Tema central
NUSO Nº Junho 2017

Girassóis de Taiwan, guarda-chuvas de Hong Kong

Girassóis de Taiwan, guarda-chuvas de Hong Kong

Nota: este artigo foi publicado originalmente na revista La Vie des Idées, 22/9/2016, com o título «Tournesols taïwanais, parapluies hongkongais. Occupy en Asie de l’Est». Agradecemos aos editores pela autorização para traduzi-lo. Tradução de Celina Lagrutta.


Em 2014, com um intervalo de seis meses, dois movimentos de jovens eclodiram e ocuparam o espaço público durante várias semanas. Primeiro, em Taiwan, de 18 de março a 10 de abril, em protesto contra o Acordo sobre o Comércio de Serviços com a República Popular da China, cerca de 200 jovens ocuparam o Parlamento durante 24 dias. Devido à pressão social, o governo taiwanês foi obrigado a suspender o acordo. Mais tarde, no final de setembro de 2014, quando as autoridades chinesas anunciaram que o chefe do Executivo seria eleito em 2017 por um comitê de 1.200 pessoas, rejeitando a demanda de introdução do sufrágio universal para os cidadãos de Hong Kong, milhares de pessoas, em sua maioria estudantes, ocuparam três bairros da cidade. Esses dois movimentos apresentam muitas semelhanças com os movimentos globais que observamos desde a «primavera árabe»: uma participação majoritária de jovens de menos de 30 anos e a onipresença das redes sociais na convocatória e no registro do movimento, bem como a ocupação não violenta do espaço público, lançando mão da desobediência civil. Contudo, apesar das similitudes formais em termos de mobilização, as ocupações dos jovens de Taiwan e Hong Kong se diferenciam amplamente de outras mobilizações pela ausência de reivindicações socioeconômicas. Em Nova York, Túnis, Madri e Quebec, todas as manifestações populares dos últimos anos nasceram de um sentimento de frustração social. Descontentes com o agravamento das desigualdades sociais e da corrupção, os jovens questionaram a legitimidade do regime político e exigiram reformas políticas. Já nos casos de Taiwan e Hong Kong, os jovens insistem mais na democracia formal, concentrando suas reivindicações no sufrágio universal. Neste sentido, suas reivindicações ecoam os sentimentos anti-China da população.

Tal contraste revela não apenas as trajetórias singulares do desenvolvimento político no Leste asiático, mas também uma prática peculiar dos movimentos coletivos influenciada pela dinâmica geopolítica da região. Dado que muitos comentários enfatizam o surgimento de uma nova geração politizada, este texto tem como objetivo examinar ambas as mobilizações para proporcionar uma análise historicizada da evolução da luta pela democracia e do savoir-faire insurrecional em Taiwan e Hong Kong. Por meio deste estudo comparativo, buscaremos apresentar a particularidade desta geração e suas possíveis influências no futuro político das duas sociedades.

Primeiro liberdade, depois igualdade

«Nosso anseio é deixar a sociedade mais liberal, antes de ela se tornar mais igualitária»1. Em entrevista à revista britânica New Left Review, Joshua Wong, líder do Movimento dos Guarda-Chuvas e fundador da associação de estudantes Escolarismo (Xuemin Sichao), explica dessa maneira o objetivo do protesto. Segundo ele, em uma sociedade profundamente capitalista como a de Hong Kong, um movimento de massa não pode ganhar apoio social se priorizar as reivindicações anticapitalistas:

A sociedade de Hong Kong é profundamente conservadora – até a classe mais pobre se identifica com a direita. Não há nenhum tipo de apoio financeiro do Estado para os pobres. Todas as propostas «de esquerda» serão associadas ao Partido Comunista Chinês (pc), até mesmo as demandas mais elementares, como limitar a jornada de trabalho a oito horas diárias, coisa que não é particularmente «de esquerda». A convicção popular é que basta trabalhar duro para se dar bem na vida e ficar rico. A pobreza é um fracasso pessoal, não um problema estrutural. Os estudantes secundaristas, em particular, não têm nenhum interesse pelas questões sociopolíticas. Querem apenas a democracia. Desejam uma sociedade mais liberal, mas não mais igualitária. Na universidade, a matéria mais popular é economia, na qual prima a lei do mercado. É, sem dúvida, outra forma de lavagem cerebral, diferente da propaganda do pc. Assim, a única possibilidade de fazer expandir a nossa associação, o «Escolarismo», é nos concentrarmos nas reivindicações políticas.

Esta visão dicotômica do movimento social é fruto do complexo anticomunismo da sociedade de Hong Kong. Ali, assim como em Taiwan, a relação de amor-ódio para com a China domina a agenda política, a tal ponto que definiu o quadro dos movimentos sociais por várias gerações de intelectuais. Isto entranha uma consequência paradoxal para o discurso crítico em Taiwan e Hong Kong: por um lado, durante muito tempo, no contexto da Guerra Fria, a hostilidade contra o pc debilitou a legitimidade das críticas anticapitalistas; por outro, como ambos os regimes estão profundamente estruturados pelo pensamento do liberalismo econômico, uma posição puramente identitária para defender a independência de Taiwan e Hong Kong se torna igualmente impossível após o final da Guerra Fria, quando a influência do mercado chinês aumenta. Assim, afetados tanto pelo complexo anticomunista herdado da história moderna da região como pela dependência econômica em relação ao mercado chinês, os movimentos de contestação se veem limitados em seu discurso, e as críticas dirigidas ao governo chinês não têm outra opção a não ser assumir a forma de reivindicações democráticas.

Democratização e independentismo em Taiwan

Comecemos por Taiwan. Nesse regime democrático, entre as associações majoritariamente compostas por diásporas chinesas, a luta pela democratização integrou a busca pela identidade coletiva dos taiwaneses. De 1945 a 1973, durante quase três décadas, a ideia de derrocar o regime de Mao Tsé-Tung e de reconquistar o território chinês serviu de pretexto para a política autoritária e o tratamento privilegiado da população proveniente da China continental. Foi somente após 1970, quando a Organização das Nações Unidas (onu) excluiu a República da China (atual Taiwan), que o regime de Chiang Kai-shek se viu obrigado a abandonar toda pretensão de recuperar a China continental. Isso conduziu à gênese de uma identidade que situou a particularidade da sociedade taiwanesa e a necessidade de sua população no centro da esfera política. De acordo com Hsiao A-chin, historiador social chinês especialista na história intelectual de Taiwan do pós-guerra, os estudantes dos anos 1970, de origem tanto taiwanesa como continental, formaram uma geração que se tornou realista (huigui xianshi shidai)2. Tendo reconhecido a impossibilidade de recuperar a China continental, os jovens intelectuais abandonaram pouco a pouco sua consciência de exilados, forjada no contexto do nacionalismo chinês imposto pelo Kuomintang. Esse realismo se revela claramente pela formação do movimento literário de xiangtu wenxue (literatura nativista), dedicado a descrever as condições de vida da classe popular. Esta contribui à emergência de uma série de movimentos sociais, acompanhada de uma abertura política em direção ao multipartidarismo. A expressão dangwai (fora do Kuomintang) se transforma em uma categoria unificadora de um leque de movimentos de contestação (feminista, operário, ecologista, etc.) que questionam a ideologia desenvolvimentista do Kuomintang e pregam alternativas políticas.

Durante esse período, a figura da China, inimiga e «terra natal» longínqua, é menos esmagadora do que a do Kuomintang, percebido como uma máquina de opressão pelos intelectuais e militantes democratas. Em outras palavras, apesar da existência histórica do movimento pela independência soberana de Taiwan mesmo antes de 1949, este não constitui ainda a voz dominante no seio do campo dissidente. A luta social em Taiwan nessa época era, antes de mais nada, um movimento que demandava liberdade política para o povo. A democratização de Taiwan era um objetivo unificador entre os intelectuais e militantes, independentemente da origem familiar3 ou da corrente de pensamento que reivindicassem.

Esse equilíbrio entre a luta pela liberdade política e a luta identitária foi quebrado nos anos 1980. Em primeiro lugar, depois de uma série de campanhas repressivas e de assassinatos de militantes anti-Kuomintang, notadamente o «incidente Kaoshiung» em dezembro de 1979, a tensão entre o regime autoritário do Kuomintang e os dissidentes alcançou o ápice. Como resultado, o movimento democrático se radicaliza e reivindica a independência formal de Taiwan, rejeitando todos os relatos jurídicos ou culturais que tendem a fazer de Taiwan uma parte integrante da nação chinesa. Em segundo lugar, a partir de 1986, o governo nacionalista lança uma série de reformas políticas que dão início ao processo de democratização. À medida que as liberdades políticas são implementadas, intelectuais e militantes se debatem novamente entre o sentimento de pertencimento à nação chinesa e a aspiração de independência de Taiwan. A criação, em 1986, do Partido Democrático Progressista (pdp), que reuniu diversas correntes dissidentes favoráveis à independência de Taiwan, marca a cristalização dessa clivagem. Quando o pdp, tradicionalmente mais próximo dos movimentos operários, feministas e camponeses, introduz em seu estatuto o objetivo de estabelecer uma nação taiwanesa independente, a divisão a favor ou contra o Kuomintang se transforma em uma posição a favor ou contra a independência formal de Taiwan. Assim, a posição independentista do pdp provoca preocupação em Pequim. Entre 1994 e 2000, em repetidas ocasiões, a China tenta impedir os cidadãos taiwaneses de votar no pdp por meio da ameaça militar. A reivindicação de independência de Taiwan, ideal de grande parte dos militantes e intelectuais democratas, torna-se então sinônimo de ameaça militar para os partidários tradicionais do Kuomintang.

Hong Kong e China

Diferentemente de Taiwan, onde a luta pela democracia se apresenta como uma defesa da independência e da soberania, em Hong Kong o regime colonial delimita fortemente a margem de manobra das associações pró-democracia. No período de 1950 a 1960, dominado pelas tensões militares da Guerra Fria, a sociedade civil de Hong Kong se dividiu entre os militantes pró-comunistas – inclusive no seio da Confederação de Sindicatos de Hong Kong (hkftu, na sigla em inglês) e do movimento estudantil – e os grupos pró-Kuomintang, próximos de Chiang Kai-shek em Taiwan. O início da Revolução Cultural em 1967 reforça o laço entre os comunistas da China e as forças de esquerda em Hong Kong, pressionando estas últimas a promover um comunismo combinado com um discurso patriótico e anticolonialista. Enquanto isso, entre os militares e intelectuais anticomunistas, alguns jovens universitários se interessaram por questões sociais e pelas condições sociais de vida das classes populares. Unidos pelo engajamento anticolonial, o anticomunismo e a defesa da autonomia local, esses grupos são os antepassados da «seção pandemocrática» (fan min pai), um amplo grupo que reúne diversas associações de estudantes, sindicatos e intelectuais simpatizantes da democratização de Hong Kong.

Em 1980, enquanto Pequim e Londres começavam a negociar os termos da transferência de soberania de Hong Kong à China e do modelo político honconguês, os grupos democráticos e pró-Pequim tentaram influir na posição oficial sobre o futuro de Hong Kong. Por um lado, a força pandemocrática pedia eleições democráticas por sufrágio universal para governador de Hong Kong e chefe do Executivo, bem como a eleição indireta do Conselho Legislativo. Por outro lado, as elites empresariais de Hong Kong começaram a exercer pressão sobre Pequim para estender suas liberdades econômicas sob o slogan «Um país, dois sistemas». A concorrência entre essas duas forças culminou em 1989, após o movimento de Tiananmen. Após a decepção com a decisão do pc de abandonar os estudantes e os trabalhadores, os pandemocráticos se retiraram da negociação sobre a Lei Básica4 e constituíram uma força de oposição na sociedade civil através dos partidos políticos e sindicatos independentes. Isso permitiu que os círculos empresariais, que formaram vários partidos políticos nas duas décadas seguintes, se tornassem os interlocutores privilegiados de Pequim. Juntamente com os sindicatos favoráveis à China (gonglianhui), formaram uma aliança chamada «seção pró-status quo» (jianzhi pai). Embora sua popularidade seja menor que a dos pró-democráticos, conseguiram controlar a maioria dos legisladores graças ao sistema de circunscrição funcional, sistema eleitoral que autoriza os grupos de interesse a elegerem seu representante.

Esse contexto explica por que a oposição entre a esquerda e a direita locais está praticamente ausente dos protestos políticos de Hong Kong. Em razão da hostilidade histórica para com o pc, a divisão ideológica entre direita e esquerda é ofuscada pelas tensões entre a autonomia da população de Hong Kong e o controle do Partido. Em tal cenário, o movimento pela autonomia da população de Hong Kong, associado a um sentimento histórico de superioridade em relação aos continentais, tornou inaudíveis as críticas anticapitalistas. Consequentemente, a democracia é percebida pela sociedade civil como a solução para todos os problemas sociais. Durante esse período, as manifestações anuais de 4 de junho (recordando o massacre de Tiananmen) e de 1º de julho (aniversário do retorno de Hong Kong à China) atraem cada vez mais pessoas.

Benny Tai, professor de Direito na Universidade de Hong Kong e organizador do coletivo Occupy Central with Love and Peace, representa essa geração, tanto por sua trajetória como por seu engajamento intelectual e social. Nascido em 1964, estudou Direito na Universidade de Hong Kong, militou no movimento pró-democrático dos anos 1980 e foi um dos representantes estudantis na Comissão da Lei Básica, da qual se retiraria em 1989, depois do movimento de Tiananmen. Após um curto período de formação para se tornar professor na Inglaterra, retornou a Hong Kong e passou a lecionar na Universidade de Hong Kong, sempre participando do movimento pró-democrático. A ideia do Occupy Central with Love and Peace foi proposta pela primeira vez em junho de 2013 em um artigo de imprensa que fazia um apelo à desobediência civil. Em seguida, propagou suas ideias através de diversas abordagens – em grupos de discussão na universidade, em sessões deliberativas durante reuniões de cidadãos, em organizações religiosas e associações comunitárias. Essas diferentes inciativas, ao difundirem a contestação e o espírito da desobediência civil, estão na origem do Movimento dos Guarda-Chuvas.

Em resumo, em vez de se confrontarem em relação às questões econômicas e sociais, os grupos e partidos políticos se dividem fundamentalmente por sua posição identitária no que diz respeito à China. Desta forma, embora a democracia seja percebida como uma solução para os problemas sociais, há poucas reivindicações concretas sobre o seu funcionamento além das propostas formais, tais como o sufrágio direto. Em Taiwan, de forma similar, os debates socioeconômicos são frequentemente subordinados ao posicionamento sobre a identidade nacional, apesar da afinidade tradicional entre o pdp e as associações progressistas.

Essas condições históricas explicam por que o sistema democrático, transparente e favorável ao livre comércio se tornou a reivindicação mais importante dos movimentos dos Girassóis e dos Guarda-Chuvas. Entretanto, a novidade desses movimentos reside também em seu desejo de superar os debates identitários se apropriando dos valores democráticos.

Depois de Tiananmen, a renovação

Mais do que uma renovação do relato identitário, os movimentos dos Girassóis e dos Guarda-Chuvas inauguraram uma nova forma de crítica de intelectuais e militantes politizados no ambiente pós-Tiananmen. Dois fatores parecem particularmente cruciais na formação dessa nova consciência das lutas: um primeiro fator político, o desejo de reafirmar as liberdades individuais e os princípios democráticos como regras fundacionais de uma sociedade; e um segundo fator socioeconômico, a reivindicação de um modo de vida que se distancia do modelo de desenvolvimento chinês.

Para o pcc, o massacre de Tiananmen teve efeitos ambivalentes: por um lado, obrigou o Estado chinês a reforçar o controle político e fragmentou a resistência organizada5; por outro, pressionou o partido a reconstruir sua legitimidade pelo desempenho econômico, o que conduziu a uma série de reformas econômicas nos anos 1990, destinadas a atrair capitais estrangeiros, grande parte dos quais vieram de Hong Kong e Taiwan.

Tal evolução deslegitimou enormemente o discurso dos campos pró-independência e/ou pró-democracia em Taiwan e Hong Kong, posto que os interesses das empresas destes últimos estavam intrinsecamente ligados ao intercâmbio comercial com a China. É especialmente o caso em Taiwan, onde, a cada eleição, o pdp é obrigado a provar que sua posição independentista não irá em detrimento do desenvolvimento econômico. A busca da independência e o interesse econômico de Taiwan parecem de tal forma incompatíveis que alguns membros do pdp propõem abandonar a posição oficialmente independentista no programa do partido. De fato, este é incapaz de apresentar um programa que permita conciliar ambas as questões. Em Hong Kong, que passou a fazer parte da China em 1997 sob o regime de «Um país, dois sistemas», a questão é ainda mais delicada. O interesse econômico representado pelo mercado chinês parece impor os valores políticos e sociais de Pequim nessas duas sociedades, diminuindo drasticamente a margem de manobra dos militantes e intelectuais céticos.

Um ponto de inflexão discursivo foi registrado em fevereiro de 2006, quando a escritora taiwanesa Long Ying-tai, , professora e pesquisadora de literatura na Universidade de Hong Kong, publicou uma carta aberta intitulada qing yong wenming lai shuifu wuo [Convençam-me por meio da civilização], endereçada a Hu Jintao, o então primeiro-ministro chinês. Desmoralizada pela censura oficial da revista Bingdian, esta eminente figura da intelectualidade pública do mundo chinês explica a Hu Jintao sua decepção diante da violação da liberdade de expressão na China:

Eu estou muito ligada sentimentalmente à China continental. Essa ligação é fruto da tradição, da história compartilhada, de destino familiar, bem como da língua e da cultura chinesas. Tendo crescido em Taiwan, também desenvolvi um apego pela identidade familiar, a saber, o respeito à vida humana, o humanismo, entre outros valores que desses decorrem. Por exemplo, o respeito à individualidade, o espírito liberal, a não aceitação das desigualdades sociais e a intolerância para com a violência estatal. Outros exemplos são o respeito ao conhecimento, a consideração das classes populares, a tolerância aos dissidentes, o desprezo pela mentira. Trata-se de um juízo racional que eu chamo de «a identidade pelos valores». Quando o laço sentimental, enraizado na identidade nacional, enfrenta o julgamento racional, o que devo fazer? Sem dúvida, eu escolheria o último. Como já vivemos a barbárie, não temos outra opção a não ser a política civilizada. Sr. Hu Jintao, por favor, convença-me por meio da civilização. Estou mais do que disposta a ouvi-lo atenciosamente.

Em uma época na qual o Estado chinês se apropriou de diversas ferramentas discursivas para justificar seu modelo autoritário e alternativo de desenvolvimento, o artigo de Long Ying-tai marca uma renovação das críticas anticomunistas. O que surge da citação acima é uma ambivalência evidente nos intelectuais como Long, cuja família fugiu da China durante a revolução comunista. Por um lado, a transmissão da memória familiar faz com que seja impossível renunciar à identidade chinesa; por outro, depois de ter vivido reais experiências democráticas, fica difícil se identificar com as práticas autoritárias do pc.

Sendo a democracia e as liberdades políticas vistas como valores universais superiores a todo sentido de pertencimento, é insustentável para a autora aceitar a prática do regime chinês, apesar de seu forte apego sentimental ao país. Evidentemente, Hu Jintao nunca respondeu abertamente a Long Ying-tai. No entanto, o artigo dela teve grande eco no resto do mundo: muitos debates intelectuais ocorreram em torno do seu posicionamento.

A distinção entre a identidade cultural e nacional, de um lado, e a identidade pelos valores universais sugerida por Long Ying-tai, do outro, permite criticar o aumento do poder econômico na China a partir de outro ângulo. Embora algumas críticas a acusem de sustentar uma posição pró-ocidental ao valorizar a liberdade de pensamento6, a escritora produz um discurso que permite relativizar aquele que apresenta o intercâmbio com a China como um caminho inevitável.

Os movimentos dos Girassóis e dos Guarda-Chuvas constituem, portanto, a expressão concreta de um impulso humanista dos jovens de Taiwan e Hong Kong diante do esgotamento da capacidade de crítica do poder estabelecido. Um dos catalisadores desse ressentimento foi a abertura do turismo chinês, há dez anos. Ainda que os poderes políticos insistissem sobre os benefícios econômicos decorrentes do turismo chinês, para os taiwaneses e honcongueses o encontro repentino com essas populações do continente reforçou um sentimento de alteridade: os chineses são percebidos como habitantes do terceiro mundo, ainda longe dos patamares da civilização. Essa visão, herdada da Guerra Fria, permanece hoje nas duas sociedades historicamente ligadas ao campo ocidental.

Essa constatação aparece expressa na carta a seguir, escrita por um taiwanês que trabalhava na China, amplamente difundida pelas redes sociais durante o Movimento dos Girassóis:

Muitas pessoas desejariam regressar a Taiwan para se aposentar. Elas pensam que Taiwan não é um lugar para «ganhar» a vida, mas sim para «viver» a vida. O dilema enfrentado pelos taiwaneses é que eles querem o crescimento econômico sem ter que investir; gostaríamos de ter uma vida feliz, mas também um pouco de dinheiro no bolso. Na verdade, é difícil ter tudo... Talvez devêssemos refletir com calma: o que queremos não é o crescimento econômico, mas sim a felicidade cotidiana. Se esse é o caso, não se deve assinar o Acordo sobre o Comércio de Serviços.7

A oposição entre «ganhar» a vida e «viver» a vida, entre crescimento econômico e felicidade cotidiana, reflete o desejo do autor de priorizar a liberdade individual ao desenvolvimento econômico. A evolução dos movimentos sociais em Hong Kong a partir dos anos 2000 ilustra essa tendência: quanto mais a integração política e econômica entre Hong Kong e a China é reforçada, mais os cidadãos assumem a defesa das memórias e das identidades locais. De fato, o movimento de massas em Hong Kong, após 1997, é expressão dessas tensões. Desde 2002, toda mobilização esteve ligada à defesa da memória local de Hong Kong, de sua cultura e de sua identidade, sobretudo de sua herança colonial8. Como consequência, para a jovem geração à qual pertence Joshua Wong, esses valores se tornaram um elemento fundamental de sua politização. Segundo ele, sua sensibilidade política se desenvolveu ao calor de muitas mobilizações sociais pela autonomia econômica e cultural de Hong Kong. Nascido em 1996, em uma família cristã cujos pais pertenciam à classe média baixa, seu despertar político se deu durante o movimento contra a construção do Hong Kong Express, entre 2009 e 2010. «Quando eu tinha 14 anos, houve uma campanha em Hong Kong contra a construção de um trem de alta velocidade [que conectaria] com a China. Foi em 2009-2010, e me chamou a atenção. Eu lia as notícias a respeito e seguia os argumentos pela internet. Mas como observador, não como participante»9.

Lançado em 2009, o movimento contra o Hong Kong Express foi uma mobilização exemplar, que combinou os argumentos da identidade local de Hong Kong com a reivindicação de sua autonomia econômica. Na esteira desse movimento foi organizada uma mobilização ainda maior: o movimento contra o programa de educação moral e nacional. Dessa vez, Joshua Wong teve um papel de destaque. Ele explica assim o seu envolvimento:

O ponto decisivo para mim foi o anúncio, na primavera de 2011, de que seria introduzida, obrigatoriamente, a «educação moral e nacional» nos programas escolares ao longo dos dois anos seguintes. Em maio, fundei com alguns amigos uma organização, que chamamos rapidamente de Escolarismo, para lutar contra esse projeto. Começamos como amadores, distribuindo panfletos nas estações de trem. Mas as pessoas logo se mobilizaram, e a oposição se construiu. Foi a primeira vez na história de Hong Kong que os alunos secundaristas se engajavam ativamente na política. Nós nos opusemos ao novo programa porque constitui uma tentativa flagrante de doutrinamento: o projeto de curso saudava o pc como uma «organização progressista, desinteressada e unida». Mas os estudantes secundaristas não querem esse tipo de lavagem cerebral.10Graças à mobilização do Escolarismo, em 2012 mais de 90.000 pais e alunos do ensino médio protestaram contra esse projeto que promovia o nacionalismo chinês. Todas essas mobilizações demonstram o predomínio da identidade local na política contestatária de Hong Kong, bem como a forma em que ela se une à retórica ideológica da democracia liberal. A liberdade se torna o valor e a doutrina suprema para essa jovem geração.

A experiência de socialização política de Joshua Wong ilustra perfeitamente a vivida pela geração dos Guarda-Chuvas, nascida depois de 1998. Seja a luta contra a demolição do patrimônio local, contra a construção da via férrea ou contra a educação moral e nacional, todas se referem à preservação de uma autenticidade local e conduzem os jovens a exigirem o sufrágio universal.

Um processo similar ocorreu em Taiwan: os membros ativos do Movimento dos Girassóis se politizam, primeiro no Movimento dos Morangos Selvagens, de 2008, para protestar contra a visita de Chen Yunlin, um alto funcionário chinês. No ano seguinte, um número ainda maior de estudantes se mobiliza para protestar contra o monopólio de Wang Wang, empresa com importantes interesses econômicos na China, perto de Pequim, que ameaçava dominar o mundo midiático taiwanês. Esses movimentos de defesa da liberdade de expressão, que incitam também os jovens a considerarem o sistema democrático como o valor central de Taiwan, proporcionarão mais adiante a base popular para o Movimento dos Girassóis.

Em suma, ante o esgotamento da capacidade crítica dos antigos discursos anticomunistas, os jovens de Taiwan e Hong Kong escolheram enfatizar o valor universalista da liberdade política para defender uma identidade local autêntica. Se a crítica social custa a se estabelecer nessas sociedades devido à herança da Guerra Fria, a disseminação mundial das ideias de liberdade individual e do savoir-faire em matéria de resistência incitam esses jovens a recusarem o sistema político ou econômico promovido pelo Estado chinês através de críticas «artísticas», seguindo as categorias forjadas por Luc Boltanski para pensar as duas formas de crítica surgidas depois de Maio de 6811. Isso explica também a coexistência das dimensões legalista e utópica no seio desses dois movimentos de jovens12. Para estes últimos, que cresceram em uma sociedade dividida por duas visões da verdade histórica e política, a democracia é o único valor fiável e consensual. Assim, o fim da ocupação não é mais do que o início de uma nova geração de movimentos sociais e políticos.

Refazer a cidade13

Dois anos após as ocupações, iniciou-se um novo processo de identificação para exigir a inovação da cidade democrática. Nas duas sociedades, o discurso identitário que valoriza a subjetividade (zhutixing) local ganha terreno. Slogans como «O destino de Hong Kong hoje poderia se tornar o de Taiwan amanhã» (jinri xianggang, mingri taiwan) e «Vote Kuomintang, e Taiwan virará Hong Kong; vote Minjianlian, e Hong Kong virará a China continental» (piao tou guomindang, taiwan bian xianggang; piao tou minjia lian, xiangang bian dalu) mostram a amplitude da hostilidade comum contra os partidos políticos percebidos como representantes dos interesses de Pequim. Essa decepção em relação às forças políticas existentes cria assim um espaço livre para novos partidos que apresentam reivindicações identitárias.

Em Taiwan, pouco após o Movimento dos Girassóis, dois novos partidos políticos anunciaram sua fundação. Por um lado, o partido Novo Poder do Povo (shidai liliang dang) reuniu membros ativos do Movimento dos Girassóis e almeja reformar o sistema político a fim de que seja mais direto, transparente e participativo. Por outro, um grupo de intelectuais provenientes do movimento lgbt e feminista criaram o Partido Social-Democrata (shehui minzhu dang), cujo objetivo é introduzir o modelo escandinavo de Estado de Bem-estar em Taiwan. Além disso, os resultados da eleição presidencial de 16 de janeiro refletiram a ascensão dessas reivindicações identitárias. Ao jogar abertamente a carta antiChina e em colaboração com o pdp, o partido Novo Poder do Povo alcançou 6,1% dos votos, isto é, três assentos. Por sua vez, ao se concentrar nos temas clássicos da esquerda europeia, como a proteção ambiental, a abolição da pena de morte e a redistribuição, o Partido Social-Democrata obteve apenas 2,5% dos votos. Trata-se de um eleitorado principalmente urbano.

Em Hong Kong, o Movimento dos Guarda-Chuvas deu origem a uma dezena de pequenos partidos políticos que participaram nas eleições legislativas de setembro de 2016. Ao mesmo tempo em que todos promoviam os interesses e as identidades locais, cada partido tinha, no entanto, propostas com matizes diferentes no que se refere ao vínculo institucional entre Hong Kong e a China depois do ano de 204714. O resultado eleitoral do domingo 4 de setembro mostra igualmente a influência do Movimento dos Guarda-Chuvas. Por um lado, quatro jovens vindos do movimento foram eleitos legisladores: têm entre 23 e 33 anos e todos militam abertamente pela independência de Hong Kong. Por outro lado, dois candidatos provenientes dos movimentos sociais também obtiveram uma vitória inesperada15. Já Lee Cheuk-yan e Cyd Ho Sau-lan, dois representantes mais velhos do Partido Trabalhista e oriundos do movimento sindical, perderam seus assentos. É evidente que as reivindicações identitárias do Movimento dos Guarda-Chuvas são muito mais atrativas para os eleitores favoráveis à democratização.

A partir desta comparação, é inegável que, para os jovens de Taiwan e Hong Kong, os valores essenciais da democracia liberal – a liberdade de pensamento, o individualismo, o respeito às identidades – tornam-se as bases consensuais para a ação coletiva. Nota-se também que os desenvolvimentos políticos em Hong Kong e Taiwan se nutrem mutuamente. São considerados modelo e contra-modelo: quanto mais Pequim defende sua política, mais os jovens de Taiwan e Hong Kong se opõem afirmando os valores democráticos e a sua identidade local. Será que essas novas reivindicações conduzirão a mais enfrentamentos ou a uma deriva identitária? Permitirão uma evolução do movimento democrático na China? Em qualquer caso, o futuro da paz na região dependerá definitivamente das interações entre esses movimentos políticos em Taiwan e Hong Kong, e da maneira como a China reagirá a eles.

  • 1.

    «Our aim is to make the society more liberal, before it becomes more equal». J. Wong: «Scholarism on the March» em New Left Review No 92, 5-6/2015.

  • 2.

    Hsiao A-Chin: Return to Reality: Political and Cultural Change in 1970’s Taiwan and the Post-War Generation, Academic Sinica, Taipei, 2008.

  • 3.

    Tradicionalmente, o Kuomintang garantia às famílias waishengren (exiladas em Taiwan após 1949) certas vantagens, como o acesso privilegiado a cargos públicos. A democratização poderia pôr em risco esse tipo de privilégios. Isso não impede, no entanto, os intelectuais provenientes de famílias waishengren e benshengren (as famílias taiwanesas «de berço») de se unirem em sua aspiração de democratização.

  • 4.

    A Lei Básica da região administrativa especial de Hong Kong definiu seu status e sua relação com a China. Foi adotada em 1990 em Pequim e entrou em vigor em 1o de julho de 1997, após a transferência de soberania de Hong Kong. Instaura o modelo «Um país, dois sistemas».

  • 5.

    Michel Bonnin: «Le Parti communiste chinois et le 4 Juin, ou comment s’en sortir et comment s’en débarrasser» e Jean-Philippe Béja y Merle Goldman: «L’impact du massacre du 4 juin sur le mouvement démocratique» em Perspectives Chinoises No 2, 2009.

  • 6.

    V. especialmente o artigo «La dialectique entre civilisation et barbarie: dialoguer avec Long Ying-tai» de Chen Yingzhen, destacado escritor taiwanês de posição claramente comunista. «文明與野蠻的辯證-龍應台女士《 請用文明來說服我》 的商榷.» 海峽評論 183, 2006, pp. 29-35.

  • 7.

    O Acordo sobre o Comércio de Serviços é um tratado de livre comércio que permite aos capitais chineses investir no setor terciário em Taiwan. A oposição ao acordo foi o disparador do Movimento dos Girassóis em 2014.

  • 8.

    Em 2006, um grupo de intelectuais e estudantes protestou em defesa da preservação da arquitetura britânica, símbolo da memória local.

  • 9.

    J. Wong: op. cit.

  • 10.

    Ibid.

  • 11.

    Luc Boltanski e Eve Chiapello: Le nouvel esprit du capitalisme, Gallimard, Paris, 1999.

  • 12.

    Sebastian Veg: «Un mouvement étudiant à la fois légaliste et utopiste» em Le Monde, 10/12/2014.

  • 13.

    Permitimo-nos tomar emprestado o título da obra de Didier Lapeyronnie e Michel Kokoreff: Refaire la cité: l’avenir des banlieues, Seuil, Paris, 2013.

  • 14.

    Segundo a Lei Básica, o modelo de «Um país, dois sistemas», que rege as relações entre Hong Kong e China, deve se manter durante 50 anos. Portanto, um novo sistema deverá ser estabelecido em 2047, o que requererá a renegociação do marco jurídico e administrativo que define o status de Hong Kong.

  • 15.

    Trata-se de Chu Hoi-dick, um velho jornalista envolvido no movimento de 2006 que visava preservar o Star Ferry Pier (patrimônio histórico herdado da colonização britânica) e nos movimentos de agricultores dos Novos Territórios; e de Lau Siu Lai, socióloga da Universidade Politécnica de Hong Kong, que, além de sua participação no Movimento dos Guarda-Chuvas, participou ativamente da organização dos vendedores ambulantes.

Este artículo es copia fiel del publicado en la revista Nueva Sociedad , Junho 2017, ISSN: 0251-3552


Newsletter

Suscribase al newsletter