Opinión
febrero 2024

O curioso caso dos «apadrinhados» de Bukele

Disponible en español

O regime instaurado por Nayib Bukele se caracteriza, além de seu autoritarismo, pela presença de círculos informais de poder, como os assessores venezuelanos e a própria família do presidente. Diversos nomes permitem dar forma ao sistema Bukele, que assumiu o poder absoluto no país.

<p>El curioso caso de los «enchufados» de Bukele</p>

Os venezuelanos que trabalham para Nayib Bukele deveriam ir às Olimpíadas. Só assim seria feita justiça à habilidade acrobática que realizam para, por um lado, celebrar a instauração de uma ditadura em El Salvador e, por outro, fazê-la coexistir com seu ativismo pela democracia na Venezuela.

São os «apadrinhados». Segundo a jornalista venezuelana Florantonia Singer, esse termo popular se aplica a pessoas que «não apenas foram favorecidas pela distribuição das rendas do Estado, mas também foram úteis para a consolidação de um modelo autoritário na Venezuela».

Foi exatamente isso que o grupo liderado por Sara Hanna Georges fez em El Salvador. Numa série de investigações realizadas durante três anos, meu colega Jimmy Alvarado jogou luz sobre um grupo de venezuelanos que assessoram o governo Bukele. Tal como Hanna Georges, que foi assistente do líder opositor Leopoldo López e de sua esposa, Lilian Tintori, a maioria está ligada ao antigo «governo interino» de Juan Guaidó e à liderança do partido Vontade Popular em Maracaibo e Caracas.

Hanna Georges é uma ministra não nomeada em El Salvador. Ela toma decisões, comanda, circula com escolta. Sob as suas ordens há uma longa lista de outros venezuelanos apontados pelas investigações de Alvarado: Miguel Sabal, o segundo sob o comando de Georges; Miguel Arvelo em temas de saúde; Tomás Hernández na economia; Roddy Rodríguez na educação; Santiago Rosas e Ernesto Herrera na segurança; e María Alejandra García na coordenação do Programa de Emergência Sanitária.

A lista não ficaria completa sem Lester Toledo, outro opositor venezuelano que assessorou Bukele na instauração do que o presidente chamou de «uma democracia de partido único», após ter sido recentemente reeleito para o cargo com 85% dos votos e obter quase todas as cadeiras no Congresso. É uma situação inédita em El Salvador nos últimos 85 anos. Inédita porque é ilegal: a Constituição proíbe a reeleição presidencial imediata em seis artigos.

Sejamos claros: El Salvador é uma ditadura. 

A definição mais simples, a da Real Academia Espanhola (RAE), diz que uma ditadura é um regime político que, «pela força ou pela violência, concentra todo o poder numa pessoa e reprime os direitos humanos e as liberdades individuais». Ponto por ponto, tudo isso aconteceu e está acontecendo em El Salvador.

Pela força: Bukele não deveria ter sido candidato. Isto foi dito até a exaustão. Não apenas a atual Constituição o proíbe. Desde a fundação do país, tem havido proibições à reeleição, em parte porque os poderosos usaram o poder para permanecer no poder. O próprio Bukele disse isso em entrevista à televisão em 2013 e repetiu ao youtuber Luisito Comunica em 2021 (mais sobre ele depois).

A lei proíbe isso, mas não resta ninguém neste país com capacidade para fazer Bukele cumprir as leis. Bukele venceu as eleições de 2019 e, pouco depois, obteve uma supermaioria legislativa em 2021. Mais tarde, inaugurou esse poder dando um golpe de Estado no Judiciário. A maioria bukelista demitiu os magistrados da Sala Constitucional que terminavam seu período em 2027 e os substituiu por súditos. Um deles foi direto para a Corte vindo da Secretaria Jurídica da Casa Presidencial. Três meses depois, esses mesmos magistrados reinterpretaram a Constituição para fazê-la dizer o que não diz: que Bukele poderia ser reeleito.

Por via das dúvidas, a Assembleia Legislativa aprovou uma reforma que pune com 15 anos de prisão os magistrados que dificultarem a inscrição de candidatos. Ou seja, se alguém pensar em se opor, aí está a megaprisão que todos conhecem. E aí está também o procurador, a quem Bukele se referiu abertamente como «meu procurador», pronto para proceder.

Às luz dos 2,7 milhões de votos que Bukele obteve em 4 de fevereiro, talvez as formas percam importância. Mas não deveriam: ele venceu, sim, mas infringindo a lei. Bukele venceu com trapaça. Negou ilegalmente dinheiro público aos partidos da oposição para enfraquecer suas oportunidades de campanha. As eleições estão repletas de irregularidades, a tal ponto que os partidos da oposição, mesmo os que conquistaram assentos, pediram a anulação das eleições legislativas.

Enquanto isso, o Novas Ideias, partido de Bukele, fez uma campanha milionária. A organização Ação Cidadã, que monitora o financiamento eleitoral, estimou que os partidos políticos gastaram cerca de 8,9 milhões de dólares em publicidade entre agosto de 2023 e janeiro de 2024. O Novas Ideias gastou 96% dessa cifra. Nem o Tribunal Supremo Eleitoral nem o Ministério da Fazenda revelaram os números reais do financiamento partidário. Mas, além do partido, a Ação Cidadã informou que o governo gastou outros US$ 5,9 milhões em propaganda a favor de Bukele. Ou seja, um total de cerca de 14 milhões de dólares.

Essas cifras não incluem gastos como os 72 milhões de dólares que o governo investiu na realização do concurso Miss Universo em novembro passado. E é um mistério se o governo gasta dinheiro para trazer influenciadores como Luisito Comunica, um mexicano com 42 milhões de inscritos no YouTube, para realizar visitas turísticas a lugares como o presídio de segurança máxima, a prisão-estrela de Bukele. Tanto os apresentadores do Miss Universo como os influenciadores publicam depois produtos promocionais sobre El Salvador como uma terra mágica de oportunidades. Isso apesar de que um em cada três salvadorenhos viva na pobreza.

Mas mantenhamos o foco. A definição da RAE também diz que uma ditadura «concentra todo o poder numa só pessoa». Há diversos exemplos disso, e não apenas da concentração dos três poderes em mãos de pessoas leais ao presidente. Também existe a punição daqueles que, em suas fileiras, ousam quebrar a hierarquia. Rogelio Rivas, o primeiro ministro da Segurança de Bukele, foi demitido porque o Organismo de Inteligência do Estado informou que ele estava construindo uma candidatura presidencial, sem ter consultado o clã Bukele. Em junho de 2022, o secretário de Comunicação do presidente publicou uma foto de uma missão governamental à Suécia. Apareciam, entre outros, os ministros do Interior, de Obras Públicas e do Meio Ambiente, e Ibrahim Bukele. Não houve explicação. A tomada de decisões estatais em El Salvador está tão concentrada em Bukele que seus irmãos – que também não têm cargos oficiais – participam de missões oficiais e de reuniões com empresários em representação do governo. Seu irmão Karim estava na Assembleia Legislativa  na noite da aprovação da Lei Bitcoin, contando detalhes do processo num Space, em inglês, para investidores. Quando o governo queria emitir dívida em forma de títulos bitcoin, o empresário encarregado disse que seu interlocutor havia sido Yusef Bukele, outro irmão. Os irmãos Bukele governam conjuntamente, como se fosse uma monarquia. 

Uma ditadura também «reprime os direitos humanos e as liberdades individuais». Em seu discurso vitorioso após a eleição, Bukele esteve na sacada do Palácio Nacional para se dirigir à multidão. A encenação foi apoteótica. «Deixamos de ser o país mais inseguro do mundo para ser o mais seguro do Hemisfério Ocidental. E o que disseram? Estão violando os direitos humanos. Os direitos das pessoas honradas? Não», trovejou Bukele. Dado que o mandatário controla todas as instituições políticas em El Salvador, é claro que é ele quem decide quem é honrado e quem não é.

Alejandro Muyshondt, por exemplo, foi, segundo a definição presidencial, um cidadão íntegro por alguns anos. Jogava paintball com Bukele. Era seu assessor em questões de segurança. Em meados de 2023, porém, denunciou os vínculos de um deputado do partido governista com o narcotráfico. Como represália, Muyshondt foi acusado de revelar documentos secretos a um ex-presidente. Foi preso. Seis meses depois, morreu na prisão. Sua advogada relatou que seu corpo apresentava sinais de tortura.

Essa é uma história comum nas prisões salvadorenhas. A organização Socorro Jurídico Humanitário denuncia a morte de 232 pessoas durante o regime de exceção. Jornalistas e organizações têm denunciado centenas de casos de pessoas inocentes detidas sem motivo. Um dos últimos casos que conheci foi o de um jovem mudo, preso porque os agentes da polícia presumiram que sua língua de sinais indicava seu pertencimento a um gangue.

As liberdades individuais em El Salvador estão se deteriorando. No dia das eleições, o escritor Carlos Borja foi preso porque compareceu com megafone num centro de votação para ler os artigos da Constituição que proíbem a reeleição presidencial. Ficou três dias preso. O rapper estadunidense de origem salvadorenha Nelson Hernández foi preso em Nahuizalco foi preso em Nahuizalco por causa de uma música sobre seu lugar de origem: o governo considerou a música um incentivo à violência porque menciona um local controlado por gangues.

O governo salvadorenho conseguiu que o livro de contos Sustancia de hígado, de Michelle Recinos, fosse excluído da Feira Internacional do Livro da Guatemala, na qual El Salvador era país convidado, devido às pressões da embaixada salvadorenha naquele país. Isso sem falar dos mais de dois meses em que fui espionado pelo software Pegasus, assim como dezenas de outros jornalistas salvadorenhos. Nos últimos cinco anos, El Salvador perdeu 49 posições no ranking mundial de liberdade de imprensa da ONG Repórteres Sem Fronteiras. Quando tuitei essa estatística, o comissário presidencial de Direitos Humanos – outro «apadrinhado», mas colombiano – me disse que isso parecia uma série da Netflix.

Eu estava pensando nessas coisas, em fraudes eleitorais e ataques à imprensa, quando me encontrei com Léster Toledo num edifício em San Salvador. Resolvi me aproximar dele porque já tinha me encontrado com Leopoldo López (em Oslo) e ele me prometeu uma entrevista, que ainda estou aguardando, para falar sobre os opositores venezuelanos em El Salvador. Perguntei a Toledo se não achava incoerente construir em El Salvador uma ditadura como a que ele denuncia na Venezuela. Toledo me disse que não estava de acordo. Que ele faz um trabalho técnico, eleitoral. E que este é um assunto privado entre ele e o Novas Ideias, partido de Bukele. Quando argumentei que essa era uma candidatura inconstitucional, ele me disse que não queria se envolver em assuntos internos.

Em «assuntos internos». O que é mais interno do que as eleições? Como pode ser privado um contrato com um partido político? Um partido não é uma sociedade anônima. Os partidos não apenas são financiados com dinheiro público, mas também tomam decisões que afetam toda a população. Toledo e o resto dos venezuelanos não estão em El Salvador recomendando à Coca Cola como vender novos produtos. Estão ajudando a instaurar um regime.

Léster Toledo diz estar orgulhoso do que faz. Em sua conta do Instagram, publicou um vídeo onde conta que começou o dia das eleições às duas e meia da madrugada. Saiu do apartamento numa van preta com vidros polarizados. Entrou num centro de controle altamente equipado. Disse que conversou com Bukele várias vezes durante o dia. Em seguida, Toledo volta à sua conta no Twitter para reclamar de como «o chavismo recorre a seu braço judicial», para reclamar dos presos políticos do regime de Nicolás Maduro e das ações do «procurador da ditadura». Se quisesse, poderia encontrar exemplos de tudo isso em El Salvador.

Facundo Cabral disse que seu tio Pedro foi comunista até que o capitalismo lhe deu uma oportunidade. Os venezuelanos que assessoram Bukele foram democratas até que a oportunidade lhes foi dada pelo ditador cool de uma nação centro-americana.

Tradução: Eduardo Szklarz


En este artículo


Newsletter

Suscribase al newsletter