A democratização na Venezuela passa também pela reconstrução do Estado
Nueva Sociedad Outubro 2022
Para transformar o passado e o presente autoritários e suas consequências, assim como atender às necessidades urgentes da sociedade, parece imprescindível (re)construir a capacidade estatal. Isto, por sua vez, exige redimensionar os horizontes temporais da mudança de regime político e gerar consensos em torno da viabilização de um Estado funcional para facilitar o bem comum. O foco na (re)construção do Estado por meio da negociação inclusiva, e não «unicamente» apoiada na repetida e fracassada aposta no aniquilamento do adversário, permitirá avaliar as oportunidades de mudança que ainda existem.
A maioria dos estudos de ciência política sobre a Venezuela se concentra na erosão da democracia e na sucessiva consolidação do autoritarismo durante a era chavista. Sem dúvida, esta abordagem é central e contribui para identificar a multiplicidade de desafios e os diferentes níveis de complexidade que afetam as elites políticas e ativistas, assim como os cidadãos em geral, subjacentes à violação sistemática dos direitos humanos, à perseguição de opositores e dissidentes, à criminalização de ativistas, à ausência do Estado de direito, ao colapso da economia, à má gestão e à corrupção na indústria do petróleo – o motor central da economia venezuelana. No entanto, a destruição do Estado e a forma como esse elemento tem enfraquecido a relação de cada cidadão e cidadã com o poder e permeado o tecido social costumam ser abordadas com menor profundidade.
Como foi observado nas últimas duas décadas, o chavismo não cumpriu suas promessas de construir uma democracia participativa, erradicar a pobreza, a desigualdade e a exclusão social e reduzir a dependência das receitas do petróleo diversificando a economia. Ao contrário, o regime autoritário (competitivo) que foi sendo erguido com Hugo Chávez e se consolidou sob o regime de Nicolás Maduro afastou-se dos preceitos dessa oferta política e, mais propriamente, submeteu a sociedade venezuelana a uma crise multidimensional, associada a um significativo declínio institucional que violou o epicentro democrático em que o Estado venezuelano funcionava, ainda que de forma imperfeita. No centro de qualquer equilíbrio está a destruição da capacidade estatal, entendida como aquela que as instituições do Estado têm para implementar efetivamente os objetivos oficiais1. Em vez de fortalecer o Estado para torná-lo mais atento (responsive) às necessidades da população, o movimento de Chávez, herdado por Maduro, destruiu sua funcionalidade. De diferentes formas, ambos os líderes desfiguraram o Estado, tornando-o incapaz, frágil e amplamente ilegítimo frente à sociedade. Por um lado, Chávez dedicou-se a personificar as funções do Estado e, assim, diminuiu as possibilidades de pactuar um plano estratégico com diversos atores – políticos, sociais, econômicos – que ajudasse a novamente potencializar a capacidade construída durante a era democrática. Sua visão de um Estado todo-poderoso exacerbou o modelo rentista e criou vínculos de dependência insustentáveis entre Estado e sociedade e, em especial, com suas bases de apoio.
Maduro, por sua vez, diante da crise econômica gerada pelos governos chavistas e da ausência de renda para distribuir entre elites e bases, tomou uma série de medidas econômicas drásticas que se afastaram dos ideais bolivarianos originais, incluindo liberalização e desregulação de certos mercados, dolarização de facto (juntamente com o uso de outras moedas estrangeiras), liberação de controle cambial e admissão de várias formas de pagamento (por exemplo, em dinheiro, com bolívares ou moeda estrangeira, e transferências eletrônicas). Essa adaptação, também fruto do isolamento diplomático e das sanções econômicas contra a Venezuela, levou à formação de um Estado predatório que beneficia uma minoria enquanto desfavorece a maioria2. O aparente lema «deixar fazer, deixar acontecer» produziu um Estado que não apenas negligencia sua população, mas também a intimida e a extorque, enriquecendo alguns. Diante da incapacidade do Estado de prestar serviços públicos e segurança cidadã, e de manter a soberania territorial, a sociedade venezuelana se viu obrigada a responder a partir de sua própria microrrealidade e a privatizar praticamente todas as esferas de sua vida.
Este artigo propõe uma mudança no foco de análise, diante da consolidação do autoritarismo, da fragmentação da oposição e da complexa emergência humanitária. Para transformar o passado e o presente autoritários e suas consequências, bem como para atender às necessidades urgentes da sociedade, parece imprescindível (re)construir a capacidade estatal. Nesse sentido, exploro dois fatores: (a) reconsiderar a dimensão temporal de um processo de democratização em dois planos, um de curto prazo e outro de médio e longo prazos, e (b) gerar consenso em torno da construção de um Estado funcional que facilite o bem comum. O foco no Estado, e não apenas na repetida e fracassada aposta no aniquilamento do adversário, permitirá perceber e avaliar as oportunidades de mudança que ainda existem.
O Estado chavista
O que é o Estado? Quais são suas tarefas? Essas questões têm sido amplamente abordadas por diferentes disciplinas. A definição weberiana clássica entende o Estado como um «instituto político de atividade contínua, quando e na medida em que seu quadro administrativo mantiver com sucesso a reivindicação do monopólio legítimo da coação física para a manutenção da ordem vigente»3. O controle territorial e administrativo, portanto, é uma característica essencial de um Estado. Dependendo do tipo de regime político, os objetivos variarão. Outra gama de trabalhos nesse sentido diferencia entre três tipos de capacidade estatal: capacidade extrativa, capacidade coercitiva (controle do território e segurança cidadã) e capacidade administrativa (elaboração e prestação de serviços públicos; regulação das esferas sociais e econômicas)4.
A concepção chavista da política e o papel do Estado sofreram mutação ao longo do tempo. Em grande medida, essas transformações estiveram atreladas às visões e noções pessoais de Hugo Chávez. Uma primeira mudança em sua forma de se relacionar com o Estado e o poder ocorreu em 1996, quando foi convencido a abandonar o caminho insurrecional e seguir o caminho eleitoral, com a construção de uma plataforma política5. Em sua primeira campanha, prometeu uma democracia participativa e com protagonismo, assim como uma nova política com maior ênfase no «Soberano» e menor foco em pactos entre elites. A Constituição de 1999, elaborada por uma Assembleia Nacional Constituinte majoritariamente chavista (90%), define que o Estado venezuelano é um «Estado democrático e social de Direito e de Justiça» que «tem como objetivos essenciais a defesa e o desenvolvimento da pessoa e o respeito à sua dignidade, o exercício democrático da vontade popular, a construção de uma sociedade justa e amante da paz, a promoção da prosperidade e do bem-estar do povo». Tal como na era democrática, também reconhece que «a educação e o trabalho são os processos fundamentais para atingir esses fins»6. Essa concepção de um Estado que garante amplos direitos, incluindo os sociais, econômicos, culturais e ambientais, e ator fundamental no desenho da economia e do desenvolvimento, será mantida em todos os planos de governo chavistas (2000-2025). O que se revelou uma mudança notável em 2006 foi a autodefinição de Chávez como «socialista», o que gerou tensões nos propósitos da Constituição e na implementação dos diferentes planos de governo. Segundo essa nova noção, não bastava construir uma democracia participativa e protagonista; era necessário alcançar uma «Democracia Revolucionária Protagonista» e uma «nova ética socialista». Por sua vez, Chávez procurou mudar a relação entre os cidadãos e o Estado através da criação de um «poder comunal» que seria exercido a partir de assembleias cidadãs nas comunidades; no entanto, ele não conseguiu realizar sua ambição como a imaginava7.
Na prática, o que veremos ao longo do chavismo é uma simbiose entre o Estado e o partido no poder e seus objetivos políticos hegemônicos. Desde então, o poder tem sido exercido de forma personalista e verticalizada, e isso levou o país ao autoritarismo competitivo sob o regime de Chávez, o que posteriormente se aprofundou sob o comando de Maduro8. No contexto do auge econômico favorecido pelo boom do petróleo, o chavismo aumentou os gastos públicos e investiu em programas sociais denominados «missões» (2003-2014) para atender aos setores populares do país nas áreas de saúde, educação e formação, assim como alimentação e moradia9. Nos últimos tempos, e como resposta à crise multidimensional que começou a se manifestar em 2013-2014, o governo de Maduro implementou duas iniciativas presidenciais para a distribuição das escassas receitas fiscais do petróleo: o Carnê da Pátria e os Comitês Locais de Abastecimento e Produção (clap). Ambos os mecanismos serviram como instrumentos de clientelismo por meio dos quais os recursos públicos são distribuídos em troca de lealdade política10. Cabe ressaltar que, desde o início, ao invés de investir nas instituições do Estado, o chavismo utilizou mecanismos paralelos para fazer o delivery de programas sociais, eliminando controles horizontais, ou seja, a intermediação da administração pública, que supõe a concepção, implementação, avaliação e monitoramento de políticas. Em vez disso, priorizou-se a relação direta entre líder e seguidores.
Embora o governo tenha celebrado o papel das missões na redução temporária da pobreza e da exclusão em tempos de bonança, deve-se observar que os programas sociais têm sido utilizados como redes de clientelismo para mobilizar e controlar a população11. O contraditório é que, apesar de ter fatores-chave a seu favor, como amplo apoio popular, renda sem precedentes, uma Constituição garantista e um clima regional propício (a «maré rosa»), o chavismo, sendo um movimento de esquerda, não reivindicou de fato o papel central do Estado nem construiu capacidades estatais. Pelo contrário, o desinvestimento e/ou a má gestão da administração pública, dos serviços básicos e do controle territorial têm enfraquecido o Estado venezuelano12.
Segundo os dados mais recentes do State Fragility Index – que mede diferentes dimensões de (in)capacidade estatal por meio de 12 indicadores –, a Venezuela ficou em 25o lugar entre 195 países em 2021. Em 2006 o país ainda ocupava o posto 63 e, em 2013, o 89. Somente nos últimos sete anos a Venezuela entrou para a lista de países com fragilidade estatal e é um dos cinco países, juntamente com Líbia, Síria, Mali e Iêmen, que apresentaram as maiores taxas de declínio da última década.
Esta situação coincide com outros indicadores socioeconômicos e pesquisas que confirmam a gravidade das consequências da fragilidade do Estado venezuelano. Em termos de controle territorial e violência, por exemplo, relatórios internacionais têm mostrado que, como consequência de fragilidades institucionais, grupos paramilitares (os chamados «coletivos») surgiram e se fortaleceram. Presume-se que alguns desses grupos tiveram e continuam tendo a anuência do governo para operar em troca de apoio político13. Da mesma forma, há indícios da presença no território venezuelano de grupos irregulares que têm suprido funções do Estado. Por sua vez, foi identificada a interação e a simbiose entre grupos criminosos e funcionários públicos corruptos que cooperam entre si para dividir rendas ilícitas14.
A fragilidade do Estado venezuelano encarna uma situação complexa em termos de segurança cidadã, não apenas por sua incapacidade de oferecê-la, mas também pelo fato de que a violência é gerada justamente por corpos estatais15. Segundo dados da HumVenezuela de 2021, 5,7 milhões de pessoas foram vítimas de eventos violentos e 11.891 morreram por causas violentas. Em 2020, estima-se que pelo menos 3.034 pessoas foram mortas pelas forças de segurança como resultado da ausência do Estado de direito, enfraquecimento institucional e impunidade sistemática16. Para enfrentar a criminalidade, o governo venezuelano lançou diferentes operações militares e policiais, incluindo, por exemplo, as Operações de Libertação do Povo (olp), que foram questionadas por serem operações de extermínio que criminalizam a pobreza17. Posteriormente, foram criadas as Forças de Ação Especiais (faes) que, a exemplo das mencionadas operações conjuntas policiais-militares, tornaram-se excessivamente violentas e foram abertamente criticadas pelo suposto uso excessivo da força e abuso de autoridade. Relatórios sobre essas forças especiais levaram o Escritório do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (acnudh) a exigir sua dissolução imediata, o que até o momento não ocorreu18. Dado o contexto autoritário e o padrão de violações sistemáticas de direitos humanos, a Venezuela está sendo monitorada pelo acnudh e pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (cidh-oea). Em setembro de 2021, uma Missão Internacional Independente de Apuração de Fatos concluiu que há motivos razoáveis para acreditar que crimes contra a humanidade foram cometidos na Venezuela.
Outra série de indicadores descreve a incapacidade do Estado em matéria de direitos sociais, econômicos, culturais e ambientais consagrados na Constituição venezuelana e na prestação de serviços públicos constantes e de qualidade. De fato, a pobreza e a desigualdade cresceram rapidamente. Em 2014 a pobreza de renda foi estimada em 52,2%, e em 2021 atingiu 94,5%. As cifras da extrema pobreza de renda nos mostram que em 2014 ela era de 13,1% e, sete anos depois, em 2021, chegou a 76,6%. De acordo com o cálculo do índice de pobreza multidimensional para 2021, esta atingiu 65,2% das pessoas, o que representa um aumento dramático se considerarmos que em 2014 o percentual era de 39,3%19. Aqui vale destacar o impacto que a corrupção maciça teve na impossibilidade de garantir os direitos da sociedade: o índice de percepção de corrupção da Transparência Internacional coloca a Venezuela na posição 177 entre 180 países.Além disso, a prestação e a qualidade dos serviços públicos são precárias, como indicam as cifras sobre as necessidades humanitárias. Em 2021, 74,2% da população – 21,3 milhões de pessoas – relatou interrupções de energia elétrica; 67,3% – 19,3 milhões – teve graves ausências de transporte público em sua comunidade; e 58,7% – 16,8 milhões – não recebeu gás doméstico. O acesso à água potável também é limitado: a capacidade operacional de abastecimento de água em todo o país caiu 90%. Em 2021, pelo menos 62,2% das pessoas conectadas ao sistema de aquedutos sofreram repetidas interrupções no abastecimento de água, enquanto 35,1% não tinham acesso estável à água potável; 23% das casas não contavam com conexão ao sistema de aquedutos. Da mesma forma, a falta de saneamento e a consequente deterioração da capacidade de gestão de resíduos sólidos estão afetando a saúde da população e causando danos ambientais irreparáveis aos corpos d’água. Por outro lado, 76% da população tinha serviços deficientes de saneamento e esgoto; e 4,6 milhões viviam em domicílios sem conexão à rede de esgoto20.
A crise institucional, econômica e social obrigou milhões de pessoas a emigrar. Segundo a Agência da onu para Refugiados (acnur), mais de seis milhões de pessoas migraram e estão fora do país. Desse grupo, mais de 950.000 solicitaram asilo em diferentes países e mais de 186.000 receberam o status de refugiado21. A fragilidade do Estado e a complexa emergência humanitária geraram condições de extrema vulnerabilidade, principalmente ao longo das fronteiras, onde a escravidão moderna há anos se tornou uma prática generalizada22.
Para aliviar a crise econômica, refletida em uma contração do pib de quase 70% entre 2013 e 2019 e na escassez de produtos gerados pelo governo23, e sobreviver no poder apesar das múltiplas pressões internas e internacionais, Maduro implementou uma série de medidas desorganizadas em matéria econômica que ampliaram ainda mais a distância entre aqueles que têm acesso a divisas e aqueles que devem viver em bolívares. Há vários anos, o governo tem criado espaços de experimentação na economia para responder à crise econômica, incluindo a zona especial de desenvolvimento do Arco Mineiro do Orinoco (2016), a revogação da Lei de Ilícitos Cambiais para permitir o uso e o câmbio do dólar americano (2019), a Lei Antibloqueio (2020) e a promoção das Zonas Econômicas Especiais24. A liberalização em curso está favorecendo as elites vinculadas ao Estado e gerando profundas desigualdades. Como escreveu Antulio Rosales, «o governo de Maduro estaria propondo, de maneira acidentada, desajeitada e autoritária, uma transição do Estado rentista petroleiro para um Estado neopatrimonial, ainda de caráter extrativo, mas com novos oligarcas à frente, sob a proteção e a possível supervisão da elite de poder»25. O problema central é que essas flexibilizações desorganizadas estão criando profundas rachaduras na sociedade venezuelana, já que excluem a maioria da população vulnerável, bem como setores tradicionalmente de baixa renda e classe média que não dispõem de recursos para o consumo privilegiado26.
Em resposta à dolarização de facto (ou ao uso de outras moedas, como o peso colombiano ou o real em áreas próximas à Colômbia e ao Brasil, respectivamente) e à ausência de um Estado funcional, (uma parte da) sociedade venezuelana está recorrendo às suas capacidades individuais para poder sobreviver. Aqueles que podem juntar uma quantia significativa de dólares para cavar seu próprio poço de água o fazem; os que têm menos dólares pagam por um delivery pontual de água; e quem não tem dinheiro fica à mercê do Estado e de sua prestação irregular desse serviço público. Algo semelhante acontece com a eletricidade: quem tem dinheiro compra uma usina elétrica – individual ou para seu complexo residencial –, e quem não tem dinheiro sofre cortes no fornecimento devido ao colapso do sistema elétrico. Essa dinâmica de setores privilegiados versus excluídos dificilmente levará a uma estabilidade política e/ou socioeconômica sustentável no tempo.
A alternativa? Construir um Estado funcional
Em contextos de conflito ou autoritarismo, a questão sobre o que fazer – ou, mais especificamente, o que fazer enquanto esse Estado disfuncional perdura – não é fácil de responder. Isto ocorre devido à incerteza e à opacidade desses contextos, mas também porque o marco de ação e os custos que derivam de tais contextos para atores adversos a um regime autoritário podem variar amplamente. As opções estratégicas da oposição na busca pela mudança de regimes políticos incluem vias institucionais, como participação em processos eleitorais, negociações, reformas de políticas públicas e protestos pacíficos, e vias extrainstitucionais, ou seja, mecanismos violentos de mudança, como golpes de Estado, intervenções ou protestos violentos. Embora seja certo que os canais institucionais tendem a gerar estabilidade pós-transição, deve-se notar que nem toda negociação e/ou participação eleitoral necessariamente leva a uma democratização. Por isso, movimentos e/ou partidos de oposição se preocupam em não gerar condições de legitimidade e apoio a um regime autoritário.Uma situação de incerteza similar ocorre em torno da intersecção entre capacidade estatal e autoritarismo. Quais são as implicações da fragilidade estatal? Carolien Van Ham e Brigitte Seim exploram o nexo entre capacidade estatal, autoritarismo e democratização. E constatam que a capacidade estatal pode ser uma das variáveis que condicionam o poder democratizante das eleições em regimes autoritários. Argumentam que, em regimes autoritários com alta capacidade estatal, a mudança no Executivo é menos provável, enquanto em regimes autoritários com baixa capacidade estatal as probabilidades de mudança do Executivo são altas. No entanto, neste último caso, é possível que a nova democracia não perdure e, portanto, que políticas públicas ou reformas substantivas não possam ser implementadas27.
Essas ideias ajudam a pensar o caso venezuelano. A construção da capacidade estatal fortaleceria o governo autoritário? Enquanto o conflito estiver em curso, qualquer resposta é incerta. Porém, tomando a experiência dos trabalhos existentes, pode-se deduzir que apoiar o partido no poder na construção da capacidade estatal, por exemplo, em termos de prestação de serviços públicos, pode ajudá-lo a ganhar legitimidade aos olhos dos cidadãos. Ao mesmo tempo, poderia consolidar ainda mais seu regime autocrático por meio do aumento da repressão e da cooptação. Em vez de enfraquecer suas estruturas de poder, poderia dar-lhe estabilidade e continuidade ao longo do tempo. Entretanto, a inação diante da delicada situação do Estado pode se traduzir em fragilidade ainda maior ao longo do tempo. Isto, se seguirmos o argumento de Van Ham e Seim, poderia significar que, ante a eventualidade de uma mudança no Executivo, o novo regime político não esteja condições de implementar as reformas necessárias. Para uma nova democracia, isso representaria um mau começo e geraria um ambiente incerto: investigações nesse sentido constataram que a fonte de legitimidade e estabilidade está ligada ao desempenho do novo regime, ou seja, à sua capacidade de oferecer serviços públicos, crescimento econômico e redistribuição28. Portanto, não abordar a fragilidade do Estado venezuelano no presente também poderia ter consequências negativas no futuro.
Como poderia ser construído um caminho para a democracia? Dois fatores são importantes antes de responder a essa pergunta: o domínio chavista e o manejo das expectativas e do tempo. Maduro tem sobrevivido e neutralizado pressões internas. Conseguiu isto usando o aparato coercitivo do Estado e desviando os custos do conflito para a sociedade. O resultado é uma oposição fragmentada e perseguida, uma sociedade empobrecida e despolitizada e uma coalizão autoritária relativamente unida até hoje. Em um contexto semelhante, a ação coletiva contra o governo parece difícil, assim como as probabilidades de uma revolta que desafie Maduro dentro de suas próprias fileiras29. Ao mesmo tempo, embora haja evidências de que regimes autoritários com Estados em bancarrota sejam vulneráveis ao colapso, dada a incapacidade de remunerar adequadamente suas forças de segurança30, o governo venezuelano tem «descentralizado» o acesso à renda ilícita, o que continua garantindo renda às suas elites. Portanto, seria necessário compreender o entrincheiramento do governo e os custos-benefícios de uma transição à democracia para a elite autoritária.
Esse cenário nos leva então a um caminho difícil, mas talvez beneficioso, para um eventual processo de democratização: a negociação. E aqui voltam as variáveis tempo e expectativa, pois todo processo de mudança significativa será lento e gradual. Apesar dos complexos trade-offs que pressupõe, a vantagem de uma negociação é que ela implica um espaço regulado no qual há a possibilidade de construir confiança e gerar consensos possivelmente estáveis sobre as novas regras de um novo sistema político31. Em seus estudos sobre transições, Guillermo O’Donnell e Philippe C. Schmitter ressaltaram na década de 1980 que elas ocorrem quando elites autoritárias moderadas negociam com setores opositores moderados32. Compreendendo essa complexidade, seria útil mudar o foco do conflito para encontrar janelas de oportunidade para sua transformação. Como?
Trazendo para a mesa de negociações a importância do Estado e sua atual fragilidade. Isto não implicaria abandonar a aspiração por uma mudança de regime político. Ao contrário, seria vincular a construção do Estado às negociações políticas e ver nisso um ponto de interesse comum. Os benefícios podem ser múltiplos. A literatura especializada nos diz que, para construir um Estado eficaz, são importantes, entre outros fatores, (a) o horizonte de tempo: governantes que manejam um horizonte de tempo mais longo serão mais propensos a investir em capacidade estatal, e (b) um desenho institucional inclusivo, não de soma zero: ou seja, os governos e seus opositores não deveriam temer a entrega do poder ao outro33. Um arranjo institucional estável fará com que invistam na capacidade estatal, uma vez que possuem um interesse comum. Na Venezuela, o investimento na capacidade estatal no curto prazo ajudaria a população afetada e possivelmente também o governo. Este último parece relevante em termos de incentivos numa negociação. No entanto, ao construir as bases para um novo sistema político inclusivo, a oposição democrática e a sociedade em geral também se beneficiariam a médio e longo prazo.
Abordar o conflito dessa forma permitiria pensar em dois eixos temporais – um de curto prazo e outro de médio e longo prazos –, ambos vinculados a diferentes objetivos. No curto prazo, a sociedade organizada, juntamente com os atores políticos do país e aliados internacionais relevantes, poderia investir no que é urgente, ou seja, na dimensão administrativa da capacidade estatal, que se refere à capacidade do Estado de prestar serviços públicos básicos e gradualmente cumprir os direitos consagrados na Constituição venezuelana (1999). Investir em infraestrutura para os setores de saúde, educação e transporte, entre outros, não só aliviaria a emergência humanitária sofrida por milhões de cidadãos, mas poderia também trazer outros benefícios, como contribuir para a geração (e a regeneração) da relação entre Estado e sociedade, reduzindo o peso dos grupos irregulares e devolvendo gradativamente a legitimidade ao Estado. Dado que o governo é autoritário e pouco confiável, seria o caso de desenvolver uma metodologia e um monitoramento confiáveis, com assistência técnica, para garantir que os recursos e apoios fornecidos possam ser investidos sem serem desviados. Da mesma forma, a sociedade organizada poderia exercer pressão, mobilizando-se para que o Estado cumpra suas responsabilidades.
Separar o que é urgente do que é essencial – o desenho de um novo Estado e suas instituições – permitiria tirar pressão da ideia de mudança imediatista, que não tem sido viável até agora e que parece improvável no futuro. Instituições, recursos, alianças e know-how autoritário não desaparecem, mesmo após uma transição bem-sucedida para a democracia; pelo contrário, condicionam o regime político emergente34. Uma negociação que não tenha como objetivo aniquilar politicamente o chavismo, mas sim incorporá-lo a um Estado funcional e democrático, poderia dar ao governo a oportunidade de se democratizar e se pensar como parte do processo de mudança35. Em uma negociação que não seja regida pela lógica de soma zero, a reinstitucionalização do país poderia ser abordada por meio de acordos consensuais que ajudem a mitigar os efeitos de instituições autoritárias no futuro. Por exemplo, um elemento importante seria o desenho de instituições contramajoritárias – sem reeleição indefinida, sistema eleitoral proporcional – que facilitem a cooperação entre os atores. O aprofundamento da descentralização iniciado na década de 1990 também poderia ser retomado, para fortalecer as competências regionais e municipais e vincular a sociedade às decisões de políticas públicas. O investimento em capacidade administrativa mencionado acima teria um efeito de spill-over para outros setores da burocracia: se o Estado se profissionalizar e aumentar sua capacidade, é possível esperar que a colaboração nacional-internacional seja replicada para fortalecer outras instituições e poderes do Estado, como o Supremo Tribunal de Justiça, o Conselho Nacional Eleitoral e a Assembleia Nacional. Dito isto, como um Estado forte beneficia quem governa, tanto numa democracia como numa autocracia36, é essencial que em qualquer processo de negociação se estabeleçam mecanismos claros e confiáveis que facilitem um processo de liberalização e eventual democratização. Essa proposta será realista na medida em que as elites autoritárias gerarem sinais confiáveis de abertura, cooperação e reinstitucionalização37.
Em grande medida, a política muda de acordo com interesses e vontades. Após mais de duas décadas de confronto político, polarização e crise multinível, é necessário encontrar um ponto em comum para iniciar uma nova busca pela democracia. A (re)construção do Estado representa uma oportunidade. Uma mudança de foco, de um «não vão voltar [em referência à oposição]» ou uma «saída do Executivo a todo custo», para uma «construção das capacidades do Estado e democratização em várias etapas» pode significar um futuro para a Venezuela.
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35.
Uma via gradual de mudança não implicaria deixar de lado a luta por justiça, verdade, reparação e não repetição. Ver M. Jiménez: «Lost in Fragmentation? The Recurrent Dilemmas of the Venezuelan Opposition and What to Do Next», The Wilson Center, 10/2021; Marino Alvarado B: «Toda negociación para salir de la crisis en Venezuela y rescatar la democracia debe partir de varios aspectos…» em Twitter, 17/4/2022, disponível em https://mobile.twitter.com/marinoalvarado/status/1515715209041690624.
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36.
David Andersen, Jørgen Møller, Lasse Lykke Rørbæk e Svend-Erik Skaaning: «State Capacity and Political Regime Stability» em Democratization vol. 21 No 7, 10/11/2014.
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37.
M. Jiménez: «Venezuela’s Negotiations Won’t Get Rid of Maduro. So What’s Next?» em Americas Quarterly, versão digital, 11/2021, disponível em www.americasquarterly.org.