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Esquerdas e feminismos, marcos contemporâneos


Nueva Sociedad Agosto 2016

No contexto dos atuais debates das esquerdas, torna-se produtivo revisitar o encontro entre esquerda e feminismo com um olhar contemporâneo. Em um tema tão vasto, uma forma de acesso é recorrer brevemente a alguns marcos dos últimos anos, por meio dos quais é possível repassar encontros e desencontros entre esquerdas e feminismos cada vez mais plurais. Da América Latina a Europa e Oriente Médio, a relação problemática, embora frutífera, revela suas próprias tensões e desafia os limites identitários e políticos de quem se apresenta ao diálogo e à tarefa comum em busca de projetos que enfrentem as desigualdades em suas múltiplas dimensões.

Esquerdas e feminismos, marcos contemporâneos

Ainda hoje, parece impossível falar da relação entre a esquerda e o feminismo sem recair no imaginário romântico e na figura do desencontro. Essas metáforas foram cunhadas de forma vigorosa durante as décadas de 1970 e 1980, quando se tornaram mais intensos os debates sobre casamentos malsucedidos ou namoros infelizes que a esquerda – sobretudo marxista – e o feminismo haviam mantido ao longo do século xx.

Esses desencontros viriam de muito longe, com cenas representativas como as de Vladimir I. Lênin repreendendo Clara Zetkin pelos supostos desvarios do amor livre, ou Alexandra Kollontay clamando por uma nova moral e uma mulher nova diante do olhar desconfiado de seus camaradas bolcheviques. Tudo isso no cenário paradoxal de uma revolução que adiantava em um século o relógio dos direitos das mulheres, para atrasá-lo logo depois, quando, no calor do stalinismo, seria desmantelada a maior parte dos avanços dos anos 1917-1930.

Se o desencontro é algo constante, o mesmo não ocorre com a identidade de quem integra o suposto casal malsucedido. Cada vez mais, falamos em plural, de esquerdas e feminismos: esquerda social-democrata, marxista, anarquista, radical, popular, revolucionária, popular ou anticapitalista, por um lado; pós-feminismo, feminismo popular, lesbofeminismo, feminismo queer, transfeminismo, feminismo pós-colonial ou ecofeminismo, por outro. E isso sem que nenhuma das duas listas contemple todas as possibilidades, pois estamos diante de expressões que estão sendo renomeadas no exato momento em que escrevemos, ao vertiginoso ritmo das redes sociais e ao passo mais lento – mas não menos ativo – das práticas políticas concretas.

Obviamente, no vasto universo político, há quem siga insistindo no momento do encontro como, por exemplo, os feminismos anarquistas e socialistas, ou as esquerdas antipatriarcais. Mas há também nos feminismos quem há muito já abandonou, com decepção, o diálogo com uma esquerda que acabaria por se demonstrar misógina, surda e patriarcal. Este artigo não terminaria nunca se nos dispuséssemos a revisar cada uma das experiências ocorridas, além do mais, em diferentes regiões do mundo e com especificidades locais sempre difíceis de considerar a distância, uma vez que as vozes não se distribuem igualmente na imensa polifonia dos meios de comunicação e redes sociais.

No entanto, podemos dar conta de alguns marcos de destaque que, nos últimos anos, reativaram a avaliação do encontro (e do desencontro) entre essas esquerdas e feminismos cada vez mais plurais. Sem dúvida, um antecedente é o desembaraço com que o então presidente venezuelano Hugo Chávez qualificou a si mesmo em várias oportunidades como um convencido feminista. O líder da chamada Revolução Bolivariana apostava em um socialismo do novo século que tivesse o feminismo entre suas virtudes. Nessa tônica, não hesitou em reiterar seu posicionamento no encontro de presidentes do Fórum Social Mundial de 2009 e perguntar a um visivelmente incômodo Rafael Correa, já presidente do Equador, se ele também era feminista. O evidente voluntarismo de Chávez, que identificava uma perfeita conexão entre feminismo e socialismo, deparou-se com a concordância forçada de um Correa que mordia os lábios e se constrangia diante de um público fervoroso1.

Alguns anos depois, essa tímida resposta de Correa acabou por se transformar em uma postura totalmente clara. Em 2013, durante o debate pelas modificações na regulamentação do aborto, e contra as parlamentares de seu próprio partido (Aliança País), Correa ameaçou renunciar caso se avançasse na legalização do aborto em casos de gravidez produzida pelo estupro de mulheres com deficiência mental. A ilusão que a «Revolução Cidadã» tinha despertado em uma parte do feminismo desmoronou por completo quando o presidente disse, durante um ato oficial no fim daquele mesmo ano, que no Equador se respeitava o «movimento feminista pela igualdade de direitos», mas não o «perigosíssimo» extremo de uma «ideologia de gênero» que lutasse por uma liberdade absoluta dos gêneros sem ter nenhum fundamento «acadêmico». Cinco minutos de vídeo já são suficientes para ver discorrido o ideário do mais clássico catecismo antifeminista e homofóbico, incluindo a usual advertência de que isso «é ensinado a crianças e jovens» e destrói a «família convencional»2. Prevenindo a chuva de críticas que o rotulariam, no mínimo, de retrógrado, o presidente parece naquele momento responder ao desinibido Chávez, já falecido: essas questões não seriam de esquerda nem de direita; são «moralidades» distantes dos temas centrais da economia e da política. Apesar desse discurso, em 2013 e 2015, Correa realizou reuniões com organizações lgbt (sigla para lésbicas, gays, bissexuais e transexuais), nas quais se estabeleceram alguns compromissos sobre temas de violência, saúde, educação e cidadania3.

Além de provocar abalos em seu próprio grupo e a satisfação dos grupos católicos e ultracatólicos, essas manifestações do presidente dividiram tanto os setores feministas e lgbt já incluídos na célebre revolução como também aqueles que mantinham uma distância crítica. Mas, sobretudo, elas evidenciaram os limites da construção de uma nova cidadania na qual as reivindicações feministas históricas, agora rebatizadas como um fundamentalismo inaceitável, seriam proteladas e ressignificadas nos discursos e ações governamentais. Para dar apenas um exemplo, o trabalho da Estratégia Nacional Intersetorial para o Planejamento Familiar e a Prevenção da Gravidez Adolescente (Enipla, no acrônimo em espanhol) foi transferido dos ministérios para o Poder Executivo e acabou redefinido sob a autoridade da médica Mónica Hernández, reconhecida por sua proximidade com os setores católicos mais tradicionais4.

Além das particularidades nacionais, esse marco deixa claro que não está em discussão a participação legítima do feminismo em uma revolução que se reconhece à esquerda da ordem mundial hegemônica. Porém, o que de fato está em jogo a cada passo é a própria definição desse feminismo; há inclusive um esforço permanente pelos alcances de um termo mais próprio da segunda metade do século xx, como o de gênero. Frequentemente, tanto na política como na mídia e em alguns âmbitos acadêmicos, os termos «feminismo» e «gênero» são utilizados como espécie de sinônimos para «mulher». Assim enunciada, a «questão da mulher» foi uma preocupação que as esquerdas nascentes compartilharam com sua época e até mesmo a enalteceram com o destaque de suas figuras pioneiras, começando por Charles Fourier, o qual sustentava que o grau de emancipação de uma sociedade poderia ser medido pelo grau de emancipação da mulher (é preciso excluir aqui algumas referências, como, sem dúvida, o próprio Pierre-Joseph Proudhon, que chegava a se irritar ao extremo com o avanço feminino). Já o Manifesto Comunista considerava a importância do tema, e autores fundacionais como Friedrich Engels e August Bebel, escreveram, cada um deles, livros que serviram de indiscutível base para falar, a partir da esquerda, sobre «a Mulher», sua história e seu futuro5.

No entanto, daquelas primeiras formulações até os dias de hoje, há mais de um século de escritos6. O feminismo fez dessa questão um movimento político e um fértil corpo teórico que teve sua primeira, segunda e até mesmo uma quarta onda. Diversas autoras e polêmicas habilitaram processos teóricos e políticos que levaram a desfazer a maiúscula da palavra «Mulher», entronizar a experiência vital de «as mulheres» e desconstruir a própria noção de «mulher» como sujeito da emancipação feminista. O conceito de gênero foi forjado nesse processo e, por isso, é um termo altamente dinâmico e com uma operacionalidade política que muitas vezes oculta sua complexidade teórica. Ainda que advindo das ciências médicas, sua redefinição no feminismo foi produzida precisamente no diálogo com o marxismo. Vestígios das primeiras manifestações acadêmicas surgem no texto clássico «O tráfico de mulheres: notas sobre a economia política do sexo»7 (1975), em que Gayle Rubin relê pela ótica feminista as figuras ímpares do pensamento ocidental, entre elas Marx e Engels8, e conclui clamando pela reelaboração de uma nova Origem da família, da propriedade privada e do Estado que recupere o melhor da pergunta engelsiana. Pouco depois, Donna Haraway escrevia o verbete «gênero» a pedido de editores de um dicionário marxista9. Novamente, reaparecia ali com produtividade o persistente nó teórico e político entre «gênero» e «classe». Isso sem entrar nos acalorados debates entre o feminismo radical, o feminismo liberal e o feminismo socialista da década de 197010.

Apesar da riqueza de todo esse caminho de criação e debate, a noção de gênero continua circulando nas esquerdas como sinônimo de «mulher» graças, em parte, ao desconhecimento da produção teórica e política feminista. Esses conceitos somente se distinguem, como demonstra o marco equatoriano, quando «feminismo» aparece como um termo muito intenso ou politizado, um exagero ao qual se prefere «mulher». E nesse aspecto, governos que se consideram progressistas coincidem com a Igreja católica, muito relutante a uma «ideologia de gênero» que permearia com suas propostas extremistas as legislações nacionais e a educação.Essa lógica do sinônimo é rompida particularmente quando se torna mais intenso o desdobramento de um tipo de antifeminismo ou neomachismo em voga, segundo o qual homens e mulheres preferem se declarar não feministas, apesar de dizerem respeitar grande parte do ideário que o feminismo transformou em agenda. Em diversas oportunidades, ao ser consultada em entrevistas ou como parte de seu discurso espontâneo, a ex-presidenta argentina Cristina Fernández se diferenciou das posições feministas. Como variação desse distanciamento, ao anunciar um plano que beneficiava as mulheres na Assembleia Legislativa, ela se referiu a outro plano direcionado aos homens, justificando: «Para que não me digam que sou uma feminista má»11. Esse tipo de declaração demonstra que há uma batalha ganha com relação à centralidade do feminismo e suas reivindicações na política, mas tenta-se constantemente conter esse avanço com o objetivo de reduzir o feminismo a suas expressões mais moderadas, usuais e aceitáveis. Consequentemente, são limitadas as agendas e, ao compasso de organizações e financiamentos transnacionais, os temas centrais costumam ser aqueles relacionados com a mulher em condição de vítima e enquadrados no mais franco punitivismo. Assim, violência de gênero, tráfico e femicídio lideram os programas governamentais, mas a liberdade das mulheres de fazer as escolhas relativas a seus corpos e o acesso legal ao aborto são questões ignoradas ou devidamente mediadas pelos discursos da saúde e da proteção. Nesse âmbito, tornam-se fundamentais a criatividade e a vitalidade do heterogêneo movimento feminista que, enquanto por um lado avança no lobby parlamentar, por outro cria redes de solidariedade, socorro e acompanhamento para as mulheres que, independentemente de regulamentação, praticam o aborto12.

Outro marco recente é a surpreendente conversão de Evo Morales, presidente do Estado Plurinacional da Bolívia, que declarou ser um feminista que se permitia contar piadas machistas13, ao mesmo tempo em que enaltecia a Mulher em abstrato e as sofridas e caladas mulheres em concreto. As críticas não demoraram em aparecer; a Bolívia conta com um movimento feminista diverso que vai em seus extremos desde os setores comprometidos com o governo do Movimento ao Socialismo (mas), ligados ao feminismo comunitário, até o ativo grupo de feministas anarquistas e autônomas, cuja face mais visível é María Galindo do grupo Mulheres Criando.

Foi precisamente ela que, diante de uma declaração homofóbica de um legislador do mas, registrou uma denúncia e conseguiu que Álvaro García Linera, vice-presidente do país, lhe convocasse para um diálogo direto14. O intercâmbio é interessante em muitos sentidos, e não só por seu conteúdo, mas também pela forma como eles se dispõem a dialogar. Galindo assume a posição esperada de uma ativista «antiestatal» (e contrária, por exemplo, à reivindicação do casamento entre pessoas do mesmo sexo, pois isso significaria assemelhar-se ao modelo burguês de família). Por sua vez, Garcia Linera escolhe assumir o papel de um Estado amigável e de ouvinte paciente, que retribui com delicadeza toda provocação. Diante de cada reivindicação, ele a convida a participar, a propor ideias, a governar: «Diga-me o que fazer, María». Logo, envolve a ativista nos detalhes de uma exigência que, na boca de uma feminista radical, surge como uma demanda mínima: Galindo propõe a realização de uma pesquisa sobre temas de gênero entre os parlamentares. Então, quando ela parece exigir medidas mais radicais – a educação sexual efetiva nas escolas e a legalização do aborto –, o vice-presidente a faz perceber o flagrante paradoxo: uma anarquista que pede mudanças ao Estado. E finalmente, quando a ativista endurece sua postura e denuncia a lógica clientelista do governo, ele lança mão da manobra descrita anteriormente e, agora com firmeza, delimita o feminismo aceitável, que obviamente estará distante do «neovanguardismo feminista» representado por Galindo.

Grande parte desse extenso diálogo é uma delicada armadilha que ilustra outro capítulo da relação entre as esquerdas e o feminismo: o momento em que a esquerda governa. Essa instância reacende a antiga divisão do feminismo entre as correntes institucionalistas e as autônomas. Próximo ao Estado, é possível transformar reivindicação em legislação, programas e ações adequadamente financiadas. Mas, de perto, também é possível ver como as leis se descaracterizam na realidade concreta das regulamentações e escassos orçamentos. Por sua vez, longe do Estado, as reivindicações parecem mais vivas e descontaminadas, mas são reduzidas em sua capacidade de irradiação e alcance de um território maior. O feminismo autônomo sabe fazer ecoar o alerta quando as forças dos aparatos do Estado impõem uma lógica diferente e oposta à horizontalidade, à fraternidade e à autoconsciência que a experiência feminista reivindica. E ao mesmo tempo, a partir das secretarias e órgãos estatais, muitas feministas mantêm com bravura o núcleo mínimo de reivindicações nos ásperos cenários da política real. De forma um tanto paradoxal, é provável que esse jogo arriscado do contato com o Estado ofereça melhores chances ao feminismo quanto mais ativo e diversificado ele for como movimento autônomo, compreendendo que sua capacidade para a autorreflexão e o trabalho sobre si mesmo é uma contribuição substancial para a política em todas as frentes.

O diálogo Galindo-García Linera expõe alguns dos limites desse jogo; neste caso, as dificuldades dela para atuar nesse contexto – em contraste com suas criativas performances diante de situações de repressão – e o paradoxo de que seja o vice-presidente a pessoa que pede à ativista para expandir as fronteiras do possível no Estado.

Outro marco muito próximo no tempo é o debate suscitado na formação do governo grego, no início de 2015, depois da vitória do Syriza, coalizão de esquerda com uma promissora bandeira de várias cores. No entanto, a fotografia do gabinete ministerial recém-formado não poderia ser mais masculina e ativou imediatamente manifestações feministas, incluindo as do Fórum de Política Feminista da Espanha – país que por seu próprio processo político tinha sua atenção voltada para a Grécia –, através de uma carta aberta a Alexis Tsipras, novo primeiro-ministro grego, intitulada «Sin mujeres no hay democracia» [Sem mulheres não há democracia]15. Nela, era exigida de forma direta a incorporação de ministras no gabinete, e esse pedido concreto acabou sendo criticado por aqueles que, conhecendo o processo grego de perto, encobriam a evidente preeminência masculina divulgando as biografias de várias mulheres em cargos fundamentais do novo governo16; mulheres que a crítica feminista externa, inesperadamente alinhada aos duros embates opositores enfrentados pelo novo governo, contribuía para invisibilizar denunciando, com boas intenções, sua suposta ausência. Além disso, as feministas evidenciaram o ponto fraco das regulamentações que exigem paridade ou uma cota predeterminada: não é qualquer mulher que garante uma agenda feminista, nem sequer uma que instale a prioridade de direitos para as mulheres. Margaret Thatcher (primeira-ministra do Reino Unido), Condoleezza Rice (secretária de Estado dos eua) e Angela Merkel (atual chanceler alemã) são só alguns exemplos. Entretanto, para além de seus posicionamentos políticos, seria preciso perguntar também em que condições as mulheres alcançam os cargos de maior poder.

Quanto a essa questão, é interessante lembrar como o impacto publicitário provocado pelo chamado «governo rosa» do então presidente socialista espanhol José Luis Rodríguez Zapatero em 2004 – que se destacou por formar um gabinete de nove ministras e oito ministros – se desfez depois de analisadas as biografias pessoais. Um olhar feminista experiente poderia comprovar que a celebrada maioria feminina dependia de alguns dados muito objetivos e reveladores. Com exceção de um, todos os ministros eram casados, ao passo que mais da metade das ministras declarava não ter relacionamento estável. Por sua vez, enquanto os oito ministros possuíam ao todo mais de vinte filhos e filhas, com relação às nove ministras, esse número não chegava a dez17. Deixando de lado as opções pessoais, essa simples conta demonstrava que o acesso das mulheres a cargos públicos (e também privados) de alto escalão não parecia modificar as relações familiares tradicionais nem as práticas de assistência; ao contrário, tais práticas se mantinham mais ou menos intactas, já que os homens não pareciam ter a necessidade de resignar à paternidade ou à vida familiar para participar das altas esferas da política18.

A querela passageira provocada pela glamorosa fotografia das ministras na capa da revista Vogue lembra-nos que, na relação entre as esquerdas e os feminismos, é importante não apenas contabilizar as mulheres que chegam a ocupar os espaços de decisão, mas sobretudo, em que termos elas o fazem. Além de quantas e como, é preciso observar quem são essas mulheres. Modelos diversos vêm sendo esboçados desde sempre com o objetivo de compreender, orientar ou moderar a participação feminina. Há pouco tempo, as mulheres curdas ganharam muita visibilidade no contexto do movimento de libertação no Curdistão e sua luta contra o Estado Islâmico. De imediato, suas figuras belas e exóticas cobertas com a dura imagem de suas longas armas seduziram a imprensa internacional. As esquerdas redobraram sua atenção a esse processo revolucionário que, em meio a uma guerra desigual, revelava estratégias criativas de autogoverno com inclusão das mulheres. Contudo, é preciso buscar muito entre os entusiasmados parágrafos dedicados às combatentes para compreender que sua construção como movimento não segue a lógica improvisada com que a mídia internacional as descobriu.

A recente viagem pela América Latina de Melike Yasar, representante do Movimento de Mulheres Livres do Curdistão, nos permitiu vislumbrar o longo processo de construção de uma organização que hoje mostra ao mundo uma quantidade invejável de estratégias de autogoverno na zona de Kobanê. Durante sua presença no 30o Encontro Nacional de Mulheres, realizado na cidade argentina de Mar del Plata em outubro de 2015, Yasar revelou os detalhes de uma verdadeira refundação da mulher em uma antiquíssima realidade patriarcal. Cada ação supôs, além de diversos casos de estupro, tortura e morte, um caminho de lenta construção de novas subjetividades no contexto de uma luta dupla: contra o inimigo em comum e contra a razão patriarcal encarnada de forma perversa nas próprias famílias. Nesse sentido, o processo curdo revela a um Ocidente progressista um tanto fascinado com ele que um encontro frutífero entre as esquerdas e os feminismos não deve perder de vista as microfísicas dos poderes diante de tanto interesse sobre os parâmetros macroeconômicos e supranacionais. O dia-a-dia, os problemas cotidianos, a organização da assistência e a gestão dos afetos fazem parte de uma construção trabalhosa e muito situada que cresce, ainda que as lentes da mídia internacional demorem a descobri-los e globalizá-los.

Não podemos dizer que o mundo dos afetos, das paixões e das emoções (já há todo um campo de estudos para demarcar matizes) tenha tido pouca presença nas políticas da última década. Indignações, saturações, novas sociabilidades e exteriorizações corporais protagonizaram acontecimentos como a chamada «primavera árabe» ou o 15-m na Espanha. Foi durante o acampamento espanhol que a relação voltou a mostrar sua face espinhosa, a julgar pelo surgimento da bandeira que anunciava «A revolução será feminista ou não será» e que acabaria sendo violentamente arrancada da praça. Na complexa transição que vem realizando o Podemos entre aquela agitada indignação popular e uma estratégia eleitoral com verdadeira vocação de poder, parece que a máxima «Agora não é o momento» voltou a prevalecer sobre as reivindicações históricas do feminismo19. E apesar das promissoras novidades, como o documento «Reorganizar el sistema de cuidados: condición necesaria para la recuperación económica y el avance democrático»20 [Reorganizar o sistema de assistência social: condição necessária para a recuperação econômica e o avanço democrático], feminismos autodenominados radicais ou queer fizeram notar sua satisfação e evidente reprodução dos ditames de um feminismo branco, heterossexual, de classe média e profissional. Além disso, apesar da elevada participação de feministas nas fileiras do Podemos, outra parte do feminismo, representada pela histórica Lidia Falcón, preferiu unir o Partido Feminista às fileiras da Esquerda Unida. Quanto a esse aspecto, é preciso não só refletir sobre a dificuldade histórica das esquerdas clássicas para pensar fora do enquadramento heterossexual, mas também recordar os duros combates no interior do feminismo quando nele era difícil romper com esse mesmo enquadramento. As vozes do feminismo lésbico e as mais recentes contribuições das identidades trans e intersex permitiram redesenhar os contornos e a própria linguagem de «umx sujeitx» da emancipação feminista que excede a clássica definição de «mulher».

É possível argumentar, com certa razão, que reconduzir os debates internos do feminismo a uma política tradicional é uma tarefa complexa; e articulá-los com estratégias de emancipação pode ser ainda mais complexo se considerarmos que nem todo feminismo persegue objetivos revolucionários ou nem sequer uma reforma política profunda. Por um lado, há desde sempre o feminismo de contorno liberal, que se conforma em incluir no capitalismo normas igualitárias e de promoção da mulher. Mas, ao mesmo tempo, vem ganhando força um feminismo publicitário que se soma ao panorama da diversidade próprio do novo século, sem discutir a exploração econômica ou outras formas de opressão. Há na mídia mundial cada vez mais cantoras pop que entoam alguma frase picante, anúncios de produtos de beleza e limpeza que flertam com a «nova mulher» e figuras do star system global que se vinculam a alguma boa causa com calculada prudência.

Uma análise muito mais precisa desse processo pode ser encontrada no mais recente livro de Nancy Fraser, que há muito tempo vem denunciando a cumplicidade entre o capitalismo neoliberal e determinadas formas de feminismo21. O desenvolvimento de uma economia de livre mercado e as novas formas de desigualdade e exploração não sofreriam nenhuma redução e, ao contrário, poderiam ser inesperadamente favorecidos com certas vertentes da crítica ao sexismo22. No mesmo sentido, Judith Butler advertia alguns anos atrás sobre a forma como a instalação de novos direitos para a comunidade lgbt se vinculava com redefinições do humano que se transformavam em novas modalidades de exclusão da diferença racial ou cultural. Assim, um teste aplicado a possíveis imigrantes na Europa incluiu a aceitação da homossexualidade masculina como modo de demonstrar capacidade de assimilação a um Ocidente tolerante e democrático23.

Cada um desses marcos, brevemente revisitados aqui, revelam alguns importantes aspectos para pensar os encontros e desencontros entre as esquerdas e os feminismos: o esforço para definir o feminismo aceitável, a dificuldade para traduzir a agenda feminista clássica em ações governamentais, o antifeminismo em voga, a reativação da questão da autonomia feminista em contato com as esquerdas governantes, os desafios na desconstrução do sujeito «mulher» para a emancipação feminista, o desconhecimento e a indiferença com relação à produção teórica e política feminista, as armadilhas das cotas predeterminadas, a importância dos processos de subjetivação, etc.

Além disso, esses marcos demonstram que o diálogo será improdutivo se pensarmos nessa instância como um momento de encontro entre duas identidades já dadas. Ao contrário, o melhor do cruzamento entre feminismos e esquerdas é produzido no próprio processo em que se encontram e desencontram. Para isso, os feminismos que desejem se articular deverão lidar com suas produtivas diferenças internas e também com a vocação de poder exigida pelos jogos eleitorais. Por sua vez, às esquerdas que frequentemente se aproximam do feminismo com disposição devoradora, valeria a pena prestar mais atenção no que as teorias feministas têm a dizer sobre a política, a subjetividade e o poder, além dos temas específicos para os quais às vezes são convocadas. Seria interessante também dar uma real oportunidade para refundar nesse processo novas subjetividades que coloquem em crise os vícios patriarcais que ainda as espreitam, apesar das declarações voluntariosas e o caráter multicolor das bandeiras.

  • 1.

    «Hugo Chávez pregunta a Rafael Correa si es feminista» no YouTube, 13/12/2014, https://youtube/4pnvaAgo-re.

  • 2.

    «Ecuador: President Rafael Correa says ‘gender ideology’ threatens traditional families» no YouTube, 28/12/2013,

  • 3.

    Sobre a reunião, v. «Colectivos lgbt mantuvieron reunión con el presidente Rafael Correa» em Silueta x, 25/6/2015, https://siluetax.wordpress.com/2015/06/25/colectivos-lgbt-mantuvieron-reunion-con-el-presidente-rafael-correa/.

  • 4.

    Irina Pertierra: «La ‘Revolución Ciudadana’ en Ecuador y los derechos de las mujeres» em Pikara, 29/4/2015.

  • 5.

    A. Bebel: La mujer en el pasado, en el presente y en el porvenir [1879], Fontamara, Barcelona, 1980; F. Engels: El origen de la familia, la propiedad privada y el Estado [1884], Claridad, Buenos Aires, 1941. [Há diversas edições em português. Entre elas, F. Engels: A origem da família, da propriedade privada e do Estado, Centauro, São Paulo, 2012].

  • 6.

    Este artigo recupera alguns trechos de minha participação no painel «Debates y perspectivas del marxismo entre dos siglos», durante as viii Jornadas de Historia de las Izquierdas (Cedinci/Unsam): «Marxismos latinoamericanos. Tradiciones, debates y nuevas perspectivas desde la historia cultural e intelectual», Buenos Aires, 19 de novembro de 2015.

  • 7.

    Disponível em português em https://repositorio.ufsc.br/xmlui/handle/123456789... [n. do t.].

  • 8.

    Em Nueva Antropología vol. viii No 30, 1986.

  • 9.

    D. Haraway: «Género para un diccionario marxista: la política sexual de una palabra» em Ciencia, cyborgs y mujeres, Cátedra, Madri, 1995. [Disponível em português: «‘Gênero’ para um dicionário marxista: a política sexual de uma palavra» em www.scielo.br/pdf/cpa/n22/n22a09.pdf].

  • 10.

    Entre muitos outros, v. Zillah Eisenstein: «Algunas notas sobre las relaciones del patriarcado capitalista» em Patriarcado capitalista y feminismo socialista, Siglo xxi, México, df, 1980; Heidi Hartmann: «El infeliz matrimonio entre marxismo y feminismo: hacia una unión más progresista» [1979] em Cuadernos del Sur No 6, 3-5/1987; Iris Young: «Marxismo y feminismo: más allá del matrimonio infeliz» [1981] em El Cielo por Asalto No 4, outono/inverno de 1992.

  • 11.

    «El discurso textual de Cristina Fernández de Kirchner» em Parlamentario.com, 2/3/2015.

  • 12.

    Por exemplo, v. o portal de internet Socorristas en Red, http://larevuelta.com.ar/tag/socorristas-en-red/.

  • 13.

    efe: «Evo, un feminista que cuenta chistes machistas» em El Deber, 17/2/2015.

  • 14.

    O diálogo foi transmitido pela Radio Deseo, a fm da organização Mulheres Criando em La Paz. Posteriormente, a revista argentina Mu, da cooperativa de trabalho lavaca, reproduziu-o na íntegra em «María Galindo entrevista a Álvaro García Linera, vicepresidente de Bolivia: ‘Gobernar es un acto de mentir’», 17/7/2014.

  • 15.

    Fórum de Política Feminista: «Sin mujeres no hay democracia. Carta abierta a Alexis Tsipras, nuevo Primer Ministro de Grecia», disponível em www.forumpoliticafeminista.org/?q=sin-mujeres-no-hay-democracia-carta-abierta-alexis-tsipras-nuevo-primer-ministro-de-grecia.

  • 16.

    B. Jaimen: «Carta abierta al Fórum de Política Feminista sobre su carta abierta a Alexis Tsipras» em Info Grecia, s.d., http://info-grecia.com/2015/02/02/carta-abierta-al-forum-de-politica-feminista-sobre-su-carta-abierta-a-alexis-tsipras/.

  • 17.

    Anna Freixas Farré: «Ministras y ministros. Vínculos y cuidados» em El País, 22/5/2004.

  • 18.

    Neste momento, há na Espanha duas Prefeituras chefiadas por mulheres – Ada Colau em Barcelona, e Manuela Carmena em Madri – que merecem uma atenção especial devido aos desafios que enfrentam e pelas inovações que propõem diante da política tradicional.

  • 19.

    Pablo Castaño Tierno: «Podemos y el feminismo» em Pikara, 13/11/2014.

  • 20.

    María Pazos Morán e Bibiana Medialdea: «Reorganizar el sistema de cuidados: condición necesaria para la recuperación y el avance democrático», Documentos do Podemos, s.d., disponível em http://estaticos.elmundo.es/documentos/2015/03/02/podemos.pdf.

  • 21.

    N. Fraser: Fortunas del feminismo, Traficantes de Sueños, Madri, 2015.

  • 22.

    N. Fraser: «How Feminism Became Capitalism’s Handmaiden – And How to Reclaim It» em The Guardian, 14/10/2013.

  • 23.

    J. Butler: «Política sexual, tortura y tiempo secular» em Marcos de guerra: las vidas lloradas, Paidós, Buenos Aires, 2010.

Este artículo es copia fiel del publicado en la revista
ISSN: 0251-3552
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