Um argumento contra a desigualdade
Entrevista a Thomas Piketty
Nueva Sociedad Dezembro 2020
Ele propõe um pagamento estatal a todos os cidadãos e a alteração da estrutura da riqueza para mudar o poder de negociação dos atores sociais, além de discutir as consequências políticas da desigualdade. Thomas Piketty é diretor de pesquisa na École des Hautes Études en Sciences Sociales, professor na Paris School of Economics e codiretor da World Inequality Database. É autor dos livros O capital no século XXI (2013) e Capital e ideologia (2019). Nesta entrevista, ele expõe os pontos mais relevantes de um possível programa para que as esquerdas saiam do atual atoleiro histórico.
Um dos principais argumentos do seu livro1 é que a «desigualdade é uma ideologia». A desigualdade é baseada em decisões políticas, não apenas um processo natural. Como você chegou a essa conclusão?
Em meu livro, a palavra «ideologia» não tem uma conotação negativa. Todas as sociedades precisam de ideologia para justificar seu nível de desigualdade ou uma determinada visão do que é positivo para elas. Em nenhuma sociedade da história, os ricos dizem «somos ricos, vocês são pobres, e pronto». Isso não funcionaria. A sociedade entraria em colapso imediatamente. Os grupos dominantes precisam sempre surgir com uma narrativa mais sofisticada que diga «talvez sejamos mais ricos que vocês, mas isso é bom para a organização da sociedade como um todo, pois nós lhes proporcionamos ordem e produtividade», «nós lhes oferecemos orientação espiritual», no caso do clero do Antigo Regime, ou «proporcionamos mais inovação, produtividade e crescimento». Obviamente, nem sempre essas afirmações são totalmente convincentes. Algumas vezes, elas são autorreferenciadas. Há um certo grau de hipocrisia, mas pelo menos esse tipo de discurso precisa apresentar alguma plausibilidade. Se for claramente falso, ele não funcionará.No livro, eu estudo a história do que denomino regimes de desigualdade, que são sistemas de justificativa de diferentes níveis de desigualdade. O que mostro é que há de fato alguma aprendizagem de justiça. Há alguma redução da desigualdade no longo prazo. Aprendemos como organizar a igualdade, por exemplo, no igual acesso à educação e em um sistema tributário mais progressivo.Mas esse progresso e o conflito ideológico permanecerão. Na prática, as mudanças históricas surgem a partir desse conflito de ideias e de ideologias, não apenas do conflito de classes. Havia essa antiga visão marxista de que a posição de classe de uma pessoa determinava inteiramente sua visão de mundo, sua ideologia e o sistema econômico que ela deseja. A realidade é muito mais complexa, pois cada posição de classe possui diferentes formas de organizar o sistema de relações de propriedade, regime educacional e regime fiscal. Existe um certo grau de autonomia de evolução ideológica e de ideias.
Apesar de tudo isso, nas democracias as pessoas decidem coletivamente, por meio do voto, viver em tais sociedades desiguais. Por quê?
Bem… Primeiro, é difícil determinar o nível certo de igualdade ou desigualdade. A desigualdade nem sempre é ruim. As pessoas podem ter diferentes objetivos de vida. Algumas dão muito valor ao sucesso monetário, enquanto outras valorizam outros objetivos. Portanto, é complicado encontrar o nível certo de igualdade.Quando afirmo que os determinantes de desigualdade são ideológicos e políticos, não quero dizer que devam desaparecer e que devamos atingir a igualdade amanhã. Acredito que encontrar o equilíbrio certo entre instituições é uma tarefa bastante complicada para todas as sociedades, e – reitero – a desigualdade vem se reduzindo no longo prazo. Acho que devemos ter acesso mais igualitário à propriedade e à educação, e podemos seguir nessa direção. Aprendemos com a história que esse não é um processo linear. Há um progresso rumo à igualdade ao longo do tempo, e também foi isso que criou mais prosperidade econômica no século xx. Mas também ocorreram alguns reveses. Por exemplo, o colapso do comunismo criou desilusões a respeito da possibilidade de um sistema econômico diferente do capitalismo, e isso explica muito o aumento da desigualdade desde o final da década de 1980.Passados 30 anos, no entanto, começamos a perceber hoje que podemos ter ido longe demais na outra direção. Portanto, estamos começando a repensar como mudar o sistema econômico. O novo desafio surgido com as mudanças climáticas e a crise ambiental também ajuda a atrair mais atenção para a mudança do sistema econômico. É um processo complexo por meio do qual as sociedades estão tentando aprender com sua experiência. Às vezes, elas se esquecem do passado mais distante, reagem exageradamente e vão longe demais em uma determinada direção. Mas, ao considerar a experiência histórica – e esse é o objetivo desse livro –, acho que é possível compreender melhor as lições e experiências positivas do passado.
Você diz que a desigualdade leva ao nacionalismo e ao populismo. Na Alemanha e em outros países, partidos de direita estão de fato crescendo. Por que a direita tende a ter mais sucesso que a esquerda?
A esquerda não se esforçou o suficiente para propor alternativas. Após a queda do comunismo, ela passou por um longo período de desilusão e desânimo com a proposição de perspectivas de mudar o sistema econômico. O Partido Socialista da França e o Partido Social-Democrata da Alemanha não se esforçaram como deveriam para mudar as regras do jogo na Europa.Em um momento, eles aceitaram a ideia de que o livre fluxo de capitais, o livre fluxo de bens e serviços e a concorrência de mercado entre países seriam suficientes para levar prosperidade e benefícios a todos. Na verdade, porém, o que vemos é que isso tem beneficiado principalmente os grupos com elevado capital humano e financeiro, e os grupos econômicos com maior mobilidade. Os grupos das camadas inferior e média se sentiram abandonados.Então, surgiram partidos nacionalistas e xenofóbicos com uma mensagem muito simples: «vamos proteger vocês com a fronteira do Estadonação», «vamos expulsar os imigrantes», «vamos proteger sua identidade como europeus brancos», e assim por diante. É claro que isso não vai dar certo no final. Isso não vai reduzir a desigualdade nem solucionar o problema do aquecimento global. Mas, como não há nenhum discurso alternativo, grande parte do eleitorado passou a optar por esses partidos.Vale lembrar que uma parcela ainda maior do eleitorado decidiu não sair de casa. Eles simplesmente não votam, e não devemos nos esquecer disso. Se os grupos socioeconômicos inferiores se entusiasmassem tanto com Le Pen ou a Alternativa para a Alemanha, 90% deles votariam, mas não é isso que está acontecendo. Vemos um índice de participação muito baixo, especialmente entre os grupos socioeconômicos inferiores. Isso sugere que eles estão esperando uma plataforma política ou uma proposta concreta que possa realmente mudar suas vidas.
Você propõe um pagamento estatal único (a «herança para todos») de 120.000 euros para todos os cidadãos a partir dos 25 anos de idade. Qual é o objetivo dessa proposta?
Primeiro, esse sistema de «herança para todos» ocorreria após um sistema de acesso universal a bens e serviços públicos fundamentais, o que inclui educação, saúde, previdência e renda básica. O objetivo não é substituir nada disso, mas servir como um acréscimo a todas essas outras ferramentas. Por que isso é importante?Se alguém tem boa formação educacional, bom acesso à saúde, um bom emprego e um bom salário, mas precisa gastar a metade do que ganha para garantir a renda dos filhos dos proprietários de imóveis que recebem aluguéis a vida toda, acho que temos um problema. A desigualdade de propriedade cria uma enorme desigualdade de oportunidades de vida. Alguns precisam pagar aluguel pela vida toda. Outros recebem aluguel pela vida toda. Alguns podem criar empresas ou herdar uma empresa da família. Outros nunca poderão criar empresas, pois não contam com nenhum capital para começar. Sobretudo, é importante perceber que a distribuição de riqueza permaneceu extremamente concentrada em nossa sociedade.A metade mais pobre da Alemanha possui menos de 3% da riqueza total, e a desigualdade de fato aumentou desde a reunificação do país. Isso é o melhor que podemos fazer? Se não for, o que propomos para mudar isso? Apenas esperar o crescimento econômico e o acesso à educação sem fazer nada não é uma alternativa. Isso é o que já estamos fazendo há um século, e a metade mais pobre da população continua sem nada.Para realmente mudar a estrutura da riqueza na sociedade, é preciso mudar a estrutura da negociação de poder na sociedade, pois alguém sem nenhuma riqueza fica em uma posição de negociação muito frágil. Quando precisa encontrar um emprego para pagar o aluguel e as contas todo mês, a pessoa aceita o que lhe oferecem.Faz uma grande diferença ter 100.000 ou 200.000 euros em vez de 0 ou 10.000 euros. Aqueles que possuem milhões talvez não percebam isso, mas para quem não tem nada ou – às vezes – apenas dívidas para pagar, isso faz uma enorme diferença.
Na França, seu país natal, o imposto sobre o carbono gerou o protesto dos «coletes amarelos». Qual foi o erro de cálculo político nesse caso?
Para tornar a tributação do carbono aceitável, ela precisa ser acompanhada de justiça tributária e justiça fiscal. Na França, o imposto sobre o carbono era bem aceito e aumentava a cada ano. O problema é que o governo Macron usou a receita desse imposto para fazer um enorme corte na tributação da parcela 1% mais rica da sociedade francesa ao suprimir o imposto sobre a riqueza e a tributação progressiva sobre os ganhos do capital, juros e dividendos.Foi isso que deixou as pessoas enfurecidas, pois lhes disseram que o imposto tinha como objetivo beneficiar o clima, mas serviu de fato apenas para reduzir a tributação das pessoas que financiaram a campanha política do presidente. É assim que se destrói a ideia da tributação sobre o carbono. E é preciso ter muita cautela com a Alemanha, porque pode haver muitos sentimentos negativos por lá também, especialmente entre os grupos socioeconômicos inferiores. Para funcionar, um imposto sobre o carbono deve incluir custos sociais e precisa ser aceito por todos da sociedade.
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Nikolaos Gavalakis: é diretor do escritório regional «Diálogo Europa Oriental» da Friedrich-Ebert-Stiftung (fes) em Kiev, Ucrânia. Anteriormente, trabalhou no escritório da fes em Atenas, Grécia, e no departamento da Europa Ocidental e América do Norte da sede, em Berlim.Palavras-chave: desigualdade, ideologia, justiça, riqueza, tributação.Nota: a versão original deste artigo em inglês foi publicada em International Politics and Society, 31/3/2020, www.ips-journal.eu/interviews/article/show/inheritance-for-all-4207/. Tradução de Luiz Barucke.. T. Piketty: Capital et idéologie, Seuil, Paris, 2019. [Há uma edição em português: Capital e ideologia, Intrínseca, Rio de Janeiro, 2020].