Tema central
NUSO Nº Julho 2018

A centro-direita e a «mudança cultural» argentina

A centro-direita e a «mudança cultural» argentina

Nota: a versão original deste artigo em espanhol foi publicada em Nueva Sociedad No 270, 7-8/2017, disponível em ‹www.nuso.org›. Tradução de Luiz Barucke.

A vitória da aliança Cambiemos («Mudemos», em português) nas eleições presidenciais argentinas de 2015 representa a única transição por via eleitoral de um governo de centro-esquerda a outro de centro-direita – para usar uma definição geral – ocorrida até o momento na América Latina após a chamada «guinada à esquerda» (com exceção do Chile, que seguiu uma dinâmica bastante particular). Em um contexto de mudança de tendência que ocorre em vários países da região, ou ao menos de perda de apoios claramente majoritários dos governos progressistas, o caso argentino nos permite refletir sobre algumas questões de maior alcance em relação ao ciclo que chega a seu fim – ao menos como o conhecemos na primeira década e meia do século xxi – e os legados deixados por ele. Por um lado, isso nos permite ver em ação um governo pró-mercado surgido de uma eleição dividida e que tem o desafio de reorientar as políticas públicas, lidando ao mesmo tempo com as demandas e resistências de uma sociedade democrática e mobilizada.

Definitivamente, o novo governo deve enfrentar a tensão entre o desejo de levar adiante um projeto socioeconômico determinado e a viabilidade política desse mesmo projeto, algo que os governos do ciclo progressista já haviam experimentado. Por outro lado, a mudança em curso ajuda a estimar quais são os legados daquele ciclo e em que medida há situações e acordos culturais e redistributivos estabelecidos, e outros de mais fácil remoção ou reorientação.

Além de refletirmos sobre essas questões, estamos interessados neste artigo em fazer referência a uma especificidade do caso argentino, que o diferencia da maior parte das direitas regionais e cuja evolução também mostrará em que medida o país pode fazer parte do clube das direitas regionais institucionalizadas e eleitoralmente competitivas. Nós nos referimos à possibilidade de que a Proposta Republicana (pro), força hegemônica da aliança Mudemos1, se constitua como um partido de alcance nacional e estabilize na Argentina um espaço competitivo representativo dessa orientação. Após um ano e meio de governo, estamos em condições de analisar, ao menos parcialmente, essas três questões, que serão objeto dos pontos que organizam este texto.

A trilha do gradualismo

Como mencionamos em outro texto2, o pro nasceu com um projeto sociocultural e econômico de modernização da gestão que criticava a excessiva regulação estatal da economia sem, contudo, desconhecer o papel central do Estado como redistribuidor de recursos, especialmente no que se refere à proteção de alguns direitos sociais, o que, no discurso do pro, se associa ao «atendimento» dos setores «vulneráveis». Particularmente nos últimos anos do ciclo kirchnerista, o pro se definiu como força claramente opositora, incorporou como elemento central de seu programa a defesa de uma concepção política republicano-liberal da democracia e, juntamente com ela, as denúncias sobre corrupção governamental e a promoção de uma modernização da gestão.

Ao mesmo tempo, também desde sua fundação, o pro se concebeu como um partido pós-ideológico, com uma estratégia flexível e pragmática que busca construir consensos de governabilidade para levar adiante seu projeto político. Possui um diagnóstico claro sobre a resistência que a sociedade e a economia argentinas têm em apoiar majoritariamente políticas de abertura econômica e flexibilização da regulação dos mercados, bem como a redução do investimento público em bens de benefício potencialmente universal (como aposentadorias, saúde, etc.). Assim, ainda que o tipo de economia desejada por seus líderes seja semelhante à imaginada pelos economistas chamados ortodoxos, seu pragmatismo e a pretensão de tornar o pro um verdadeiro partido de poder – isto é, capaz de governar a sociedade argentina – os levaram até o momento a priorizar o gradualismo com relação à abertura da economia argentina e ao papel do Estado sobre as tradicionais terapias de choque. Por essa razão, o partido é criticado pelos economistas ortodoxos, que acusam o governo de fazer «kirchnerismo com bons modos»3.

Essa orientação pragmática é compartilhada pelos setores que controlam o partido e definem a orientação geral quanto a políticas públicas. A incorporação ao governo de ceos provenientes de grandes empresas, longe de ser necessariamente parte de um viés favorável ao choque, condiz com essa linha: trata-se de especialistas em processos cujo prestígio profissional está ligado a «fazer com que as coisas aconteçam», nas palavras de um alto funcionário entrevistado, sem que o conteúdo dessas coisas seja um assunto sob sua órbita. Ao contrário, as definições políticas continuam sendo dadas pela cúpula, que não inclui a maior parte desses mesmos ceos e tampouco os economistas ortodoxos. A divisão do trabalho na Chefia do Gabinete de Ministros, área essencial para a condução das políticas públicas e a elaboração da comunicação política no novo governo, apresenta essa combinação entre condução político-programática e altas doses de ideologia no tocante à gestão. De fato, juntamente com um chefe de gabinete político como Marcos Peña, de longa trajetória no pro e de proximidade e confiança com Macri, há dois secretários de Estado que, provenientes de grandes empresas, atuam na «coordenação interministerial»4 e na «coordenação de políticas públicas». Nas palavras de um ex-ceo hoje alto funcionário, «Marcos não é uma pessoa da gestão, e sim mais ligado à estratégia política e à comunicação; portanto, a ideia [de incorporar os dois ceo-secretários de Estado] era fortalecer a equipe com esse perfil de gestão». Por sua vez, os economistas de maior prestígio que haviam entrado no governo em seu início o abandonaram no final de 2016, seja por discordarem do gradualismo ou por pretenderem certa autonomia em suas decisões. Dessa forma, a definição sobre a orientação política se concentra em poucas pessoas.

Além disso, ao não contar com maioria em nenhuma das duas casas do Congresso, nem com a maior parte das 24 províncias do país, o governo se vê obrigado a estabelecer negociações e acordos com outras forças políticas, tanto na arena parlamentar como na gestão do governo federal. A escassez de recursos político-institucionais favorece também uma forma de gradualismo: é necessário acordar políticas com um número significativo de legisladores, e o Mudemos encontrou um grupo particularmente disposto à colaboração na parcela do peronismo mais distante do kirchnerismo.

Rumo à nova ordem na economia: um governo de normalização

Em matéria econômica, diante dos posicionamentos mais extremos, o governo do Mudemos, comandado pelo pro, apresenta-se como uma força racional de normalização social e econômica. Acredita que deve aproximar a Argentina lentamente «ao modo como as coisas são feitas no mundo» depois da «anomalia populista» do ciclo político anterior. Nessa linha, duas das primeiras medidas tomadas pelo governo foram econômicas e buscaram responder a demandas, por um lado, dos setores agroexportadores com a redução das tarifas sobre exportação de grãos e, por outro, dos setores importadores e exportadores com o fim da regulação do mercado de acesso a divisas. Essas medidas reduziram a receita fiscal e criaram as condições para o crescimento do mercado financeiro. No diagnóstico inicial, a normalização parecia ser suficiente para que ocorressem os investimentos privados necessários para substituir o papel do consumo e do investimento público como motores do crescimento, bases do último governo de Cristina Fernández. Esse diagnóstico foi ajustado parcialmente ao longo de sua aplicação diante da evidência de que os investimentos privados não chegavam, algo condizente com os problemas estruturais do país sofridos pelo governo anterior, mas não inventado por ele.

Assim, a normalização se tornou mais um processo que um ato. Há várias metáforas da «ponte» que a sociedade deveria atravessar para chegar a esse novo país, especialmente seus grupos organizados de trabalhadores formais e informais, mas também de empresários. Nesse sentido, o governo do Mudemos finca suas raízes na mais conhecida tradição política da Argentina: assim como a transição democrática nos levava de um regime político a outro e, para isso, era necessária uma «mudança cultural» no tocante à cultura política, essa nova transição de um tipo de sociedade a outra deve possibilitar a «mudança cultural» que nos leve do desenvolvimento interno à abertura ao exterior, de uma sociedade de consumo a outra de investimento. Não são poucas as coincidências com outros projetos econômicos de refundação empreendidos na Argentina durante as décadas de 1960 e 1970; a diferença é que, agora, isso é realizado pela via democrática. Com maior intensidade desde meados de 2016, o governo se considera liderando uma transição lenta rumo à economia globalizada que poderia culminar, no horizonte desejado, com a entrada da Argentina na Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (ocde), significando que o país estaria organizado pelos condicionamentos necessários para já não mais voltar a sair de seu curso normal5. Dessa forma, a normalização deve seguir até que a mudança seja irreversível. Nesse ponto, também chama a atenção o quanto os governos da Argentina se assemelham com relação à sua retórica de refundação: todos querem, de alguma maneira, se tornar irreversíveis.

Ao mesmo tempo, o novo governo foi menos gradualista em algumas áreas, como a monetária, na qual, em consonância com a teoria econômica dominante e as demandas dos atores econômicos globais, a presidência confiou o Banco Central a seus setores mais ortodoxos. Estes tornaram o combate à inflação quase seu objetivo único, que buscam alcançar evitando a emissão de moeda e aumentando as taxas de juros. Por um lado, essa tática dificulta o investimento privado produtivo, ou ao menos em setores não financeiros ou de médio-longo prazo; por outro, obriga o governo a contrair dívida como forma de buscar recursos para financiar o gasto público. De fato, o ritmo de endividamento aumentou durante 2016 e acelerou uma tendência que já havia se iniciado em 2014, mas que agora representa o «atalho» que permite ao governo do Mudemos evitar o aumento do conflito social, ao passo que cria novos condicionamentos para a política econômica futura. Embora este texto não tenha como objetivo realizar uma análise de política econômica, essa trajetória permite entender como se articula a orientação econômica geral com as condições de governo e as relações de poder no seio da força política que o lidera.

O que aconteceu até agora com o legado kirchnerista?

Para além da economia… o que mudou com o Mudemos?

Se as políticas de ampliação de direitos estabelecidas nos anos de governos kirchneristas e a imagem de um «povo empoderado» com que se despediu a ex-presidenta Cristina Kirchner em 9 de dezembro de 2015 na Praça de Maio pareciam prever uma certa permanência da herança nacional-popular, os primeiros meses de governo do Mudemos deram a impressão de «arrasar com tudo». De fato, apesar da apertada vitória eleitoral no segundo turno6, o novo governo se propôs a realizar essa normalização da Argentina, cujas principais características eram definidas, em grande parte, de forma contraposta ao tipo de sociedade que o kirchnerismo tentou instaurar a partir de 2003 e, com contornos mais bem definidos, de 2008 em diante.

Definir essa ruptura em termos de «mudança cultural» reflete a amplitude da transformação buscada e, ao mesmo tempo, torna seu alcance impreciso. O governo normalizador parecia propor, em certa medida, mudar a cultura dos argentinos, isto é, o modo como eles fazem as coisas, especialmente em sua atividade econômica e vínculo com o Estado7. Essa mudança poderia ser vista como a transformação de um ethos estadocêntrico e militante em outro de caráter empreendedor e associado ao voluntariado, duas marcas do pro. O gradualismo na normalização também supõe evitar a fixação pública de metas excessivamente ambiciosas. A «mudança cultural» permanece imprecisa, mas também possibilita incluir no mesmo enquadramento reformas econômicas, fiscais, trabalhistas, políticas e culturais. Definitivamente, apesar de ter sido obrigado a aceitar durante a disputa para as eleições presidenciais boa parte dos bens coletivos de legitimidade compartilhada produzidos pelo kirchnerismo (o Subsídio Universal por Filho, a propriedade estatal de empresas, entre outros pontos), o tom de seu governo é certamente de refundação. Mas que mudança, em termos culturais, foi produzida até este momento?

Em primeiro lugar, o Mudemos não parece ter tido sucesso em influenciar de forma decisiva as organizações do universo popular. Ele foi obrigado a aceitar o vigor das organizações dos pobres da economia informal, que se consolidaram no ciclo político anterior, além do legado das políticas para esses setores que são administradas por suas próprias mediações. A continuidade do fomento estatal e do financiamento público à chamada «economia popular» é uma amostra disso, além da dificuldade de impor uma política mais rígida em matéria de ordem nas ruas que impeça ou ao menos reduza as interdições de vias públicas por manifestações para reivindicar bens de origem pública para essas frações das classes populares (os chamados «planos sociais», mas também alimentos para os refeitórios, entre outros).

Em segundo lugar, também não tem sido nada simples até o momento moderar as exigências de organizações dos setores formais, ou seja, dos sindicatos. De posturas tradicionalmente mais negociadoras em termos de metodologias de ação coletiva, mas também com reivindicações mais moderadas e mais flexibilidade ideológica, os grandes sindicatos puderam, contudo, minimizar o impacto do ajuste sobre os trabalhadores formais. Eles seguiram a lógica do «neocorporativismo segmentado» que já haviam implementado nos anos do kirchnerismo8 e que consiste em privilegiar as exigências dos setores que representam diretamente e se preocupar menos com os trabalhadores não registrados e informais. No entanto, reconheceram os representantes dos pobres informais como interlocutores em matéria de representação de uma parte das classes populares e, de forma condizente, os incorporaram a diversas mesas de negociação e avaliação da situação do país e de medidas de ação9. A inédita unidade de trabalhadores formais e informais constitui uma inovação do período, mas pode ser vista também como parte do legado do ciclo nacionalpopular: ainda que as alternativas políticas não estejam claras, nenhum deles parece estar disposto a abrir mão de sua participação no bem-estar em prol da «mudança cultural» proposta.

Também parecem duradouros os consensos em torno das políticas de direitos humanos, especialmente com relação aos processos dos responsáveis pelo terrorismo de Estado durante a última ditadura militar. Não prosperaram as tentativas de funcionários de alto escalão e intelectuais próximos ao governo de discutir números simbólicos dos movimentos de direitos humanos, como o dos 30.000 desaparecidos. Uma sentença da Suprema Corte que respaldava um benefício no cálculo da pena dos condenados por crimes contra a humanidade, com decisão dividida e apoio dos dois juízes designados pelo novo governo, gerou protestos em massa e obrigou o Congresso a votar uma lei que proíbe tal aplicação. A lei que não permite aplicar o chamado «dois por um» a crimes contra a humanidade obteve o voto de quase todos os blocos parlamentares, inclusive do Mudemos, do qual partiu o projeto. Pouco depois, na província de Buenos Aires, a kirchnerista Frente para a Vitória (fpv) conseguiu que o bloco provincial do Mudemos aprovasse uma lei que obriga a falar de «ditadura civil-militar», em consonância com o que fixava a memória oficial dos últimos anos do governo de Cristina Fernández de Kirchner. A política de direitos humanos não pôde ser, até este momento, parte da mudança cultural e segue a linha dos últimos anos, que se conecta – não sem diferenças – à do primeiros anos da democracia. Contra os pontos de vista que consideravam essa política um bem capturado de forma tendenciosa, há na sociedade consensos transversais, para além dos posicionamentos com relação ao ciclo kirchnerista10.

Por outro lado, duraram menos as políticas especificamente culturais do ciclo político anterior e, em especial, aquelas vinculadas aos meios de comunicação. De fato, assim que o Mudemos assumiu o governo, foram dissolvidos por decreto os dois entes reguladores criados pela Lei de Serviços de Comunicação Audiovisual (conhecida como Lei de Meios) e pela Lei de Telecomunicações aprovadas durante o kirchnerismo: respectivamente, a Autoridade Federal de Serviços de Comunicação Audiovisual (afsca) e a Autoridade Federal de Tecnologias da Informação e da Comunicação (aftic). A afsca se encarregava de conceder as licenças de rádio e televisão, além de regular o mercado dos meios audiovisuais. Era o órgão de aplicação da Lei de Meios, votada pelo Congresso em 2010, e produto de um longo debate do qual participaram acadêmicos e representantes da sociedade civil. Um de seus principais objetivos era desconcentrar a propriedade da mídia e distribuir o espectro audiovisual em partes iguais entre o setor privado, o estatal e o da sociedade civil. Sua implementação parcial, no contexto da disputa entre o governo kirchnerista e o grupo de comunicação Clarín, teve pouco a ver com o espírito que lhe havia dado impulso e origem. Mas a supressão por decreto presidencial da autoridade de aplicação, uma das peças fundamentais da lei, esteve longe de solucionar as falhas da política anterior. Em seu lugar, foi criada uma nova entidade reguladora, o Ente Nacional de Comunicação, que deixou sem representação as minorias parlamentares e proporcionou maior controle do Poder Executivo sobre a área. A bandeira da democratização foi rapidamente descartada e, em seu lugar, a preocupação central passou a ser a modernização tecnológica e o aumento da concorrência de mercado como soluções para a concentração midiática11. É definitivamente no plano da comunicação que essa «mudança cultural» seguiu o caminho da normalização, implicando a abertura regulada à concorrência estrangeira e a revogação de boa parte dos regulamentos contrários à concentração monopolista.

Terá a Argentina seu partido de direita com implantação nacional?

Em grande parte, a fragilidade política do governo do Mudemos reside na implantação desigual da principal força da coalizão em todo o país. Construído a partir da cidade de Buenos Aires, o pro estabeleceu desde o início uma estratégia de várias etapas que consistia em partir de um governo subnacional para construir daí sua presença nos demais distritos. A sucessão de marcas políticas adotadas pelo partido parece revelar essa estratégia. Ao passar do Compromisso para a Mudança à Proposta Republicana, o pro pôde se nacionalizar utilizando – e depois absorvendo – a implantação territorial que havia sido construída pelo partido Recriar, em boa medida baseando-se nos vínculos com antigos dirigentes de partidos liberais e conservadores provinciais, bem como a ala direita do radicalismo. Com o Mudemos, marca na qual o pro parece agora querer se diluir – pelo menos de forma comunicacional –, o partido conquistou tanto a cobertura nacional do radicalismo como uma forma de se aproximar das classes médias urbanas não diretamente identificadas com a centro-direita.

Como havia ocorrido na cidade de Buenos Aires, a identidade por oposição ao kirchnerismo funcionou como força aglutinadora que, até o momento, parece ter muito a oferecer em termos de dividendos eleitorais. Mas com a adoção da marca Mudemos, os líderes do pro, que são o núcleo que toma as decisões a partir do governo, parecem ter aceitado também que não podem, ao mesmo tempo, governar o país – isto é, acordar com os atores realmente existentes – e dar continuidade à construção de um partido nacional. Trata-se, neste momento, de dar consistência a partir de cima à rejeição a um ciclo político concluído em termos eleitorais. Mas como acabar com seu legado sem recursos políticos para tanto?

Por um lado, as negociações com governadores de origem peronista embora aliados circunstanciais, dos quais o governo obteve votos no Congresso, implicaram a cessão do controle de alguns cargos-chave em nível provincial, vinculados à gestão de órgãos e programas nacionais de política pública, o que, pelo menos no curto prazo, mantém recursos políticos nas mãos das forças governantes em cada distrito, seja qual for sua coloração partidária12. Por outro lado, a tensão entre um partido dominante no interior da coalizão Mudemos com escassa presença territorial que vá além do centro do país (pro) e o integrante mais tradicional dessa coalizão (a União Cívica Radical, ucr), minoritário no processo decisório no centro, mas de grande presença territorial, atualiza o paradoxo do governo do Mudemos: para se fortalecer como vetor de «mudança cultural», ele necessita de seus aliados, mas isso lhe impede muitas vezes de crescer como força política autônoma. Parece distante a perspectiva de que, com os recursos dados pelo governo, o pro possa se consolidar como partido de escala nacional como o fez a partir de 2007 na cidade de Buenos Aires.

É certo que, como sustenta Marcelo Leiras13, na Argentina nenhum partido é nacional, estritamente falando. Todos devem lidar com a complexidade federal e são construídos mais como alianças de elites subnacionais. Com o impulso de suas vitórias eleitorais e figuras de alta popularidade, o pro parecia determinado a absorver boa parte do radicalismo, mas a resiliência da centenária ucr, em boa parte graças a seus poderes de governo em escala distrital, é um dado que não deve ser ignorado. Assim, a disputa por se tornar o partido das classes médias urbanas e médias-altas rurais do século xxi segue aberta. O gradualismo e o peso dos legados, aqui também, marcam o ritmo das transformações.

  • 1.

    Diferentemente do ocorrido em 1999 no governo da Aliança, que incluía a União Cívica Radical (ucr) e a Frente País Solidário (Frepaso), é possível afirmar que prevalece no governo do Mudemos o controle partidário acima da lógica de coalizão, especialmente na composição do gabinete, já que a maior parte dos ministros e secretários de Estado é proveniente do pro e de suas bases. Há somente três ministros da ucr em um gabinete que possui 23 pastas, e esses radicais não foram eleitos por seu partido segundo suas regras internas, mas sim graças às preferências do presidente. [Neste artigo, os termos «radicais» e «radicalismo» se referem à ucr (n. do t.)].

  • 2.

    G. Vommaro, Sergio Morresi e Alejandro Bellotti: Mundo pro. Anatomía de un partido fabricado para ganar, Planeta, Buenos Aires, 2015.

  • 3.

    Essa foi a expressão utilizada pelo economista ortodoxo – de constante presença pública – José Luis Espert em diferentes entrevistas dadas a meios de comunicação ao longo de 2016. Um dos áudios está disponível em https://radiomitre.cienradios.com/jose-luis-espert-cambiemoses-como-el-kirchnerismo-con-buenos-modales/. Já no princípio da fundação do partido, uma das linhas mais duras do pro em termos políticos, proveniente em especial da União do Centro Democrático (Ucede) – principal partido de centro-direita argentino da década de 1980 –, mas também do peronismo menemista, havia tentado sem sucesso uma definição mais taxativa em matéria programática. G. Vommaro e S. Morresi (eds.): «Hagamos equipo». pro y la construcción de la nueva derecha en Argentina, Ediciones ungs, Buenos Aires, 2015.

  • 4.

    Como é declarado no site da Secretaria de Coordenação Interministerial, sua função é facilitar «as relações entre os ministros e o chefe de Gabinete para atingir os objetivos de erradicação da pobreza, unidade dos argentinos e luta contra o narcotráfico», ou seja, as três grandes linhas do discurso de inauguração do mandato de Macri em dezembro de 2015.

  • 5.

    Segundo o site da ocde no México, essa organização «reúne um grupo de países com ideias similares. Essencialmente, ser membro da organização depende do compromisso de um país com a economia de mercado e a democracia pluralista». V. www.oecd.org/centrodemexico/laocde/masinformacionsobrelaocde.htm.

  • 6.

    No primeiro turno, realizado em 25 de outubro de 2015, Daniel Scioli (Frente para a Vitória) obteve 37,08% dos votos, e Mauricio Macri (Mudemos), 34,15%. No segundo turno, ocorrido em 22 de novembro de 2015, Macri venceu com 51,34%, e Scioli ficou em segundo lugar com 48,66% dos votos.

  • 7.

    Isso parece sugerir Martín Rodríguez em «Parte del aire» em Le Monde diplomatique edição Cone Sul No 215, 5/2017.

  • 8.

    V. sobre este ponto Sebastián Etchemendy e Ruth Berins Collier: «Golpeados pero de pie. Resurgimiento sindical y neocorporativismo segmentado en Argentina (2003–2007)» em Postdata No 13, 6/2008.

  • 9.

    V., por exemplo, «La cgt y los movimientos sociales acordaron unir sus reclamos contra el Gobierno» em La Nación, 7/9/2016.

  • 10.

    Remetemo-nos neste ponto ao artigo escrito por Pablo Semán no calor das mobilizações contra a sentença da Suprema Corte: «Derechos humanos, contingencia y sobregiro» em Panamá Revista, 11/5/2017.

  • 11.

    V. Martín Becerra: «Restauración: cambios en las políticas de comunicación» em Épocas No 2, 2016.

  • 12.

    Diferentes ministérios (Trabalho, Desenvolvimento Social) e órgãos oficiais (Administração Nacional de Seguridade Social, Anses; Programa de Atendimento Médico Integral, pami) contam com escritórios em todas as províncias. Tradicionalmente, a força política governante designava para esses locais referências próprias em cada distrito. Nesse caso, o governo do Mudemos não só precisou distribuir cargos entre as forças políticas que fazem parte da coalizão, mas também aceitou manter certo status quo em províncias governadas por outros partidos.

  • 13.

    M. Leiras: Todos los caballos del rey. La integración de los partidos políticos y el gobierno democrático de la Argentina, Prometeo, Buenos Aires, 2007.

Este artículo es copia fiel del publicado en la revista Nueva Sociedad , Julho 2018, ISSN: 0251-3552


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