Tema central
NUSO Nº Dezembro 2020

Por um antirracismo sem desculpas

Para construir uma perspectiva política antirracista, é preciso pensar os entrecruzamentos entre raça, gênero e classe. Isso pode ajudar a abandonar pontos de vista que, em um aparente posicionamento comprometido, poderiam até mesmo reforçar as estruturas de poder impostas sobre as populações racializadas.

Por um antirracismo sem desculpas

As políticas identitárias são naturalizadas com muita frequência e, por não serem consideradas um produto da luta política, não se situam de forma relacionada com as lutas de classe e antirracistas. (…) O que você faz para possibilitar a transformação radical é mais importante do que como você imagina ser. Angela Davis

A tentação a combater: o «mudar para que nada mude»

«¿Quieres reformar la policía? Contrata más mujeres» [Quer reformar a polícia? Contrate mais mulheres], sugere rapidamente um título da cnn em espanhol no último dia 23 de junho1. O simplismo e o oportunismo do título obtiveram o impacto esperado, uma viralização muito festejada de um texto que, em suas próprias entrelinhas, revela não só o perigo e o equívoco da proposta, mas também suas claras limitações.A ideia de incluir mulheres nas forças de segurança para solucionar a brutalidade policial é, a priori, um reducionismo trágico de um problema estrutural, institucional e, em alguns casos específicos, constitucional. Além de não nos encontrarmos diante de um problema que possa ser lido exclusivamente de uma perspectiva de gênero, ainda que assim fosse, o «tipo de perspectiva» de gênero que o artigo propõe não constitui mais que uma mudança de imagem daquilo que se deseja modificar e, por sua vez, reforça outras narrativas de brutalidade que tampouco devem se reduzir ao gênero.Analisemos o título da cnn. Quem são «as mulheres»? E quem são «as mulheres» que pedem «mais mulheres» em diferentes espaços e posições de poder? Mais ainda, quem são «as mulheres» que têm acesso a esses lugares de poder? Essas perguntas são respondidas, fundamentalmente, em uma representação muito determinada do que é «a mulher»: a mulher branca, de classes médias e altas, fundamentalmente elitista. Essa representação é tão arcaica como ardilosa, já que constitui uma ideia de «as mulheres» que responde a um imaginário machista.Por um lado, essa racialização que – como já veremos – nos fala também de uma matriz de classe. Às mulheres que têm familiares (homens e mulheres) nas prisões e que não só conhecem a realidade interna da reclusão como também se veem expostas elas mesmas a uma série de abusos nas mãos de policiais masculinos e femininos, seria preciso perguntar se adicionar mulheres ao sistema seria a solução para todos os cenários que devem ser enfrentados. Por outro lado, o apelativo «as mulheres» também afasta as diversidades. Quantas vezes vemos incluída em «as mulheres», por exemplo, a comunidade trans? Como seriam incorporadas, segundo a proposição da cnn, essas diversidades nos corpos das forças de segurança que as violentam sistematicamente? Em ambos os casos (das mulheres que se encontram por trás de presos e presas, e da comunidade trans), cabe mencionar que elas também sofrem a violência, a discriminação e a estigmatização não só de forma institucional e por parte de outras mulheres em geral, como também de diferentes setores do feminismo.A consideração segundo a qual tudo se resolverá com «as mulheres» se fundamenta em um essencialismo: como em uma história em quadrinhos da Marvel, «as mulheres» em seu «ser mulher» parecem ter o «superpoder» que conseguirá modificar as estruturas pelo simples fato de ter acesso a elas. E esse essencialismo acrescenta um erro recorrente desta época: acreditar que «o patriarcado vai cair» somente porque estamos tendo acesso a espaços historicamente ocupados por homens, sem diferenciar ou – pior ainda – sem se importar com o fato de que é justamente nesses espaços onde se reforçam as estruturas vigentes, desde as mais violentas até as mais sutis. Em outras palavras, quando esse coro reiterado demanda igualdade de oportunidades para ter acesso a «qualquer espaço», não faz mais que disputar uma concentração de poder. Mas a crítica ao patriarcado busca exatamente o oposto, isto é, a transformação conquistada a partir da desconcentração do poder e das riquezas. É isso que, em última análise, atenta contra o corpo último do capitalismo selvagem.Disputar poder é necessário em uma ordem reformista. Mas buscamos essa nivelação? Não podemos ignorar que disputar não é necessariamente combater e, definitivamente, a disputa não constitui uma força suficientemente radical para derrubar estruturas. «O que não pode haver são hierarquias de opressão», proclamava a feminista negra Audre Lorde. Para mencionar apenas alguns exemplos. A equiparação de oportunidades e salários tem uma concepção tão setorial que ignora uma realidade substancial: se uma mulher de classe média com «boa aparência» e um homem de classe baixa se apresentarem para uma entrevista de emprego, sem importar que ele a supere em experiência e formação, ela provavelmente conquistará o posto de trabalho. Se uma mulher de classe média com «boa aparência» e um homem de classe trabalhadora saírem ao mesmo tempo de uma loja e soar um alarme, provavelmente, o homem será detido primeiro. E, mesmo se os dois fossem abordados, o tratamento seria o mesmo? Os desfechos desses exemplos não seriam diferentes se, em lugar de um homem, considerássemos uma mulher racializada. Mas suponhamos um extremo: um mundo imaginário onde somente «as mulheres» ocupassem lugares de poder. Se elas tivessem outras mulheres e homens limpando suas casas e cuidando de seus filhos – simplesmente formalizados e com uma garantia mínima de direitos trabalhistas –, continuariam existindo a precarização de seus empregados, uma oratória e uma exigência supremacistas com relação à mulher policial, além de um olhar desconfiado quando precisassem dividir um avião até a Europa com uma família de classe trabalhadora (para citar exemplos rústicos, mas que todos conhecemos). Portanto, nada teria mudado de fato.Esse tipo de posicionamento que pensa «as mulheres» como desprovidas de toda ideologia e personalidade, além de considerá-las segundo uma noção puramente biológica, também as despersonifica e coisifica. Há relato mais sexista e coisificador que pensar que a mulher é boa, calorosa, suave, sensível e que corporifica outras tantas qualidades que casualmente se relacionam com um ideário maternal, por sua vez, seu papel histórico na sociedade? É essa a verdadeira anatomia de reflexões do tipo «com mais mulheres em suas fileiras, a polícia seria mais empática». É a imagem maternal, mas também a redução da mulher a uma mera decoração. E, por sua vez, essas reflexões perpetuam outros tabus relacionados com a violência feminina. Trata-se de uma violência feminina silenciada em termos familiares, profissionais, culturais, políticos e institucionais: as mães não batem em seus filhos, as chefas não maltratam suas colegas, a acusação de uma mulher com relação a um homem nunca é falsa, uma presidenta do Fundo Monetário Internacional (fmi) é feminista porque questiona os ministérios que não possuem cotas femininas, as mulheres policiais não cometem abusos.

A fragilidade dos enunciados

A brutalidade policial é apenas a ponta do iceberg da violência institucional. Sua complexidade se reforça em certos paradoxos que, não em poucas ocasiões, fundam um ponto de encontro em que os setores populares e de esquerda se aproximam dos setores de direita. Ainda que soe incômodo, é impossível falar de violência institucional sem falar da aceitação social com a qual ela conta, tendo inclusive a indiferença como uma forma de legitimação e diversas ações cotidianas que reforçam as narrativas criminalizadoras e estigmatizantes. Essas narrativas nos oferecem aquele que talvez seja o principal paradoxo em torno da própria polícia, tanto para oficiais masculinos como femininos. Como diz Federico Pita, diretor da Diáspora Africana da Argentina (diafar) e membro da Articulação Regional de Afrodescendentes das Américas e do Caribe (araac), «entre os pobres, as escolhas de trabalho são restritas. A grande maioria precisa escolher entre o trabalho doméstico, o magistério em geral e ser policial. E uma minoria não pode sair do circuito do crime. Mas, em geral, o leque de opções de trabalho do humilde está muito bem definido». Essa mesma situação marca a linha tênue que separa o policial – homem ou mulher – de ser vitimizador a ser vítima, de ser um honrado e respeitado trabalhador social a ser olhado com desconfiança, como uma ameaça.Em outras palavras, pensemos nisso a partir do que chamamos comumente de «gatilho fácil»2. O gatilho nunca é «fácil», nunca é apertado acidentalmente nem precisa ser usado «em legítima defesa» diante de um branco. Toda essa ânsia adjetivadora do disparo mostra que o gatilho é óbvia e claramente racista. O mesmo vale para o gatilho que mata ou o joelho que asfixia (como no caso de George Floyd, mas também de muitos cidadãos da América Latina). A complexidade da estrutura é tamanha que esse ou essa policial que dispara ou apoia o joelho sobre o pescoço de outra pessoa é quem poderia receber o disparo ou ser asfixiado não fosse por seu uniforme. Enquanto veste o uniforme, esse oficial que matou outra pessoa será defendido e festejado por seu serviço; se fosse a vítima, seu assassinato seria justificado com um «algo de errado deve ter feito».Esse «algo de errado deve ter feito» é a expressão mais literal de uma ideologia e se adapta a diferentes cenários, mas há também outras argumentações, enunciados ou posicionamentos que, embora mais sutis e não tão representativos da direita, se amplificam nos progressismos e nas esquerdas sem se afastar muito do pano de fundo da direita. Um exemplo inclusive mais naturalizado é o que habitualmente se chama de «porte de rosto»3, que habilita não só um policial a abordar uma pessoa, revistá-la ou apreender sua documentação no momento de realizar determinadas formalidades, mas também um civil a mudar de calçada, evitar a proximidade direta no transporte público, dar como certo que esse outro pertence a determinada classe e determinada raça, o que em muitos países se torna rapidamente uma noção estrangeirizante desse sujeito. Podemos prosseguir com a lista de exemplos que terminam em racismo quando esse «não branco» acessa espaços de poder e lazer supostamente predestinados aos brancos e, então, suspeitam de sua localização, moralizam sua forma de habitar esse lugar e abordar esses benefícios, direitos e possibilidades, e também o coisificam, difundem-no como um troféu justicialista para defendê-lo dos ataques que duvidam da legitimidade de seu acesso às «bênçãos» do mercado. Alguns precisam do pobre ajoelhado para manter em alta sua estrutura de riqueza e poder, outros precisam dele ajoelhado para continuar motorizando bondades movidas por um narcisismo que se alimenta de caridades e discursos demagógicos, mas que se transforma rapidamente em ranço caso sintam que seu lugar de privilégio está sendo cercado.

Interseccionalidade, divino tesouro

«Nem todos os negros são pobres. Mas todos os pobres são ‘negros’», explica Federico Pita, fazendo uma tradução dos ideários coletivos que representam uma das principais complexidades do racismo: as construções políticas, culturais e geográficas que acabam gerando um relato no qual a raça e a classe não se diferenciam, são produzidas. «O negro» ou «o não branco», explica Rita Segato em La nación y sus otros: raza, etnicidad y diversidad religiosa en tiempos de políticas de la identidad [A nação e seus outros: raça, etnicidade e diversidade religiosa em tempos de política da identidade], «não é necessariamente o outro índio ou africano, mas um outro que tem a marca do índio ou do africano, o rastro de sua subordinação histórica. São esses não brancos que constituem as grandes massas de população despossuída». No pensamento branco, essa população é um absoluto racializado, o que gera uma percepção «intuitiva» de sua localização social como classe e até mesmo residência. O interessante é que toda essa trama mostra de maneira muito concreta a prevalência da raça sobre os conflitos de classe e gênero. No entanto, décadas de pesquisas realizadas pelos feminismos radicais de mulheres racializadas nos propõem uma integração entre raça, gênero e classe por meio da interseccionalidade.O termo é atribuído geralmente a Kimberlé Crenshaw, que o adota no final da década de 1980, mas os estudos e sua abordagem de maneira formal se iniciam na década de 1960 e ganham força no Manifesto do Coletivo Combahee River de 19774. Nele, é afirmado: «embora concordemos com a teoria de Marx (…) sabemos que sua análise deve se ampliar ainda mais para podermos compreender nossa situação econômica específica como mulheres negras». Nesse sentido, o que Crenshaw destaca é que, quando falamos de raça e racismo, obviamente devemos considerar os homens; e quando falamos de gênero, ainda que devesse incluir todas as mulheres, como o acesso a certos lugares estar determinado historicamente para mulheres brancas e de classes médias e altas, isso faz com que não seja totalmente representativo para a grande maioria delas. Nessas generalizações, a mulher negra fica invisibilizada. Mas na interseccionalidade sua voz não só ganha força, como também propõe uma leitura radical. «As mulheres, sem exceção, são socializadas para serem racistas, classistas e sexistas em diversos graus», escreve bell hooks. «Rotular a nós mesmas como feministas não muda o fato de que devemos trabalhar conscientemente para nos desfazermos do legado da socialização negativa»5. Ainda que se refira à mulher nos Estados Unidos, podemos pensar nisso de modo continental. Primeiro, e seguindo a linha de pensamento de Frantz Fanon, porque a comunidade afro-estadunidense é terceiro-mundista. Segundo, porque – por razões políticas, econômicas, culturais e históricas – não só os eua definem pautas e intervêm em todo o continente, mas nossas sociedades adotam voluntariamente seus padrões, mandatos e mensagens. E isso é feito colocando atenção nas referências predominantes. Como relata Angela Davis em cada uma das páginas de seu livro Mulheres, raça e classe (1981)6, as mulheres negras eram feministas desde antes do surgimento do termo, só que não tinham tempo, capacidade nem possibilidade de «fazer disso um relato», muito menos parte de um mercado. Por essa mesma razão, são as mulheres negras que adotam as ideias marxistas, levam-nas a um nível mais ajustado e dão um passo adiante não só em sua realidade e suas necessidades, mas também como resposta a um sistema que afeta as maiorias. A interseccionalidade passa a ser uma articulação indispensável à medida que o capitalismo se torna mais selvagem, em um mundo que se torna expulsivo ou, sobretudo, um mundo que gera inclusões para, a partir disso, construir marginalizados segundo a necessidade de seus relatos.É nessa consciência negra, enraizada em uma noção territorial que atravessa os corpos e posiciona as mulheres como matriarcas e referência obrigatória, que o combate atual é travado. Trata-se de enfatizar as mulheres como organizadoras comunitárias natas nos bairros populares, como protagonistas nos refeitórios, como parte das primeiras linhas dos agrupamentos sociais e cooperativas. É nesse âmbito em que se força uma disputa disruptiva pelo prazer e pela dignidade. É em toda essa geografia social que não é necessário «contar as mulheres nas fotos» nem pedir mais delas. A razão é simples: nesse âmbito, elas já são um absoluto. De qualquer forma, nessas fotografias populares, o que falta – tanto em presença como em discurso e interpelação – são as representações daquele «as mulheres» com o qual iniciamos este texto: faltam essas mulheres que apelam para um feminismo enunciativo e aspiracional, não só aceitando todo o statu quo, mas querendo dele se apropriar.

  • 1.

    Bárbara Pistoia: é especialista em temáticas vinculadas ao racismo. Dirige o site de música negra Hiiipower. É autora do livro Por qué escuchamos a Tupac Shakur [Por que escutamos Tupac Shakur] (Gourmet Musical, Buenos Aires, 2019).Palavras-chave: classe, gênero, interseccionalidade, mulheres, racismo.. Ashley Fantz: «¿Quieres reformar la policía? Contrata más mujeres» em cnn en Español, 23/6/2020.

  • 2.

    A autora emprega a expressão «gatillo fácil», que se refere à prática cotidiana de violência e uso abusivo de armas de fogo por parte das forças policiais contra populações socialmente marginalizadas [n. do t.].

  • 3.

    A autora emprega a expressão «portación de rostro», que se refere à prática policial opressiva de abordar e deter para averiguações pessoas que apresentem traços pertencentes a determinadas categorias sociais marginalizadas ou racializadas, atentando dessa forma contra seu direito à livre circulação e à ocupação de espaços públicos [n. do t.].

  • 4.

    Disponível em Herramienta, www.herramienta.com.ar/articulo.php?id=1802.

  • 5.

    b. hooks: «Lo más importante es lo que digo en mis libros, no quién soy» em Afrofémina, 23/7/2018, https://afrofeminas.com/2018/07/23/bell-hooks-lo-mas-importante-es-lo-que-digo-en-mis-libros-no-quien-soy/.

  • 6.

    Boitempo, São Paulo, 2016.

Este artículo es copia fiel del publicado en la revista Nueva Sociedad , Dezembro 2020, ISSN: 0251-3552


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