dizem que é preciso acabar com as ideologias: tanto um quanto o outro reduzem a política a uma série de problemas a resolver, perguntas a responder.17

Uma ação coletiva ainda assim organizada

Os «coletes amarelos» não são, apesar do exposto, um movimento social selvagem, que rejeite toda forma de intermediação. Embora o movimento tenha prescindido de uma organização, seu acionar foi estruturado articulando de forma hábil e multicentrada a dimensão territorial e a digital, as lutas ao redor das rotatórias e das redes sociais, as ações nas províncias e as manifestações em Paris. De fato, foi produzido um trabalho de mediação política e social sem organização nem representação em suas formas habituais. Mais uma vez, o movimento demonstra o potencial de mobilização que a internet oferece e sua capacidade de ampliar o acesso à palavra pública. As redes sociais e sua viralização tiveram um lugar de organização. Estas tendem a funcionar como vetores e impulsionadores contestatários poderosos, permitindo unir pessoas desconhecidas de forma imediata e coordenar apoios e palavras de ordem. O Facebook se impôs rapidamente como a «rotatória das rotatórias» e uma forma de assembleia geral permanente e explosiva do movimento. Dando a elas um caráter não hierárquico, as redes sociais geraram fenômenos de liderança localizados e depois nacionais que não deveriam ser desprezados. Opera, assim, uma forma de reintermediação digital. Mediante as redes sociais, o movimento também produziu e estabeleceu sua própria comunicação fora dos canais midiáticos tradicionais e impôs progressivamente sua linguagem e seus códigos nos estúdios de televisão, que se tornaram ávidos de figuras mundanas e anônimas. Facebook, Twitter e WhatsApp, entre outros, parecem ter reduzido a vantagem estrutural que as elites ou as organizações tradicionais têm sobre os cidadãos e as populações dominadas, a saber, o monopólio das opiniões, o controle da agenda, a ordem do dia, aquilo do que se fala, «o que se passa» e o que é importante.O movimento cumpriu outra função sem contar com organização. Foi desenvolvido um trabalho de elaboração de uma linha política, certamente de maneira fragmentada, mas que conduziu a um alargamento da causa inicial (a oposição ao imposto sobre o combustível, estopim da mobilização) e a um crescimento em termos de generalidade. Os «coletes amarelos» permitiram compartilhar sofrimentos sociais, que se tornaram públicos, e encorajaram a expressão de relatos individuais de misérias, mas esse papel puramente expressivo foi sendo superado progressivamente pela transmutação das penúrias individuais em uma causa coletiva, mesmo que ainda confusa. O movimento foi muitas vezes analisado principalmente como a manifestação negativa de um protesto ou de «paixões tristes», para usar a expressão um tanto desdenhosa de François Dubet. Mas essa análise não faz jus ao trabalho político produzido, embora de maneira desordenada. Para além das reivindicações pontuais iniciais, foram construídos princípios de justiça social, dignidade e reconhecimento. Em 28 de novembro foi publicada uma lista de 42 demandas relativamente coerentes18. De fato, os «coletes amarelos» conseguiram interconectar uma série de desigualdades a partir de uma questão de poder aquisitivo ligada ao imposto ao combustível. Se é certo que as reivindicações foram evoluindo em geral de forma contraditória e sem prioridades, formando uma lista sem muita coerência19, conseguiram levar a justiça social ao centro do debate público. A pesquisa de Jean-Yves Dormagen e Geoffrey Pion em Dieppe mostra o apoio unânime a uma base de demandas em torno de uma agenda de justiça social. A revalorização do salário mínimo, o reestabelecimento do imposto de solidariedade sobre a fortuna e o aumento das aposentadorias suscitaram a aprovação de 90% das pessoas entrevistadas20.Além dessa estruturação da opinião pública, o movimento assumiu outra função que as organizações e os partidos políticos cumprem cada vez menos: a de sociabilidade, solidariedade e socialização21. As pesquisas e mídias documentaram o convívio das rotatórias e a fraternidade e ajuda mútua que as animavam. Os «coletes amarelos» revelaram a solidão e o desemprego, notadamente das mulheres sozinhas – muito presentes no movimento –, mas também o anseio de mudança, de mão estendida, de reciprocidade. Todos valores que tendem a desaparecer dos partidos de esquerda, cuja sociabilidade se debilita e que possuem cada vez menos lugares de convivência e conhecimento mútuo. Esses intercâmbios e relações sociais foram também o caldeirão cultural de um processo de politização e de aprendizagem da política.

Os dilemas estratégicos do movimento

A descrita auto-organização foi eficaz, mas logo foi colocada a questão da durabilidade do movimento e, depois, a de sua organização. O jogo representativo foi invertido, mas ainda assim impõe suas regras. As forças do movimento (sua flexibilidade, sua informalidade, sua horizontalidade, entre outras) são também suas fraquezas (ausência de horizonte estratégico claro, de legibilidade, etc.). Posto que pretendia ser mais do que um protesto pontual (o que se infere pela ampliação de alcance de suas palavras de ordem), surgiram suas aporias. A partir de fevereiro de 2019, a fratura entre a estratégia das ruas e a das urnas ficou cada vez mais forte, sendo que esta última implicava a formalização de uma organização na perspectiva das eleições europeias de maio. Tornar-se ou não uma organização (não necessariamente ligada ao jogo eleitoral): essa foi uma das questões centrais que balançaram o movimento. Um dilema logo se impôs: entrar no jogo representativo (eleitoral notadamente ou no campo das organizações do movimento social) para perdurar e ter peso, encontrar uma «saída», sob o risco da normalização e da institucionalização, ou manter uma forma de movimento não organizado ou sem lógica de representação conforme seu estilo e garantia de eficácia até então. Em outras palavras, resumindo uma alternativa clássica dos movimentos emergentes: tomar partido sob o risco de ser tomado pela política partidária. O movimento Nuit Debout (Noite de Pé), alguns anos antes, havia atravessado as mesas dúvidas e dilemas. Os mobilizados são tão resistentes assim a toda e qualquer organização? É possível duvidar disso. A pesquisa de Dormagen e Pion em Dieppe mostra que 91% dos consultados desejam se estruturar em um movimento organizado e duradouro, e 80% pensam que é preciso um porta-voz para os representar. A questão prática do «como» é mais problemática...Diversas «estruturas» de coordenação nacional dos «coletes amarelos» se constituíram ao redor de três legitimidades principais: a das redes, a dos estúdios de televisão e a do terreno, mas o movimento não fixou regras organizacionais. Apesar dos numerosos microlíderes que geraram, os «coletes amarelos» não têm representantes oficiais e se furtam à exortação dos governantes que os incitam a produzi-los. Impulsionados pela sua influência nas redes, os líderes reivindicam o fato de não o serem e são questionados se forem muito. Toda tentativa de encontrar porta-vozes fracassou. No final de novembro, uma parte do movimento anunciou a criação de uma delegação de oito interlocutores, após uma consulta a 30.000 pessoas na internet. Mas esses «mensageiros», não concebidos como «tomadores de decisão», foram rapidamente desaprovados. Um representante teria, sem dúvida, afetado a identificação ampla que beneficiou o movimento, mas a ausência de líderes reconhecidos também teve um efeito negativo: o senso de movimento foi construído a partir de fora. Perante a falta de porta-vozes, o fizeram falar... muito e frequentemente para prejudicá-lo.Um grupo de «coletes amarelos» dos estúdios de televisão surgiu em torno de Hayk Shahinyan, o «Coletivo 17 de Novembro», que foi a origem de um projeto de legenda efêmera para as eleições europeias encabeçada por Ingrid Levavasseur, mas o projeto fracassou rapidamente. Foram lançados outros projetos de candidaturas (uma dezena deles) e tiveram sorte similar. As lógicas do jogo eleitoral deixaram o movimento sob tensão. «No momento em que a gente aspira a ter votos, não pode mais sustentar o debate de ideias», declarava em fevereiro François Boulo, porta-voz dos «coletes amarelos» de Rouen, «já que é preciso participar de estratégias para se fazer eleger»22. Embora o «colete amarelo» Éric Drouet tenha chamado o movimento a não dispersar o voto para eles terem peso nas eleições europeias, isso não se traduziu politicamente durante os sufrágios. Finalmente, foram apresentadas três candidaturas que reivindicavam os «coletes amarelos» nas eleições europeias, que obtiveram, somadas, 1% dos votos. Paralelamente, tentou tomar corpo outra dinâmica não eleitoral de coordenação do movimento. Em 30 de novembro, um grupo de rotatórias de Commercy, pequena cidade de Meuse, lançou um chamado a criar assembleias populares em toda a França, seguindo princípios próximos do municipalismo libertário. A questão democrática da representação do movimento esteve no centro da primeira Assembleia das Assembleias, que convocou em janeiro uma centena de delegações dessa cidade. A recusa da representação política constituiu a base desse processo marcado pelo repúdio à hierarquia e à delegação. A legitimidade dos delegados dessa assembleia para falar em nome de todos os «coletes amarelos» foi constantemente questionada. «Há tanta desconfiança, existe o medo de trair e ser identificado com aquilo que se combate: esse deputado a quem delegamos nosso voto e que, uma vez na Assembleia, atua sem nos consultar nunca», confidenciou Dominique, de 57 anos, proveniente de Seine-et-Marne. Um animador dos debates se perguntava: «Como se organizar para ser o mais democrático possível? Percebem? É o que tentamos fazer hoje à noite e é muito difícil!»23. No apelo final, lê-se: “Não queremos ‘representantes’ que terminem forçosamente falando em nosso lugar (…) Se nomearmos representantes e porta-vozes, isso acabará por nos tornar passivos. Pior ainda: não tardaremos a reproduzir o sistema e funcionar de cima para baixo como os crápulas que nos governam». Ou ainda: «Não ponhamos novamente o dedo na engrenagem da representação e da cooptação».A Assembleia das Assembleias se reuniu mais duas vezes. Cerca de 700 «coletes amarelos», delegados de 235 grupos de toda a França, encontraram-se em abril em Saint-Nazaire para a segunda Assembleia das Assembleias e, depois, em junho, em Montceau-Les-Mines. O propósito de estruturar o movimento no longo prazo («ancorar-se no tempo») foi reafirmado, mas da maneira mais horizontal possível. No entanto, aqui também surgiu um impasse. Essa segunda dinâmica também se bloqueia...O movimento não resistiu no tempo, mesmo tendo se beneficiado de um longo e poderoso apoio da opinião pública. O cenário da passagem da esfera social para a esfera política ou eleitoral fracassou rapidamente e marcou assim o limite do processo de desintermediação em andamento. Os «coletes amarelos» expressam ao mesmo tempo uma aspiração à política e um rechaço em relação à política instituída e eleitoral. A oposição entre o topo e a base está no coração do movimento, que participa, desse ponto de vista, de uma «situação populista» (ainda que a rejeição da figura do líder o afaste desta). Nesse movimento, as organizações e mediações não têm lugar, pois seu descrédito é muito profundo, mas também porque se baseiam em uma concepção monista de um povo homogêneo, cuja defensa de interesses se consideraria de alguma forma dada. Como recentemente recordou Yves Mény, a democracia, tal como funciona, baseia-se na representação e supõe uma mediação generalizada das redes sociais e políticas. Grupos, sindicatos e partidos agrupam, estruturam, organizam, mobilizam e atuam por conta de indivíduos, consumidores, cidadãos, que não possuem necessariamente as qualidades, os meios e a vontade ou a disponibilidade de tempo necessária para a ação individual. Esses filtros estão desaparecendo ou, em todo caso, atravessam uma profunda crise.24

Os «coletes amarelos» são um poderoso indicador dessa crise, mas também dos impasses para sair dela. Ocorreu, de fato, uma mediação que se beneficia dos recursos tecnológicos das redes sociais, mas a rejeição da representação leva o movimento a uma forma de impasse político e estratégico. Não ser ou se tornar um partido ou uma organização: essa é ao mesmo tempo a força dos «coletes amarelos»... e a sua fraqueza. Marcado por uma horizontalidade radical que se acentuou com o tempo, o movimento se condena à impotência. Participa de uma poderosa corrente de desfiliação em relação às instituições da sociedade civil e às elites, mas acaba sendo minado pela incapacidade de produzir novas mediações que superem o contexto de mobilização. A politização do movimento segundo os esquemas clássicos teria certamente exacerbado suas contradições. Na democracia representativa, as organizações continuam sendo, sem dúvida, sob condição de renovar radicalmente seu modelo, estruturas indispensáveis para agregar de forma duradoura os interesses coletivos, defendê-los e incorporá-los ao sistema político através de programas e proposições... Revelador do estado de desestruturação das categorias populares, o movimento dos «coletes amarelos» constitui um desafio para a esquerda: que mediações reconstruir com a sociedade se o descrédito das organizações é radical? Apesar de seus impasses, os «coletes amarelos» terão posto a questão democrática no coração do debate público. Longe de escorregar para temáticas xenófobas, sua agenda evoluiu, com certa coerência, da justiça social para a questão democrática, seguindo um processo bastante próximo ao do movimento Nuit Debout (ainda que sociologicamente ambos fossem no início muito diferentes)25. Como se, atualmente, a questão da democratização das instituições fosse a condição prévia para a resolução da crise social...

  • 1.

    Gérard Noiriel faz referência em diversas entrevistas ao conceito de Bernard Manin. Ver Nicolas Truong: «Gérard Noiriel: Les ‘gilets jaunes’ replacent la question sociale au centre du jeu politique» em Le Monde, 27/11/2018.

  • 2.

    Especialmente no caso da República em Marcha, os fenômenos de reconversão e continuidade não devem ser ignorados.

  • 3.

    «Degagismo», do verbo dégager, em francês, que significa «cair fora»; tem seu correspondente na conhecida expressão em espanhol « que se vayan todos», referida a todos os políticos do sistema vigente [n. da t.].

  • 4.

    Bernard Dolez, Julien Fretel e Rémi Lefebvre: «Introduction générale. La science politique mise au défi par Emmanuel Macron» em B. Dolez, J. Fretel e R. Lefebvre (dir.): L’entreprise Macron, Presses Universitaires de Grenoble, Grenoble, 2019.

  • 5.

    As classes dominantes, contrariamente à crença popular, se entregariam com menos resistência a um líder?

  • 6.

    Ver A. Ogien: «Le spectre de la démocratie directe» em Libération, 31/1/2019.

  • 7.

    Raphaëlle Besse Desmoulières: «Au congrès de la cgt, les ‘gilets jaunes’ occupent les esprits» em Le Monde, 17/5/2019.

  • 8.

    Guillaume Gourgues e Maxime Quijoux: «Syndicalisme et gilets jaunes» em La Vie des Idées, 19/12/2018.

  • 9.

    K. Yon: «Les syndicats dans la roue des Gilets jaunes» em «Gilets jaunes». Hypothèses sur un mouvement, La Découverte, Paris, 2019.

  • 10.

    Movimento de esquerda fundado em 2016 e liderado por Jean-Luc Mélenchon [n. do e.].

  • 11.

    R. Lefebvre: «Des partis en apesanteur sociale?» em Igor Martinache e Frédéric Sawicki (dirs.): La fin des partis?, puf / La Vie des Idées, 2020.

  • 12.

    Isabelle Coutant: «Les ‘petits-moyens’ prennent la parole» em Joseph Confavreux: Le fond de l’air est jaune, Seuil, Paris, 2019.

  • 13.

    Cidade operária do «cinturão vermelho» que hoje abriga um dos maiores centros de negócios de Île-de-France [n. do e.].

  • 14.

    F. Dubet: Le temps des passions tristes. Inégalités et populisme, Seuil, Paris, 2019.

  • 15.

    «Qui sont vraiment les ‘gilets jaunes’? Les résultats d’une étude sociologique» em Le Monde, 26/1/2019.

  • 16.

    Desse ponto de vista, os «coletes amarelos» marcam um desvio do «populismo» do campo político ao social.

  • 17.

    aavv: «L’économie morale et le pouvoir» em J. Confavreaux: op. cit.

  • 18.

    Patrick Farbiaz: Les Gilets jaunes. Documents et textes, Éditions du Croquant, Vulaines-sur-Seine, 2019.

  • 19.

    A rejeição ao gasto público e aos impostos coexiste de maneira problemática com a demanda de intervenção do Estado.

  • 20.

    J.-Y. Dormagen e G. Pion: «Le mouvement des ‘gilets jaunes’ n’est pas un rassemblement aux revendications hétéroclites» em Le Monde, 27/12/2018.

  • 21.

    Laurent Jeanpierre: In girum. Les leçons politiques des ronds-points, La Découverte, Paris, 2019.

  • 22.

    Aline Leclerc: «Les européennes à venir divisent les ‘gilets jaunes’» em Le Monde, 12/4/2019.

  • 23.

    A. Leclerc: «Dans la Meuse, une assemblée de ‘gilets jaunes’ de toute la France propose un appel commun» em Le Monde, 27/1/2019.

  • 24.

    Y. Mény: Imparfaites démocraties, Presses de Sciences Po, Paris, 2019, p. 232.

  • 25.

    A crise das modalidades de representação política e de formulação de novas demandas democráticas é explicada, sem dúvida, pela evolução sociológica do movimento, como mostra o trabalho em andamento de Magali Della Sudda na Sciences Po Bordeaux.

Este artículo es copia fiel del publicado en la revista Nueva Sociedad , Dezembro 2020, ISSN: 0251-3552


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