Tema central
NUSO Nº Agosto 2016

A construção da «boa sociedade» Um desenvolvimento com compromisso social-democrata

O modelo baseado no crescimento das manufaturas de exportação para os países emergentes economicamente mais dinâmicos parece encontrar um limite. Além disso, em muitos países, a «armadilha da transformação» – que distancia as classes médias e populares – impediu a formação de uma ampla coalizão social para a modernização e o desenvolvimento. Nesse contexto, a plataforma das capacidades de Amartya Sen atende às esperanças das classes emergentes e, ao mesmo tempo, oferece às classes médias serviços públicos de qualidade em troca de seus impostos, em um New Deal social-democrata que tende a criar uma «boa sociedade com plenas capacidades para todos».

A construção da «boa sociedade»  Um desenvolvimento com compromisso social-democrata

A corrida contra o tempo

Ao longo das últimas décadas, as economias dos «tigres asiáticos» deixaram de se basear em agriculturas atrasadas para se transformar em usinas industriais. Com algumas variações, seguiram a mesma fórmula mágica. A manufatura orientada à exportação e dirigida pelo investimento permitiu que Japão, Coreia do Sul e Taiwan se situassem na fronteira tecnológica, com Malásia, Tailândia e China seguindo seus passos. Hoje, Vietnã, Camboja, Indonésia, Filipinas, Myanmar, Bangladesh e Índia se propõem a repetir esse milagre de crescimento.Mas tudo indica que essa estratégia de resultados tão espetaculares das últimas décadas deixará de funcionar na atual conjuntura mundial de rápidas transformações. A manufatura já não é a máquina geradora de emprego que foi no passado. Os fabricantes necessitam de menos trabalhadores para obter o mesmo volume de produção e transferem suas fábricas a locais mais convenientes quando o valor dos salários começa a subir. A prolongada estagnação do Ocidente põe em dúvida a capacidade do mundo de absorver mais centros manufatureiros. Mais cedo ou mais tarde, o crescimento baseado em recursos se chocará com as fronteiras planetárias. Para colocar de forma simples, se gigantes como a China e a Índia alimentarem seu crescimento com recursos, os crescentes custos de matéria-prima poderão deixar esses países fora do mercado. Os custos manufatureiros de muitas economias emergentes já quase alcançaram o nível dos Estados Unidos, fenômeno que está deslocando o interesse dos investidores a fatores como qualidade, prazos de envio, cadeias de suprimentos e forma de governo local. E a automatização digital acelerará ainda mais essa tendência. Com cada vez menor vantagem comparativa de custos, as multinacionais já começaram a relocar a produção novamente nos velhos centros industriais. Todas essas circunstâncias indicam que a era dourada do crescimento manufatureiro orientado às exportações está chegando ao fim, tornando a industrialização uma gigantesca corrida contra o tempo.

Na China, o modelo de crescimento impulsionado por exportação e investimento está perdendo força. Pressionadas pela desaceleração dos mercados exportadores, as indústrias baseadas no uso intensivo de mão de obra já começaram a se transferir a países vizinhos onde os custos são menores. O governo se mostra decidido a apostar no gigantesco mercado interno e acelera deliberadamente os aumentos salariais para compensar a dependência das exportações. A meta da China é tomar as rédeas de seu destino tecnológico por meio da elevação enérgica das capacidades globais e da cadeia de valor. Contudo, a desaceleração do crescimento complicará a tarefa de satisfazer às crescentes aspirações das novas classes médias e às necessidades dos trabalhadores urbanos.

O Sudeste asiático escolheu um caminho de desenvolvimento promovido pelo investimento estrangeiro que o expõe ao risco da desindustrialização prematura: a montagem de produtos estrangeiros não levou à aprendizagem tecnológica. Na Tailândia, os crescentes custos de produção, a escassez de mão de obra qualificada e a instabilidade política afugentam os investidores. Mergulhada em conflitos étnico-religiosos e corrupção clientelista, a Malásia deposita suas esperanças no Tratado Transpacífico (tpp, na sigla em inglês) para atrair novos investimentos. Mas o investimento estrangeiro direto está longe de ser uma solução para a principal fragilidade das economias políticas extrativistas: a falta de inovação.

Cuidado com a armadilha da transformação

De uma perspectiva econômica, os países em vias de transformação necessitam passar gradualmente do crescimento intensivo em mão de obra para um modelo orientado pelo conhecimento. Para se destacar entre seus concorrentes de baixos salários e de economias inovadoras avançadas, os países de renda média precisam elevar suas capacidades globais e a cadeia de valor. No âmbito das políticas públicas, isso requer um forte investimento em infraestrutura e na capacitação dos trabalhadores.

Mas o desejável do ponto de vista econômico nem sempre é possível no plano político. O potencial da destruição criativa requer instituições inclusivas para atingir seu pleno desenvolvimento. No entanto, na economia política extrativista praticada pela maioria das sociedades em vias de transformação, a inovação não é algo conveniente para os setores minoritários que se beneficiam com o status quo.

A superação dessas dificuldades requer uma compreensão mais profunda dos processos de transformação. Do ponto de vista estrutural, as crises de transformação refletem a distância entre a ordem sociopolítica vigente e as novas realidades socioeconômicas. As décadas de industrialização não só tornaram mais complexas as economias, mas também começaram a fragmentar e pluralizar as sociedades. As diferenças de estilos de vida, interesses e identidades corroem as ordens simbólicas, especialmente nas culturas do leste e sudeste da Ásia, mais arraigadas em conformidade, unidade e disciplina. A tarefa de governar as complexas, dinâmicas e conflitantes sociedades em vias de transformação torna-se cada vez mais problemática para os sistemas políticos verticalistas inspirados em culturas ancestrais. A impossibilidade de responder às crescentes esperanças, necessidades e demandas das sociedades em rápido processo de mudança está corroendo a legitimidade da antiga ordem, e os conflitos entre os ganhadores e perdedores da transformação paralisam o avanço político e minam a capacidade de reforma.

Quem resiste à mudança e por quê? Depois da campanha contra o presidente filipino Joseph Estrada em 2000-2001, surgiram protestos em massa na Venezuela (2001-2003), Taiwan (2004 e 2006), Ucrânia (2004 e 2013), Quirguistão (2005), Tailândia (2006, 2008, 2013-2014), Bangladesh (2006-2007), Quênia (2007-2008), Bolívia (2008), Geórgia (2003 e 2007), Líbano (2011), Tunísia (2010-2011), Rússia (2012), Egito (2011 e 2012-2013), Turquia (2013), Brasil (2013 e 2014), Hong Kong (2014), Malásia (2015) e Equador (2015). Ainda que suas circunstâncias e resultados tenham variado, a maioria desses protestos (embora não todos) se desenvolveu de acordo com um manual muito semelhante.

Essas manifestações em massa se opuseram em sua maioria a governos eleitos pelo voto, o que indica que as eleições, apesar de todas as suas deficiências, passaram a ser o mecanismo central (se não o único) para conceder mandato aos governos. Os políticos mais inteligentes se valeram dessa nova via para chegar ao poder. São poucos os aspectos em comum entre líderes como o socialista bolivariano Hugo Chávez, o capitalista para um grupo restrito Thaksin Shinawa e o conservador islâmico Recep Tayyip Erdoğan, mas todos esses dirigentes compreenderam como obter vitórias eleitorais atendendo às esperanças e necessidades dos eleitores do interior. As maiorias populares, até então excluídas do acesso aos bens públicos, expressam sua gratidão com firme lealdade na urna eleitoral.

Uma vez no poder, os líderes populares costumam ater-se à lógica do sistema clientelista, recompensando partidários, protegendo clientes, favorecendo parentes e distribuindo recursos. Dessa forma, muitos se transformam rapidamente em «autocratas eleitos pelo voto» que ameaçam a oposição, silenciam a mídia e debilitam instituições democráticas. Ao mesmo tempo, para apontar à sua base eleitoral, esses governos começam a redistribuir moderadamente a riqueza e as oportunidades. Por essa razão, tais «autocratas eleitos pelo voto» são percebidos como uma ameaça por grande parte da elite e pelas classes médias estabelecidas. É interessante destacar que as acusações de corrupção, nepotismo, incompetência e instabilidade política não recaem somente sobre esses «autocratas», mas se estendem também ao sistema democrático como um todo. Imersos em um discurso de crise nacional e decadência moral, os militares, o Poder Judiciário e as burocracias escutam com atenção os chamados à imposição da ordem ou do autoritarismo para derrubar o governo ou suspender completamente o sistema democrático. Entretanto, alguns «autocratas eleitos pelo voto» conseguem conservar ou recuperar o poder com o apoio de suas bases populares. Esse círculo vicioso de crises e golpes de Estado está condenado a se repetir enquanto não for solucionado o conflito de transformação que lhe é subjacente.

Além disso, cabe mencionar que o resultado dessas lutas depende em grande medida do equilíbrio de poder específico entre os setores que se beneficiam com o status quo e aqueles que desejam modificá-lo. A aliança do status quo não se forma somente entre as velhas elites que brigam para defender sua posição e privilégios, mas também entre aqueles que temem que uma transformação rápida cause estragos no mundo em que habitam. Certos conceitos fundamentais, como a família, o trabalho e o papel de homens e mulheres passaram por uma mudança radical no transcurso de uma geração. Enquanto alguns aproveitam com entusiasmo as novas oportunidades, outros sentem ameaçada sua identidade diante da perda do mundo que conheciam, e o temor da decadência social confere a essas lutas sociais um tom paranoico e agressivo. Não é coincidência que, em tempos de mudança acelerada, surjam grupos fascistas que buscam bodes expiatórios da suposta decadência moral e recorrem a táticas violentas para restaurar uma imaginária era dourada do passado. Como advertiu com pessimismo Antonio Gramsci em sua cela na prisão, «a crise consiste precisamente no fato de que o velho está morrendo e o novo ainda não pode nascer. Nesse interregno, uma grande variedade de sintomas mórbidos aparecem».

Por que as classes médias estão tão irritadas? Nesse conflito de transformação em que as forças da mudança enfrentam as forças restauradoras, as classes médias desempenham um papel decisivo. Enquanto as classes médias estabelecidas se mantiverem fiéis às velhas elites, será possível conservar o status quo. Mas se as mesmas classes médias identificarem causas comuns com as classes emergentes, o resultado mais provável será a mudança. Mas o que motiva realmente as classes médias?

Em primeiro lugar, a fúria de pessoas em boa posição econômica evidencia que as classes médias estabelecidas não estão satisfeitas com o «tratamento» que lhe propuseram, e o abuso dos «autocratas eleitos pelo voto» inspira um sentimento de temor entre elas. Para manter sua base eleitoral, os governantes redistribuem riqueza e oportunidades. Por diferentes razões sociais e políticas, nem os ricos nem os pobres contribuem facilmente com a receita necessária para financiar esses programas, fazendo com que a carga tributária recaia principalmente sobre as classes médias. E na medida em que elas se sentem inseguras ou maltratadas, recusam-se a ser solidárias com outros segmentos da sociedade. Por outro lado, como não são satisfeitas as demandas de oportunidades iguais, a população majoritária segue questionando a velha ordem social. Esse prolongado conflito reforça ainda mais o temor das classes médias, que reagem protestando contra as demandas das «massas indignas». A disputa em torno da pergunta «solidariedade com quem?» permite distinguir, em linhas gerais, quais são os setores que se consideram plenos do sistema político e quais são percebidos como sujeitos subalternos e desprovidos desses mesmos direitos. Em muitas sociedades, a solidariedade só é prevista entre membros do mesmo grupo, classe, casta ou comunidade. E o problema central do conflito pela transformação é precisamente a inclusão dos antigos trabalhadores rurais no sistema político. Em outras palavras, a crise de transformação surge quando expira o velho contrato social, mas ainda não foram acordados os termos do novo.

Em segundo lugar, a centralidade que adquirem as denúncias de corrupção, nepotismo e populismo nos protestos das classes médias deixa entrever um mal-estar com o sistema clientelista. Enquanto as elites se beneficiam com o clientelismo e os pobres recorrem a ele por uma questão de sobrevivência física, a classe média o vê como uma prática injusta quando serve a outros setores, mas justa se ela for a beneficiária. Consequentemente, as recorrentes explosões contra a corrupção não refletem tanto uma convicção moral, mas uma profunda mudança na cultura contratual do capitalismo. Se os assuntos econômicos são regidos por vínculos contratuais entre iguais – perguntam muitos –, por que as mesmas pessoas têm escassa ou nula ingerência nos assuntos públicos? Nesse sentido, as demandas por prestação de contas, transparência, participação e receptividade são, na verdade, reivindicações pela modernização weberiana do Estado. As práticas clientelistas se reformulam conforme seu beneficiário: a premiação de partidários é demonizada sob o rótulo de «populismo»; o favorecimento de parentes é tachado de «nepotismo»; a proteção de clientes é destacada como «fisiologismo»; e a distribuição de recursos é denunciada como «corrupção». A corrupção, particularmente, é a nova forma de codificar o abuso de poder por parte de elites que não prestam contas. Em poucas palavras, as classes médias temem ser despojadas por políticos corruptos que roubam seu dinheiro para comprar os votos de pobres indignos com projetos populistas. Essencialmente, os protestos das classes médias apontam, portanto, contra o sistema clientelista como principal obstáculo para a modernização.É por essa razão que os discursos sobre o bom governo encontram tanto eco nas classes médias. A teoria clássica da modernização também prevê que as classes médias seriam o fator de impulsão primordial da democratização. Se é assim, por que as classes médias de Hong Kong ou Kuala Lumpur exigem mais democracia, enquanto suas homólogas de Bangkok e Cairo marcham contra a democracia eleitoral?

Aqui, é preciso reiterar que a fúria das classes médias não emana de um determinado interesse de classe a-histórico ou objetivo, mas é alimentada pela forma de enunciar no discurso o conflito da transformação. Embora seja certo que as economias políticas extrativistas excluem sistematicamente as maiorias populares, os conflitos da transformação não são simples «lutas de classes» entre ricos e pobres. Tanto a defesa do status quo como a aliança pela mudança atravessam todos os estratos e setores sociais. O equilíbrio de poder entre aqueles que buscam manter o status quo e quem pretende modernizar a ordem sociopolítica depende da capacidade demonstrada por cada um desses segmentos de cooptar outros grupos sociais e incluí-los em sua luta. Isso sugere que o resultado do conflito pela transformação não será um mero reflexo das mudanças estruturais, mas determinado também pela forma de construir o conflito no âmbito do discurso. Os conflitos da transformação não costumam ser enunciados em termos socioeconômicos; geralmente, eles são construídos como conflitos de identidade entre diferentes raças, religiões, gêneros ou etnias. Dessa forma, as elites tradicionais – contradizendo as expectativas do determinismo histórico – podem manter o status quo diante das investidas da globalização capitalista e da emancipação social caso consigam cooptar as classes médias enunciando o conflito como uma questão de essencialismo cultural.

Qual é a armadilha da transformação? Na corrida contra o tempo, as economias emergentes necessitam fazer frente aos ventos globais adversos passando de um crescimento intensivo em mão de obra a outro baseado na inovação. Essa iniciativa se depara com o enorme desafio apresentado pela interconexão das dificuldades econômicas, sociais, culturais e políticas. Em uma conjuntura dominada por conflitos sociais e políticos, não é nada fácil implementar politicamente as estratégias concebidas para elevar a economia em matéria de cadeia de valor e capacidades globais.

O avanço do crescimento impulsionado pela inovação requer uma força de trabalho altamente qualificada. Para financiar esse investimento necessário em recursos humanos, é preciso aumentar significativamente a receita fiscal. Devido a razões políticas e sociais, grande parte da carga tributária costuma recair sobre as classes médias, que, por sua vez, se recusam a bancar os custos por se sentirem inseguras e prejudicadas. Na ausência de um contrato social que confira a todos os membros da sociedade o mesmo direito à solidariedade, é provável que as políticas dirigidas para melhorias de capacidades e do estado físico da força de trabalho encontrem resistências. As políticas de redistribuição que favorecem os mais pobres apresentam riscos ainda maiores de sofrer a oposição das classes médias. No entanto, a falta de investimento em capacidades humanas mina a capacidade de passar do desenvolvimento intensivo em mão de obra para outro promovido pelo conhecimento. O aumento da desigualdade, as intermitências do motor econômico e a propagação do mal-estar podem conduzir, no longo prazo, à estagnação e à decadência da economia.

Em resumo, a armadilha da transformação não é um tipo de lei econômica que causa desaceleração sistemática quando um país alcança o nível de renda média, mas sim a incapacidade de solucionar as contradições políticas, sociais e econômicas que caracterizam as sociedades em vias de transformação. Nessas sociedades, torna-se muito mais difícil estimular o desenvolvimento por meio de projeto institucional e social. Em uma sociedade diferenciada e mobilizada, é mais provável que políticas impostas de cima encontrem a resistência dos setores afetados. A inovação não pode ser imposta, pois ela só se desenvolve em ambientes mais abertos e livres. Quando a desaceleração do crescimento oferece um obstáculo à geração de uma «maré alta que levante todos os barcos», torna-se ainda mais complicado o trabalho de construir consenso para o desenvolvimento.

Construir a boa sociedade com plenas capacidades para todos

Evitar a armadilha da transformação não é somente uma tarefa econômica, mas também um importante desafio político. As perturbações causadas pela mudança favorecem o aproveitamento de temores culturais e sociais com o propósito de sufocar as inovações de ruptura. Construir uma força de trabalho apta para o crescimento impulsionado pela inovação é uma missão árdua na ausência de um contrato social que inclua a solidariedade para com milhões de pessoas que, antes, atuavam como trabalhadores rurais. De uma perspectiva política, elevar a cadeia de valor significa construir consenso social para a destruição criativa e também para a redistribuição, isto é, estabelecer bases sociais e políticas estáveis para conquistar um crescimento elevado e sustentável.

Por que é necessário um compromisso social para o desenvolvimento? É imprescindível negociar um compromisso social entre todas as classes de modo a gerar a estabilidade social e política exigida para a modernização da economia e do Estado. Somente um compromisso social inclusivo é capaz de tranquilizar as classes estabelecidas e integrar no sistema político milhões de pessoas antes excluídas, garantindo-lhes a condição de cidadãos com direitos e oportunidades iguais.

Do ponto de vista histórico, foi isso que ocorreu com o New Deal social-democrata posto em prática para superar a Grande Depressão. Essencialmente, a promessa da social-democracia é a conquista da prosperidade para todos por meio da geração de «uma maré alta que levante todos os barcos». Em troca da igualdade de oportunidades para participar plenamente na vida política, social e cultural, a população majoritária aceitou o mecanismo de freios e contrapesos para o governo das maiorias. Em troca da paz social, da proteção mediante o império da lei, do bom governo e de serviços públicos de qualidade, as classes médias acataram as políticas redistributivas. Por último, em troca da paz social e da estabilidade política, as elites dedicaram-se a solucionar a crise de justiça social criando oportunidades para todos. Esse compromisso social-democrata ajudou a restaurar a paz social após um século de conflitos, estabelecendo assim as bases sociais para a prosperidade do pós-guerra.

Cabe mencionar que não podemos nos espelhar no New Deal do passado para estabelecer os compromissos de um presente regido por outras condições políticas, sociais e culturais. Mas é importante considerá-lo como demonstração de que um compromisso social deve ser algo que vá além do mínimo denominador comum entre interesses opostos.

Necessitamos hoje um modelo de desenvolvimento capaz de proporcionar a paz social e a estabilidade exigidas pelo vertiginoso processo da transformação. O elevado crescimento do pib é uma condição necessária, mas não suficiente, para a criação de oportunidades para todos. Um modelo de desenvolvimento sustentável deve combinar crescimento com equidade, inclusão com inovação e preservação com mudança disruptiva. O projeto «Economia do amanhã», promovido pela Fundação Friedrich Ebert (fes) e que reúne mais de 200 pensadores de economias asiáticas emergentes, propôs um modelo desse tipo para conquistar um desenvolvimento dinâmico socialmente justo, elástico e ecológico. Baseado no foco das capacidades delineado por Amartya Sen, o modelo de «Economia do amanhã» busca gerar um crescimento impulsionado pela inovação por meio do desenvolvimento de condições que permitam realizar plenamente o potencial criativo, empreendedor e cognitivo de todos os cidadãos.

Como construir um projeto político transformador. No contexto das crescentes aspirações, impaciências e ansiedades suscitadas pela corrida contra o tempo, o relato do «crescimento elevado em primeiro lugar» aumenta sua incidência no discurso político. As posturas que se opõem ao crescimento acabam marginalizadas. As agendas dos direitos à terra e ao trabalho, da proteção ambiental e das mudanças climáticas são reformuladas para serem consideradas «luxos a que não podemos nos permitir». Nessa paisagem política, torna-se difícil comunicar as agendas progressistas.

Aqueles que desejam modernizar a ordem econômica e social deveriam adotar uma estratégia dialética. A estratégia progressista precisa olhar para além dos benefícios transacionais, em direção ao horizonte de uma transformação sustentável. Portanto, um projeto de transformação bem-sucedido estabelece as bases sociais para o desenvolvimento sustentável com um compromisso social inclusivo.

Nem todos estarão dispostos a aceitar esse compromisso social para o desenvolvimento. Alguns resistem à mudança em defesa de sua condição e privilégios; outros o fazem porque sentem que sua identidade corre perigo. Dessa forma, a mudança do paradigma de desenvolvimento será o resultado da luta entre aqueles que buscam manter o status quo e os que desejam modificá-lo. Consequentemente, as sociedades só poderão evitar a armadilha da transformação se prevalecerem aqueles que batalham pela inovação econômica, política, social e cultural. Na economia política da mudança, isso significa que os agentes da transformação devem unir suas forças em uma ampla coalizão social.

Mas construir coalizões sociais amplas sobre a base da classe social, da identidade ou do interesse é uma tarefa muito difícil. Em seu aqui e agora, os grupos sociais têm diferentes interesses e prioridades. O mínimo denominador comum entre esses interesses é muito tênue para servir de plataforma para uma ampla coalizão social pela mudança. Por isso, não é nada fácil encontrar uma escala comum que permita unir as diversas lutas progressistas isoladas em uma ampla luta social pela mudança.

Como é difícil formar coalizões baseadas em interesses comuns, a construção de uma ampla coalizão social pela mudança poderia começar pelo estabelecimento de uma aliança discursiva. Em lugar de negociar um compromisso transacional entre interesses distintos no aqui e agora, conviria delinear um paradigma alternativo no qual esses interesses possam convergir: para expandir a imaginação do possível, é preciso vislumbrar uma utopia prática. Por sua vez, a recriação do futuro imaginado mudará as interpretações da situação presente. A modificação das expectativas no que tange ao rumo dos acontecimentos levará os atores a recalcularem o risco e as oportunidades de suas opções e, consequentemente, redefinirem seus interesses. Em outras palavras, a mudança de paradigma permite transcender as diferenças de interesses.

Depois do «fim da história», os progressistas parecem ter se esquecido de empregar esse método utópico. Para insuflar esperanças naqueles que hoje lutam pela mudança, urge preencher o vazio do pensamento único do «There is no alternative»1 com a visão de um amanhã melhor. É por isso que um projeto transformador não pode se reduzir a um mero conjunto de políticas; ele deve ser uma utopia prática que expanda a imaginação para além das limitações impostas pela política diária.

Para cumprir as funções de ampliar o horizonte imaginário (A audácia da esperança), entusiasmar os seguidores («Yes, we can») e estabelecer o alvo que permita vislumbrar uma aliança social mais ampla («coalizão arco-íris»), a utopia prática não deve ser uma construção arbitrária, mas sim um projeto transformador estrategicamente concebido. Para que os potenciais seguidores se mobilizem de modo a unirem suas forças, a promessa central dessa utopia prática deve ser digna de crédito o bastante para se constituir em «mudança crível», mas também deve estar dotada de suficiente capacidade transformadora para que os atores possam ver além de suas diferenças atuais. A fim de servir como plataforma para uma ampla aliança discursiva, a visão utópica («Nosso sonho») deve ocupar o centro exato do discurso. Enquadrado por valores compartilhados e experiências coletivas, o projeto político transformador deve conjugar a boa política com a boa economia e a atuação moralmente correta.

Para construir um relato transformador, primeiramente, é preciso analisar as comunidades discursivas existentes em busca de elementos comuns entre suas expectativas e promessas básicas. Em segundo lugar, é necessário formular uma promessa central que permita vislumbrar a convergência dos interesses percebidos em um futuro imaginado. Em terceiro lugar, devem-se identificar projetos de mudança cujo potencial de transformação da situação presente seja digno de crédito. O quarto passo é a enunciação dos projetos transformadores em uma linguagem capaz de ressoar entre as diversas comunidades discursivas, com o propósito de construir pontes entre elas. E o último passo é a mudança do paradigma que descreve o que ocorre agora e o que é necessário fazer.

A modificação dos cálculos de risco e oportunidade no âmbito do novo paradigma induzirá os atores a mudar de comportamento e, como resultado, reformular as estruturas de oportunidade para outros atores. A redefinição de interesses permitirá a cooperação entre atores que antes eram antagonistas. Sobre a base do novo cálculo de interesses e com o estímulo da cooperação bem-sucedida em projetos conjuntos, a aliança discursiva pode abrir as portas para uma ampla coalizão social pela mudança.

A boa sociedade com plenas capacidades para todos. Qual é a visão de um amanhã melhor capaz de funcionar como promessa central de um projeto transformador? A boa sociedade com plenas capacidades para todos oferece uma visão normativa desse calibre. Ao mesmo tempo, o relato das capacidades pode servir de plataforma para uma ampla aliança discursiva em nome do desenvolvimento. O relato das capacidades promete evitar a armadilha da transformação para que seja possível avançar rumo ao nível seguinte de desenvolvimento. A promessa de abrir as portas para o crescimento impulsionado pela inovação é favorável à comunidade discursiva do «crescimento elevado em primeiro lugar». O foco no empoderamento se relaciona com as comunidades discursivas da equidade, da inclusão e da justiça. Além disso, o «desenvolvimento como liberdade» se vincula às comunidades discursivas da emancipação e da liberdade. A conjunção das comunidades discursivas do crescimento, da justiça, da emancipação e da estabilidade oferece as condições propícias para que surja uma aliança discursiva da modernização.

Tal aliança discursiva transformadora pode mover o paradigma do desenvolvimento a partir do crescimento por aumento do pib rumo ao elevado crescimento sustentável. No contexto descrito, os progressistas serão capazes de demonstrar claramente que o melhor caminho em direção ao elevado crescimento sustentável é a formação de uma base social estável com um compromisso social-democrata.

A construção do compromisso social-democrata em torno da plataforma das capacidades estabelece as bases para a construção de uma ampla coalizão social pela mudança a partir da aliança discursiva pelo desenvolvimento. Na medida em que conjuga as lutas pela justiça distributiva com a militância pela justiça de reconhecimento, a plataforma das capacidades oferece as condições necessárias para unir as diferentes «tribos» progressistas. Ao oferecer oportunidades para que todos possam desenvolver plenamente seu potencial, o enfoque das capacidades combina a meta privada da inovação econômica com a preocupação pública pela estabilidade política. A plataforma das capacidades atende às esperanças e necessidades das classes emergentes e, ao mesmo tempo, oferece às classes médias serviços públicos de qualidade em troca de seus impostos. Ao combinar o ideal meritocrático das classes médias com o anseio das maiorias por oportunidades iguais, o enfoque das capacidades abre as portas para o estabelecimento de um compromisso social entre as elites, as classes médias e as maiorias populares.

Esse compromisso social em torno das capacidades permite fundamentar uma ampla coalizão social pela modernização e o desenvolvimento. A «boa sociedade com plenas capacidades para todos» pode ser a base ideológica para o projeto progressista em busca da Grande Transformação do presente.

Referências bibliográficas

Saxer, Marc: «The Economy of Tomorrow: How to Produce Socially Just, Resilient, and Green Dynamic Growth for a Good Society», Friedrich-Ebert-Stiftung, Bangkok, 2014, disponível em http://library.fes.de/index_en.htm. Sen, Amartya: Desarrollo y libertad, Planeta, Buenos Aires, 2000. [Há uma edição em português: Desenvolvimento com liberdade, Companhia das Letras, São Paulo, 2000].

  • 1.

    Slogan utilizado por Margaret Thatcher para impor o liberalismo econômico como única alternativa para o desenvolvimento das sociedades [n. do e.].

Este artículo es copia fiel del publicado en la revista Nueva Sociedad , Agosto 2016, ISSN: 0251-3552


Newsletter

Suscribase al newsletter