Tribuna regional e global
NUSO Nº Julho 2018

A reforma da tributação corporativa internacional A perspectiva da ICRICT

A reforma da tributação corporativa internacional  A perspectiva da ICRICT

Nota: a versão original deste artigo em espanhol foi publicada em Nueva Sociedad No 272, 11-12/2017, disponível em www.nuso.org. Tradução de Luiz Barucke.

Este artigo resume as propostas desenvolvidas pela Comissão Independente pela Reforma da Taxação Corporativa Internacional (icrict, na sigla em inglês) desde seu primeiro encontro, ocorrido em março de 20151. A comissão tem o objetivo de fomentar o debate sobre a reforma da tributação empresarial em escala internacional e promover uma institucionalidade apropriada para isso. Ela foi fundada por uma ampla coalizão da sociedade civil2 e tem contado com membros de todos os continentes e diversas origens3.

Resumiremos a seguir os problemas que caracterizam o sistema atual, o que servirá de base para apresentarmos nas duas seções seguintes as propostas que devem ser adotadas. Finalmente, consideraremos na última parte do artigo os problemas e propostas associados à institucionalidade internacional.

A necessidade de reformar a tributação corporativa internacional

A globalização tornou obsoleto o regime internacional de tributação das empresas. O esquema atual foi elaborado pelos países desenvolvidos no início do século xx, quando suas empresas, que dominavam o comércio mundial –então fundamentalmente de bens– eram sociedades integradas que comercializavam com empresas radicadas em outros países ou colônias. Mas hoje, quase a metade do comércio mundial ocorre entre matrizes e filiais de empresas transnacionais, o setor de serviços representa três quintos do pib mundial, e os países em desenvolvimento produzem dois quintos desse produto, sendo suas grandes empresas também transnacionais.

Contrariamente aos altos níveis de integração internacional alcançados, o sistema tributário internacional das empresas se baseia no critério de entidades jurídicas independentes (separate entity principle), segundo o qual cada empresa de um grupo transnacional – seja matriz ou filial – é tratada como uma entidade jurídica independente no momento da tributação. Isso gera grandes problemas contábeis e tributários, já que, quando duas empresas de um mesmo grupo realizam transações entre si, o preço pelo qual se avalia seu intercâmbio, conhecido como «preço de transferência», pode ser muito diferente daquele que caracteriza uma transação entre empresas não relacionadas, este conhecido como preço de plena concorrência (arm’s length price, alp).

O princípio segundo o qual os preços de transferência devem ser similares aos de plena concorrência tem sido incluído nos modelos de convênio tributário desenvolvidos pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (ocde) e pela Organização das Nações Unidas (onu), além de amplamente utilizado nos acordos entre governos. No entanto, é uma tarefa árdua ou até mesmo impossível garantir seu cumprimento, inclusive quando se comercializam bens, já que é difícil diferenciar as várias qualidades de produtos similares. Os problemas também aumentaram devido à crescente proporção de ativos intangíveis das empresas, que incluem sua propriedade intelectual – patentes, royalties, nomes comerciais, marcas registradas –, seus métodos de gestão e redes comerciais. Quando as transações no interior de um mesmo grupo envolvem esses ativos intangíveis, o princípio de preços de plena concorrência é totalmente inaplicável, já que tais transações não são comparáveis com outras que ocorrem no mercado. Essa estrutura cria enormes oportunidades para abusos tributários por meio de declarações de lucro das empresas ou receita por uso de marcas ou patentes em filiais localizadas em paraísos fiscais ou países com baixos níveis de tributação. A isso se somam os empréstimos entre matrizes e filiais, bem como a forma como são distribuídos os custos fixos de administração do grupo transnacional. Quanto mais complexa é a rede das empresas vinculadas a um mesmo grupo, mais fácil é evitar o pagamento de impostos. Além disso, para as autoridades tributárias, mesmo as mais eficientes, é difícil questionar tais transações e transferências. Consequentemente, o foco atual das entidades jurídicas separadas e de seu sistema de transferência de preços não condiz com uma economia globalizada e baseada no conhecimento.

As práticas tributárias abusivas de muitas transnacionais têm provocado a indignação da opinião pública e levado vários governos e parlamentos a investigarem muitas das corporações mais emblemáticas do mundo. Essas investigações estão revelando a agressiva engenharia fiscal das grandes transnacionais e também a concorrência tributária realizada pelos países na intenção de atrair investimentos. Além disso, em muitos casos, os benefícios tributários de que gozam as transnacionais – «férias tributárias» (tax holiday), zonas francas, acordos de investimento ou a aceitação de estruturas complexas de propriedade empresarial – têm sido o resultado de seu lobby ou da concorrência entre governos para atraí-las.

O símbolo dessa concorrência tributária é o clássico «paraíso fiscal», que pode oferecer taxas baixas ou nulas, uma ampla rede de zonas econômicas especiais com generosas isenções sobre impostos diretos, além de diversas vantagens tributárias. Esses benefícios são acompanhados de segredo para proteger os proprietários e impedir que autoridades financeiras e regulatórias de outros países possam verificar a situação patrimonial ou outros aspectos das empresas4.

Os vazamentos dos «Panamá Papers», «Bahamas Leaks» e, mais recentemente, «Paradise Papers» revelaram o alcance global dessas redes, habilitadas por uma cadeia de bancos e firmas de contadores e assessores jurídicos. Quando combinado com isenções especiais, o segredo tributário atrai e facilita a lavagem de dinheiro e, consequentemente, permite uma série de atividades ilícitas, como ilustraram também os «Panamá Papers». Além disso, conforme revelaram os vazamentos de Luxemburgo e os debates europeus sobre os benefícios tributários concedidos pela Irlanda, as autoridades tributárias do país de destino podem adotar normas que facilitem os lucros e estruturas empresariais sob um manto de sigilo. A grande ironia é que esses centros offshore só existem porque são tolerados pelos principais países desenvolvidos ou até mesmo criados por eles5.

Todos os países cobram imposto sobre o rendimento das sociedades, em grande medida como mecanismo para taxar lucros que são difíceis de capturar em nível individual, já que muitos acionistas residem no exterior ou têm suas propriedades registradas em fideicomisso ou centros offshore; portanto, esse tipo de imposto desempenha um importante papel na redução da desigualdade. Mas a combinação de políticas tributárias conservadoras, a crescente mobilidade do capital e a concorrência entre países para atrair investimentos (e reter os investimentos de suas próprias empresas) tem levado à redução das taxas e a diversos benefícios associados a esse tributo.6

Segundo dados do Banco Mundial, a receita obtida com imposto de renda das sociedades representa cerca de 8% da arrecadação tributária nos países desenvolvidos e 16% nos países em desenvolvimento, o que também faz com que esse tributo seja particularmente importante para o mundo em desenvolvimento7. Contudo, desde a década de 1980, as taxas legais desse imposto vêm caindo de um nível típico de 45% para 25% a 30%8. Além disso, como resultado das amplas isenções concedidas, as taxas efetivas são muito inferiores às legais. Calcula-se que, mundialmente, a carga média do imposto de renda das sociedades aproxime-se de 14% dos lucros declarados9. As empresas transnacionais pagam uma taxa efetiva ainda menor, já que registram grande parte de seus lucros nos centros financeiros offshore (até 30%, de acordo com um estudo recente)10.

Segundo cálculos conservadores da ocde, a erosão da base tributária e a transferência de benefícios geram perdas entre 100 e 240 bilhões de dólares por ano em todo o mundo, o que equivale a uma parcela de 4% a 10% da receita global proveniente do imposto de renda das sociedades11. As estimativas dos pesquisadores do Fundo Monetário Internacional (fmi) apontam para somas ainda maiores: uma perda de receita aproximada de 200 bilhões de dólares, ou 1,3% do pib, para países não pertencentes à ocde; e entre 400 e 500 bilhões de dólares, ou cerca de 1% do pib, para os países da ocde12.

Alguns economistas sustentam que o imposto sobre a renda gera um efeito negativo sobre a poupança e/ou o investimento, devendo portanto ser eliminado. Porém, essa visão negativa não tem sido corroborada pelos estudos desenvolvidos recentemente pelo fmi, que indicam que, estatisticamente, o tributo possui efeitos pequenos e pouco significativos sobre o investimento13. De fato, um estudo da mesma instituição sobre os países em desenvolvimento da América Latina, Caribe e África mostrou que as menores taxas de imposto de renda das sociedades e as férias tributárias extensas são eficazes para atrair investimentos financeiros, mas não para promover a formação bruta de capital fixo privado ou o crescimento econômico14.

Quando as empresas não pagam os impostos que lhes correspondem, os governos podem acabar sendo obrigados a reduzir serviços públicos essenciais ou ampliar a cobrança sobre fatores de produção com menor mobilidade, como a mão de obra não qualificada, ou aumentar impostos regressivos como o de valor agregado, aprofundando dessa forma a desigualdade na distribuição de renda15. Além disso, os abusos tributários das corporações transnacionais criam uma concorrência desleal com as empresas nacionais, muitas delas de pequeno ou médio porte que geram uma grande quantidade de empregos, e esse desequilíbrio se exacerba com acordos de proteção ao investimento, que têm criado mecanismos de defesa para investidores estrangeiros aos quais os nacionais não têm acesso.

Reformar a disfunção mais profunda de nosso sistema tributário internacional

Como já mencionado, o principal facilitador dos abusos tributários corporativos internacionais é o princípio de entidades jurídicas independentes, o que é uma verdadeira ficção. Na visão da icrict, a única maneira eficaz de impedir esses abusos é, portanto, tratar as corporações transnacionais como empresas únicas e integradas, e dividir os impostos sobre seus lucros de acordo com a atividade econômica que realizam em cada país. Se as transnacionais fossem tributadas como uma empresa unificada, desapareceriam os preços de transferência, pois seus lucros mundiais seriam consolidados e elas não poderiam ganhar ou perder por meio de transações internas. Ao mesmo tempo, cada país obteria receitas fiscais do grupo transnacional em proporção às atividades realizadas em seu respectivo território. Esse sistema exigiria que se chegasse a um acordo sobre como dividir os impostos dessas empresas entre os países que os cobram. Para isso, poderiam ser utilizados fatores como vendas e nível de emprego. Em alguns setores, como o extrativista, teria de ser adicionado um fator específico de «volume de produção» para avaliar com mais precisão as atividades empresariais.

Há quase um século, eua, Canadá e Suíça utilizam fórmulas de partilha (formulary apportionment) para a divisão da base tributável em nível subnacional. Recentemente, a União Europeia desenvolveu um sistema parecido que consolida os lucros do grupo corporativo na União e os reparte entre os distintos Estados membros. Essa proposta, denominada «base comum consolidada para o imposto de sociedades», já foi aprovada pelo Parlamento Europeu, mas ainda não obteve o consenso necessário dos governos para sua aplicação.

De fato, mundialmente, o enfoque unificado de taxar os lucros das empresas transnacionais necessitaria de uma cooperação internacional inclusiva e de instituições sólidas para fazê-la funcionar da forma mais eficaz e equitativa possível. Durante a transição ao novo sistema, deveria ser imposto um tipo mínimo de tributo sobre os lucros das sociedades em escala mundial para refrear a concorrência tributária, um tema a que nos referiremos na próxima parte deste artigo. Por outro lado, para enfrentar os problemas complexos representados pelos preços de transferência, os países em desenvolvimento poderiam utilizar esquemas simples de modo a determinar o valor fiscal de certas transações e lucros das transnacionais. Duas alternativas possíveis são o método de margens líquidas compartilhadas, baseadas em contas consolidadas das transnacionais, e as margens brutas fixas por tipo de transação, utilizadas no Brasil16.

Além de reformar o princípio de entidades jurídicas independentes, é essencial que haja mais transparência sobre os impostos pagos e os benefícios tributários recebidos pelas empresas em cada país. Diante da onda de escândalos tributários de grandes empresas, a opinião pública já não acredita que as corporações que detêm a capacidade de atuar na opacidade o façam de maneira sempre correta, tampouco que os governos atuem em seus relacionamentos com essas empresas com a transparência que deve caracterizar a ação pública. Portanto, a transparência deve incluir, entre outras, as seguintes áreas:

- Os Estados devem divulgar publicamente as vantagens e os incentivos tributários, bem como as isenções de rendimento que oferecem às transnacionais. Devem ser evitados a todo custo acordos secretos como aqueles oferecidos pela Irlanda à Apple, que criam riscos de corrupção e favoritismo.- Os Estados devem exigir das transnacionais, públicas ou privadas, a apresentação de relatórios detalhados sobre os lucros que obtêm e os impostos que pagam em cada país onde atuam. Como veremos mais adiante, essa iniciativa foi adotada parcialmente pelo g-20 e a ocde. Esses relatórios devem ser colocados à disposição de todos os administradores de impostos, sem a exigência de um tratado ou qualquer outro tipo de acordo. Além disso, eles devem ser disponibilizados à opinião pública pouco depois.- Os Estados devem registrar os nomes das pessoas físicas que são proprietárias e beneficiárias reais e finais das ações das empresas, e atualizar esses nomes em registros corporativos de conhecimento público.- As transnacionais de setores extrativistas devem também disponibilizar ao público, país por país e projeto por projeto, os pagamentos realizados aos governos, conforme os relatórios que já são obrigados a apresentar nos eua e na ue.

Combater a concorrência tributária

O modo mais eficaz de conter a concorrência tributária mundial seria estabelecer uma taxa efetiva mínima no imposto de renda das sociedades, medida através dos gravames totais pagos por uma empresa em função de seus lucros totais. A fixação de uma taxa efetiva mínima é fundamental, já que essa medição inclui reduções da base (isto é, a receita sobre a qual são cobrados os impostos), e as taxas efetivas costumam ser muito inferiores, pois chegam em muitos casos a somente 50% do nível das legais. Na verdade, a maior parte das isenções tributárias (e, consequentemente, da evasão) se apoia nas regras utilizadas para calcular a base.

O que provavelmente gerará um intenso debate é em que nível fixar a taxa efetiva mínima, já que vários países adotaram ou anunciaram (inclusive Reino Unido e eua recentemente) percentuais muito mais baixos e reduções ainda mais generosas da base tributária. Para chegar a um acordo global sobre uma taxa efetiva mínima, provavelmente seria necessário contar com um órgão tributário de caráter global, como é proposto na última parte deste artigo. No entanto, no curto prazo, poderiam ser adotadas taxas tributárias mínimas efetivas em algumas regiões como primeiro passo rumo a uma convergência global. Como alternativa, ou de modo adicional, se países como os eua e membros da ue fixassem uma taxa tributária mínima para qualquer empresa que opere (produza ou venda) dentro de seus territórios, isso implicaria de fato a introdução de uma taxa mínima global.

Além de reduzir as taxas tributárias legais, os países concedem isenções a determinados tipos de empresa ou atividade. Para controlar essas modalidades de concorrência tributária, devem ser eliminadas as isenções mais prejudiciais, inclusive:

- regimes de entidades de finalidade especial, que permitem canalizar os lucros através de fundos fiduciários (holdings) sujeitos a uma tributação baixa ou nula que, muitas vezes, proporcionam o benefício do segredo ou isenções em matéria de prestação de informações;- isenções tributárias sobre os lucros associados à propriedade intelectual, como os incentivos denominados patent boxes, que se disseminaram pela Europa. Ainda que sejam apresentadas como um estímulo à inovação, essas deduções são, na realidade, ferramentas de concorrência tributária;- férias tributárias, associadas geralmente a zonas econômicas especiais em países em desenvolvimento. Essas deduções podem durar até 10 ou 15 anos, criando um incentivo para que as empresas migrem benefícios de outros lugares à subsidiária que goza de férias tributárias;- os acordos com empresas individuais, como as cláusulas de estabilidade presentes em contratos para impedir que sejam aplicadas novas leis sobre os investidores ou as regulamentações tributárias avançadas, que autorizam estruturas complexas para permitir a transferência de lucros.

Pode haver circunstâncias que justifiquem uma política de incentivos tributários – por exemplo, promover pesquisa e desenvolvimento –, além de outros objetivos sociais e ambientais; no entanto, sempre existe o risco de que os setores com conexões políticas exerçam pressões para obter um tratamento especial, ou que permaneça vigente uma dedução injustificável simplesmente por inércia ou falta de controle. É por isso que os incentivos tributários devem ser aplicados com moderação e utilizados exclusivamente para promover novos investimentos produtivos reduzindo seus custos, e não para reduzir a tributação dos lucros gerados por investimentos realizados no passado.

No caso das zonas econômicas especiais, é essencial garantir seu funcionamento como centros de logística e evitar que se tornem miniparaísos fiscais. Além disso, as regras da Organização Mundial do Comércio (omc) proíbem a concessão de subsídios às exportações, o que inclui incentivos tributários diretos17. Dessa forma, qualquer incentivo tributário deve ser dado a novos investimentos em atividades consideradas socialmente desejáveis e beneficiar todas as empresas, sejam elas estrangeiras ou nacionais. Tudo isso implica que as isenções tributárias concedidas para reduzir os custos de investimento devem estar sujeitas a debates públicos antes de sua adoção, condicionadas ao alcance de objetivos mensuráveis, limitadas no tempo mediante cláusulas de expiração e sujeitas a relatórios periódicos sobre seu custo (gastos tributários) e efeitos sobre o investimento.

Cabe destacar que as tentativas de evitar a concorrência tributária e as práticas tributárias abusivas impulsionadas pela ocde obtiveram resultados muito limitados. Depois que os líderes do g-7 solicitaram à organização que abordasse as «práticas tributárias prejudiciais», a ocde criou em 2000 uma «lista negra» de paraísos fiscais18, mas a maioria dos territórios incluídos foi retirada da lista somente dois anos mais tarde, e todos em 2009. Porém, como demonstram os «Panamá Papers», muitas jurisdições que haviam sido retiradas inicialmente da lista (as jurisdições e dependências dos principais países da ocde) continuaram operando como sempre.

Mais recentemente, durante o processo da ocde para evitar a erosão das bases tributáveis e a transferência de benefícios (beps, na sigla em inglês), ao que nos referiremos mais adiante, o Fórum sobre Práticas Tributárias Prejudiciais identificou que 16 regimes que concediam isenções sobre lucros derivados da propriedade intelectual (os patent boxes) eram total ou parcialmente incompatíveis com o critério acordado de «nexo», segundo o qual somente se permite conceder essas isenções na medida em que se relacionem com os gastos de pesquisa e desenvolvimento realizados pelo contribuinte.

Por outro lado, a ocde deixou bem claro que o propósito de seu trabalho sobre práticas tributárias prejudiciais consistia em criar uma separação entre a concorrência «útil» e a «prejudicial». O último relatório do Fórum sobre Práticas Tributárias Prejudiciais estabelece que o projeto «não está pensado para impulsionar a harmonização dos impostos sobre a renda ou outras estruturas tributárias», mas sim para promover uma «concorrência tributária livre e justa», «regras do jogo uniformes» e a «expansão do crescimento econômico»19.

Por sua vez, os membros da ue realizaram em 1998 um esforço para identificar e restringir as práticas tributárias prejudiciais por meio de seu Código de Conduta sobre Tributação Empresarial20. O processo foi um fracasso, pois não conseguiu evitar nenhum dos abusos flagrantes revelados nos últimos anos. De qualquer forma, a Comissão Europeia continua promovendo a «concorrência tributária justa» como princípio de uma boa governança tributária, excluindo unicamente os «acordos especiais» considerados como ajuda estatal.

A partir desses fracassos históricos, a icrict declarou que de nada serve continuar trabalhando com o conceito de concorrência tributária «útil». Na realidade, qualquer concorrência tributária internacional tem o potencial de minar a base tributária dos países. Deve-se permitir uma certa variação entre os sistemas tributários nacionais, mas mantendo normas mínimas comuns para proteger o interesse de todos. A concorrência internacional é conveniente, mas deve ocorrer no terreno da capacitação da força de trabalho, da qualidade da infraestrutura e da capacidade de inovação dos países, não a partir de benefícios tributários que não tenham plena justificativa, com base em princípios acordados multilateralmente.

Institucionalidade internacional

O instrumento mais importante de cooperação tributária internacional são os convênios de dupla tributação, em sua maior parte bilaterais. Hoje, há mais de 3.000 convênios desse tipo. Esses acordos buscam aumentar os fluxos de investimento mediante a redução ou até mesmo a eliminação das retenções na fonte de impostos sobre os pagamentos ao exterior de juros, royalties, dividendos e diversas taxas de serviços realizados pelas transnacionais. No entanto, eles restringem a capacidade do país anfitrião de tributar a transnacional e, como já mencionado, acabam por conceder de fato benefícios que não se estendem às empresas puramente nacionais.

A icrict recomendou nesse campo que os Estados deveriam evitar as limitações impostas pelos convênios de dupla tributação ao uso de retenções na fonte. Além disso, a comissão sugeriu que os convênios mais utilizados, tanto o da ocde como o da onu, deveriam incorporar o princípio de prevenir a dupla não imposição, incorporar normas gerais sobre como evitar a evasão de impostos e facilitar o intercâmbio de informações que propicie a eficácia das administrações tributárias. Por outro lado, recomendou evitar a inclusão de disposições que fragilizem a autonomia tributária nos tratados de proteção de investimentos, acordos de extração de recursos naturais e similares.

Por sua vez, o organismo internacional que mais tem contribuído historicamente para a cooperação tributária entre seus membros é a ocde, cujas atividades foram fortalecidas pelo recente apoio do g-20 a suas atividades, que agora incluem o Fórum Global sobre Transparência e Intercâmbio de Informações Tributárias, que conta com um amplo número de países, em sua maioria, não integrantes da ocde. Devido aos já mencionados debates sobre elisão ou evasão de impostos de grandes transnacionais, em 2012, o g-20 instou a ocde a reformar o sistema tributário internacional das corporações por meio da iniciativa beps, cujo princípio fundamental é que as atividades das transnacionais devam ser tributadas «onde suas atividades econômicas ocorrem e se cria valor». Em setembro de 2013, aprovou-se o plano de ação, cujos primeiros acordos foram anunciados em 2015.

Talvez o elemento mais importante das ações anunciadas no âmbito dessa iniciativa seja a obrigação das grandes empresas de apresentar relatórios sobre os impostos que pagam em cada país onde atuam, além de informações sobre receita, lucros, funcionários e ativos. Infelizmente, essa norma só será aplicada a transnacionais muito grandes, e seus relatórios não serão públicos, o que vai de encontro às iniciativas sobre transparência mencionadas em uma seção anterior. A isso se somam as propostas, ainda em curso, de lidar com os desafios tributários representados pelas atividades de correspondentes e, especialmente, pela economia digital para determinar quando se pode dizer que há um «estabelecimento permanente» para fins tributários. A iniciativa beps também avançou ao definir novas metodologias para estimar os preços de transferência baseados no princípio de substância econômica de suas atividades. Mas, infelizmente, as novas metodologias tornaram ainda mais complexas as revisões que as autoridades tributárias devem realizar, e todas essas reformas só funcionarão dentro do sistema atual, o qual ignora que o princípio de entidades jurídicas independentes é o problema fundamental do sistema de tributação corporativa internacional.Ainda que esses esforços constituam passos na direção correta, deixam aberto o problema básico de governança global, que não é outro senão a falta de participação igualitária, efetiva e oportuna dos países em desenvolvimento. A ocde não é uma organização mundial, uma vez que está composta principalmente pelos países desenvolvidos. Por isso, a responsabilidade principal em matéria de cooperação tributária deve recair sobre a onu, mediante a transformação do atual Comitê de Especialistas em Cooperação Internacional em Matéria Tributária do Conselho Econômico e Social em um organismo intergovernamental verdadeiramente global, dotado dos recursos adequados para promover e melhorar essa cooperação. A Terceira Conferência Internacional sobre o Financiamento para o Desenvolvimento, realizada em Adis Abeba em julho de 2015, viu fracassar a proposta apresentada nesse sentido pelo g-77 mais a China21.

A icrict também propôs a elaboração de uma Convenção das Nações Unidas sobre Práticas Tributárias Abusivas de alcance mundial. Além disso, ressaltou que o Pacto Mundial da onu e as Diretrizes da ocde sobre Empresas Multinacionais deveriam ser fortalecidos pelo reconhecimento expresso da obrigação de pagar impostos como uma responsabilidade social corporativa preeminente. Por sua vez, as organizações multilaterais e outras organizações governamentais deveriam ampliar os recursos que oferecem aos países em desenvolvimento para melhorar a capacidade de suas administrações tributárias, também por meio da cooperação Sul-Sul e triangular. Nesse sentido, são louváveis as atividades já realizadas pelo fmi, ocde e onu.

Finalmente, a sociedade civil também deve desempenhar um papel fundamental na tarefa de fortalecer a cooperação tributária internacional, bem como nos debates e avaliações sobre temas tributários em escala nacional. As organizações da sociedade civil vêm realizando estudos de casos e formulando instrumentos, como o índice de segredo financeiro22, que ilustram e medem como as políticas em matéria de impostos e transparência de um determinado país incidem sobre a capacidade de outros países de incrementar essas receitas.

  • 1.

    V. . Como o presente artigo resume as propostas da Comissão, utiliza partes de suas declarações. Porém, o ensaio não cobre todos os temas abordados pela ICRICT.

  • 2.

    Entre essas organizações, incluem-se ActionAid, Alliance Sud, ccfd-Terre Solidaire, Christian Aid,Conselho de Sindicatos Mundiais, Aliança Global pela Justiça Fiscal, Oxfam, Internacional de Serviços Públicos (ISP), Rede de Justiça Fiscal e o Conselho Mundial de Igrejas. A Fundação Friedrich Ebert (FES) tem sido uma fonte de contínuo apoio à comissão, assim como a Fundação Ford recentemente.


  • 3.

    Seus integrantes atuais são Edmund Fitzgerald (Reino Unido), Kim Henares (Filipinas), Eva Joly (Noruega), Suzanne Matale (Zâmbia), Léonce Ndikumana (Burundi), Ifueko Omoigui Okauru (Nigéria), M. Govinda Rao (Índia), Magdalena Sepúlveda (Chile), Joseph E. Stiglitz (EUA) e José Antonio Ocampo (Colômbia), que a preside. Manuel Montes (Filipinas) também foi inicialmente membro da comissão.

  • 4.

    Joel Slemrod e John D. Wilson: «Tax Competition with Parasitic Tax Havens» em Journal of Public Economics vol. 93 No 11-12, 12/2009.

  • 5.

    J. Stiglitz e Mark Pieth: «Para derrotar a la economía en las sombras», Análisis de Política
    Internacional, fes, 11/2016, disponível em http://library.fes.de

    .

  • 6.

    Markus Leibrecht e Claudia Hochgatterer: «Tax Competition as a Cause of Falling Corporate Income Tax Rates: A Survey of Empirical Literature» em Journal of Economic Surveys vol. 26, 2012.

  • 7.

    Assim declaram funcionários do Fundo Monetário Internacional (FMI) quando sustentam que «a erosão da base tributária, a transferência de benefícios e a concorrência tributária internacional são realmente importantes para os países em desenvolvimento (…) pelo menos tanto quanto o são para as economias avançadas». Ver Ernesto Crivelli, Ruud De Mooij e Michael Keen: «Base Erosion, Profit Shifting and Developing Countries», WP/15/118 IMF, FMI, 2015.

  • 8.

    FMI: Fiscal Monitor: Public Expenditure Reform: Making Difficult Choices, FMI, Washington, DC, 4/2014.

  • 10.

    Nadine Reidel: «Quantifying International Tax Avoidance: A Review of the Academic Literature», relatório apresentado no European Tax Policy Forum, 2014.

  • 11.

    «Taxing Multinational Enterprises», BEPS Update No 3, disponível em ‹www.oecd.org/ctp/ policy-brief-beps-2015.pdf›.

  • 12.

    FMI: Base Erosion, Profit Shifting and Developing Countries, 2015, p. 21, figura 3.

  • 13.

    FMI: «Fiscal Policy and Long Term Growth», documento sobre políticas, fmi, 4/2015.

  • 14.

    Alexander Klemm e Stefan Van Parys: «Empirical Evidence on the Effects of Tax Incentives», wp/09/136, FMI, 2009.

  • 15.

    OCDE: «Tax Policy Reform and Economic Growth», Tax Policy Studies No 20, ocde, Paris, 2010, p. 20.

  • 16.

    Tommaso Faccio e Sol Piccioto: «Alternatives to the Separate Entity Principle/Arm´s Length Principle for Taxation of Multinational Enterprises», documento informativo, ICRICT, 9/2017.

  • 17.

    Acordo sobre Subvenções e Medidas Compensatórias do GATT, anexo I (E).18.

  • 18.

    OCDE: «Towards Global Tax Co-Operation: Report to the 2000 Ministerial Council Meeting and Recommendations by the Committee on Fiscal Affairs: Progress in Identifying and Eliminating Harmful Tax Practices», 2000, pp. 16-17.

  • 19.

    OCDE: «Countering Harmful Tax Practices More Effectively, Taking into Account Transparency and Substance, Action 5 2015 Final Report», ocde/g-20 Base Erosion and Profit Shifting Project, 2015, p. 11.

  • 20.

    V. <www.consilium.europa.eu/en/councileu/preparatory-bodies/code-conduct-group/>.

  • 21.

    «Proposal to Create More Powerful un Tax Body Fails» em MNE Tax, 15/7/2015,

    Uma proposta similarfracassou também em 2004, quando a SecretariaGeral da onu formulou uma recomendação
    para transformar o antigo grupo ad hoc de especialistas em um organismo intergovernamental, ainda que o tenha transformado então em um comitê regular.

  • 22.

    V. «Financial Secrecy Index», Tax Justice Network, ‹www.financialsecrecyindex.com›.

Este artículo es copia fiel del publicado en la revista Nueva Sociedad , Julho 2018, ISSN: 0251-3552


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