Tema central
NUSO Nº 2019 / Dezembro 2019

A nova esquerda chilena

Após a transição comandada por uma aliança de centro-esquerda que teve como pilares os socialistas e os democratas-cristãos, despontou no Chile uma nova esquerda, fruto em grande medida das mobilizações estudantis de 2011, articulada sobretudo na Frente Ampla. Essa nova esquerda é um produto dos fracassos e sucessos das políticas dos últimos anos, que levaram a profundas mudanças na sociedade e expuseram as dívidas pendentes, especialmente em termos de desigualdades e privatização da vida social.

A nova esquerda chilena

Em muitos sentidos, o Chile foi um exemplo para o mundo progressista nos anos 90 e início dos anos 2000. A renda média das famílias duplicou em uma década. Entre 1990 e 2013, a pobreza diminuiu 80% graças a uma combinação de crescimento econômico sustentado e políticas redistributivas (especialmente a partir de 2000). Até mesmo a desigualdade de renda, embora ainda fosse a mais alta da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (ocde), caiu lentamente, sobretudo devido ao crescimento econômico dos setores mais pobres1.

Esses resultados ocorreram sob o governo de uma coalizão de centro-esquerda, que havia agrupado a oposição à ditadura de Augusto Pinochet: a Concertação de Partidos pela Democracia, que incluiu o Partido Democrata Cristão e o Partido Socialista, além de mais de uma dezena de forças menores. Durante a década de 90, quando Pinochet permanecia plenamente vigente no debate político, boa parte do sucesso político da Concertação revelou-se por sua capacidade de conter o ressurgimento dos militares. Essa contenção ocorreu no contexto do que ficou conhecido como a «política dos consensos» e se traduzia em um esforço permanente em gerar acordos legislativos e programáticos, avançando apenas no que fosse considerado «denominador comum» entre a Concertação e a oposição de direita. A respeito disso, em 1997, o reconhecido sociólogo chileno Tomás Moulian sacudiu algumas das bases do projeto concertacionista com seu livro Chile actual. Anatomía de un mito2. Ali se gestava o que posteriormente seria o lugar comum das críticas dos anos 90 e início dos anos 2000. Sob o manto da vitória do plebiscito que colocou fim à ditadura em 1989 e o sucesso econômico inegável, escondia-se um modelo econômico e social herdado da ditadura. O mito da «transição mais bem-sucedida do mundo» começava a mostrar suas primeiras fissuras.

É impossível explicar o surgimento de uma nova esquerda no plano político chileno sem pensá-la no marco de um longo processo de desgaste da histórica coalizão de centro-esquerda. Em parte – embora isto dificilmente seria reconhecido pelos integrantes da Concertação e da nova esquerda –, esse surgimento só pode ser entendido no contexto dos sucessos e fracassos econômicos e políticos da Concertação. Como será explicado mais adiante, o surpreendente crescimento econômico do Chile trouxe mudanças na estrutura produtiva e social do país, que levaram à aparição de novos atores sociais e demandas que, em parte, explicam essa nova esquerda. Por outro lado, o inesperado crescimento da nova esquerda e de sua coalizão política implica a negação das principais teses defendidas pela outrora bem-sucedida aposta eleitoral da centro-esquerda. A nova esquerda chilena é um monumento tanto às realizações como aos fracassos da Concertação.

A nova esquerda nasce da confluência de pelo menos duas correntes: uma parte dos que historicamente tentaram criar uma alternativa política situada à esquerda da Concertação (Partido Humanista e Partido Ecologista, entre outros), por vezes denominada «esquerda extraparlamentar» e os novos movimentos que emergem da mobilização estudantil de 2011. Estes últimos, surgidos no calor da maior mobilização desde o fim da ditadura, terminam liderando o processo de consolidação de uma nova coalizão, a Frente Ampla (fa), que altera os equilíbrios políticos anteriores.

A mobilização estudantil e a Nova Maioria

O modelo de educação implementado no Chile foi instaurado durante a ditadura, principalmente através das reformas legais de 1981. Assim como no sistema econômico em seu conjunto, no subsistema educacional as máximas de competição e empreendimento privado tornaram-se quase um dogma. Esse sistema conseguiu aumentar substancialmente a cobertura em educação superior, que passou de 16% a 46% entre 1990 e 20113. Mas justamente esse crescimento é uma das razões que explicam as fortes mobilizações de 2011. As contradições do sistema de educação superior chegaram a envolver uma proporção nunca vista da população chilena. Milhões de pessoas haviam depositado sua confiança e seus sonhos nas mãos do sistema educacional, e o que encontraram estava radicalmente distante do que esperavam. A promessa de menores custos da educação superior e de maior eficiência no gasto esteve longe de ser cumprida. De fato, o Chile chegou a ter a educação mais cara do mundo – ajustada pela renda per capita – e os valores continuavam subindo. Entre 1997 e 2009, por exemplo, as tarifas tiveram um aumento real próximo de 60%4. No entanto, o aspecto em que esse esquema de mercado falhou mais notoriamente foi na qualidade. Essa situação configurou um sistema de educação superior que mantém uma elite, já não tanto limitando o acesso, mas estabelecendo diferenciações por tipo de instituição e programa ao qual se tem acesso5. Segundo alguns relatórios, 39% das pessoas com curso superior obtinham retornos negativos uma vez incorporadas ao mercado de trabalho. Ou seja: para dois em cada cinco formados, ter estudado os tornava mais pobres6.

As contradições do sistema educacional chileno cristalizaram-se em um mal-estar generalizado com o modelo econômico que até esse momento parecia um tabu nos consensos da transição pós-ditatorial. No período 2009-2010, cerca de 19% das mobilizações propunham demandas de transformação político-estrutural, ao passo que em 2011-2012 esse tipo de reivindicação atingiu 45%7. O desgaste dos pilares que haviam permitido que a Concertação dirigisse o país se expressa com maior clareza em uma crescente desconfiança em relação à elite. Segundo o Barômetro da Política do Centro de Estudos da Realidade Contemporânea (cerc-mori), a queda dos níveis de confiança afeta praticamente todas as elites – políticas, econômicas e culturais8. Essa desconfiança pode ser explicada, em parte, pelos crescentes conflitos entre as demandas majoritárias da população e as margens de ação possibilitadas pela política dos acordos. É o que sugerem os dados do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (pnud), que indicam que mais de 70% dos cidadãos são a favor de que o Estado se encarregue da saúde, da educação e da aposentadoria, frente a uma elite que só apoiava isto de forma minoritária (menos de 30%)9.

O terremoto social de 2011 sacudiu a política chilena10. Por um lado, os três principais dirigentes do movimento estudantil – Camila Vallejo, Giorgio Jackson e Gabriel Boric – tornaram-se líderes de opinião com incidência nacional. Os três chegaram ao Parlamento em 2014, consolidando assim a chegada de uma nova geração que nunca viveu a ditadura em carne própria. Por outro lado, o impacto das mobilizações sociais de 2011 foi tão relevante que alterou a própria composição da Concertação. Com a consciência de que o momento político havia mudado, seus principais líderes se reagruparam em um projeto que excedesse o que havia sido alcançado nas primeiras duas décadas. Assim nasceu a Nova Maioria, formada com a incorporação do Partido Comunista – no qual Vallejo conseguiu ocupar um lugar de destaque – e que teve como líder Michelle Bachelet. Em 2014, a Nova Maioria chegou ao governo com um ambicioso programa e uma maioria parlamentar nunca vista em ambas as câmaras do Congresso. O novo governo empurrou a barreira do que se podia discutir no Chile. Além de importantes mudanças ao sistema educacional, entre muitas outras reformas icônicas está a de ter legalizado o aborto em três situações, legislado a união civil entre pessoas do mesmo sexo e para casais heterossexuais, uma reforma tributária que moderou os benefícios tributários das grandes empresas e o fim do sistema eleitoral (binominal) forjado pela ditadura. Desde os seus primeiros momentos, porém, o governo enfrentou permanentes dificuldades de gestão política. Em particular, logo no início os dirigentes democratas-cristãos deixaram clara a sua oposição a várias das iniciativas impulsionadas pelo governo11. O momento em que isto se materializou com maior clareza foi durante a discussão da reforma tributária. Apesar de ter maioria nas duas câmaras, a Nova Maioria acabou negociando com a direita a aprovação de um projeto alternativo. Para muitos, foi a reedição da política dos consensos dos anos 90. Essa percepção ganhou forma com a expressão adotada por um senador democrata-cristão de longa trajetória que liderou as negociações: «Nem todo mundo pode estar na cozinha»12. Apesar de tudo o que foi conseguido pelo governo da Nova Maioria, sua coalizão ficou irremediavelmente ferida ao expor as profundas diferenças internas que existiam uma vez que se abria o âmbito de discussão além das políticas dos consensos.

O nascimento da fa e as eleições de 2017

Quando a Nova Maioria assume, em 2014, inclui na coalizão de governo aquela que foi possivelmente a dirigente mais conhecida de 2011: Camila Vallejo. Os outros dois principais dirigentes (Jackson e Boric) não se incorporaram. Mas o partido de Jackson, chamado Revolução Democrática (rd), concordou em apoiar os projetos de reforma educacional e alguns aspectos adicionais do programa de governo. É provável que, em setores da Nova Maioria e do rd, existisse a crença de que essa «colaboração crítica» pudesse ser um primeiro passo para uma convergência mais substancial. Isto implicou um esfriamento nas relações entre o rd e outros aliados das mobilizações de 2011, que se posicionaram como oposição à Nova Maioria. No entanto, as projeções de convergência entre o rd e a coalizão de governo tornaram-se cada vez menos viáveis. Em 2016, concretizou-se um novo projeto de aliança, com a aproximação entre o rd e outros movimentos de origem estudantil, que assumiu o nome de Frente Ampla. A fa continuou a se consolidar com a união desse primeiro núcleo com a esquerda extraparlamentar e outros movimentos e partidos, e um fato decisivo foi a conquista da Prefeitura de Valparaíso. Essa vitória se deu pelas mãos do militante do Movimento Autonomista e ex-dirigente estudantil Jorge Sharp.

Valparaíso teve um papel central porque, por um lado, ajudou a desfazer a imagem de esquerda sem possibilidades eleitorais com a qual eram feitas as apostas políticas fora da Concertação e da Nova Maioria. Por outro lado, a forma como a coalizão se organizou após a candidatura de Sharp funcionou como esquema para a eleição nacional do ano seguinte. Sharp obteve mais votos (53,8%) que a Nova Maioria (22,4%) e a direita (22,6%) somadas. Isto reforçou a noção de que poderia ocorrer no Chile uma dispersão eleitoral fora das margens dos anos 90. Também existia a suspeita de que a aposta do governo de deslocar o discurso para o centro (o que as autoridades governamentais qualificaram como uma estratégia de «realismo sem renúncia»), sob as pressões democratas-cristãs, não captava as recentes mudanças na sociedade chilena. Sharp escutou uma demanda cidadã pelo novo – contra as velhas estruturas políticas –, o que tornou possível que sua plataforma fosse muito mais que a soma linear de estruturas orgânicas. Esse clima permitiu reposicionar a discussão no eixo elite/cidadãos, além de esquerda/direita. Já não se trataria só de uma disputa interna entre diferentes setores da política tradicional – esse lugar que, alegoricamente, era representado como uma cozinha onde não cabem todos –, e sim de uma aposta na expansão das fronteiras da política.

A vitória em Valparaíso gerou importantes expectativas e uma crescente convergência da esquerda extraparlamentar, a nova esquerda estudantil e uma multiplicidade de coletivos que se sentiram convocados. Assim, quando a fa foi oficialmente lançada, no início de 2017, conseguiu somar 14 movimentos e partidos políticos. Embora as previsões eleitorais não fossem animadoras, a nova coalizão conseguiu se consolidar com um impressionante resultado nas eleições presidenciais (ficou apenas dois pontos atrás do candidato da Nova Maioria) e parlamentares (elegeu 20 deputados e um senador). Como explicar esse resultado nas eleições de 2017?

Se houve um fato notável nessas eleições foi que, pela primeira vez desde o fim da ditadura, rompeu-se o histórico eixo socialista/democrata-cristão que deu vida à Concertação. Essa aliança buscou superar o que alguns consideraram uma experiência fracassada na Unidade Popular de Salvador Allende: o tensionamento entre esquerda e direita. E a isto somou-se um contexto mundial, nos anos 80 e 90, em que a esquerda sentia o fracasso do socialismo real, perdia influência nas classes trabalhadoras e via despontar os chamados valores «pós-materiais» e os deslocamentos ideológicos da «terceira via». A aliança baseava-se também numa leitura específica das divisões ideológicas da sociedade chilena: a população se distribuía em forma de curva de Gauss em termos de adesão no eixo esquerda/direita. Ou seja, a maioria se concentrava no centro político e, quanto mais longe do leste, menor seria o apoio entre a população. Seguindo essa lógica, a Democracia Cristã decidiu empreender seu «próprio caminho» e deixar a Nova Maioria, considerando-a muito à esquerda devido à incorporação do Partido Comunista e ao impulso reformista do governo de Bachelet. O próprio caminho – pensavam os dirigentes da Democracia Cristã – permitiria recuperar sua influência política apelando para um suposto «eleitor de centro» que tivesse ficado «órfão». Mas o resultado eleitoral do partido acabou sendo paupérrimo: sua presença parlamentar caiu fortemente, e sua candidatura presidencial ficou em quinto lugar. Isto parece refletir que, embora essa aproximação à distribuição de preferências ideológicas pudesse estar mais perto da realidade no início da transição dos anos 90, o contexto havia mudado. Assim, a seguinte tabela apresenta o nível de identificação no eixo esquerda/direita para 1993 e 2017:

Pode-se observar uma forte queda na identificação com todos os elementos do eixo esquerda/direita, especialmente na centro-esquerda, no centro e na centro-direita. Assim, os que não se identificam com esse eixo passam, no período descrito, de 11,5% a 48,6%.

Esse fato (observado em muitos outros estudos) permite olhar através de outra lente a aposta da Democracia Cristã no caminho próprio. Os eleitores no longo ciclo eleitoral se distanciam das referências políticas dos anos 90, mas o que os motiva não parece ser a busca de um «centro» perdido. Nesse sentido, o exemplo da eleição do prefeito de Valparaíso parece ser icônico em uma tendência que se consagrou no pleito de 2017: uma migração importante para uma votação diferente dos dois blocos tradicionais, mas que parece difícil de enquadrar na clássica clivagem do eixo esquerda/direita. Qual seria esse novo eixo que empurra as mudanças políticas no Chile?

No mundo, e no Chile, o debate político desde o final da década de 80 foi definido pela crescente preponderância das classes médias na maioria das democracias. Vale dizer: os filhos da classe trabalhadora que, graças aos novos acessos à formação técnica e profissional, conseguiram superar a barreira da pobreza. No caso chileno, o recente desenvolvimento capitalista, posterior à ditadura, estaria marcado por duas dinâmicas que definiram essas camadas médias. Por um lado, o acesso ao consumo, que trouxe padrões de conduta individualizantes e distantes de projetos comunitários ou coletivos. Por outro lado, e de modo paradoxal, uma força democratizante que levou a crescentes demandas por direitos civis e sociais. No Chile, o processo neoliberal e a democratização foram implementados em conjunto e penetraram na vivência cotidiana de importantes segmentos da população13. Ante esse cenário surgiram, cada vez com maior clareza, duas posições contrapostas, que não necessariamente correspondem à tradução política tradicional do eixo esquerda/direita. A primeira identifica como principal novo desafio encontrar uma forma de administrar as crescentes demandas dessa classe média emergente sem matar «a galinha dos ovos de ouro». O perigo era que essa nova classe, desagregada e individualista, demanda «impostos como nos Estados Unidos com um Estado de Bem-Estar dinamarquês». Ou seja: seriam metas intrinsecamente inconsistentes.

A partir dessa posição política, reclama-se que o grande erro da Nova Maioria teria sido escutar em demasia os estudantes mobilizados em 2011, acreditando que suas reivindicações realmente representavam um sentir majoritário consistente e coerente. O colapso eleitoral da Nova Maioria e o triunfo da direita seriam o resultado dessa leitura equivocada.

Um problema dessa interpretação é sua ambivalência sobre a consciência coletiva dessas camadas médias. Por um lado, considera que elas assumem um comportamento esporadicamente homogêneo e consistente para as disputas eleitorais. Ao mesmo tempo, presume que não são capazes de entender suas condições estruturais, para se encarregar delas no longo prazo. Traduzida às recentes eleições chilenas, a contradição nesta ambivalência poderia ser resumida na seguinte pergunta: como explicar que, numa mesma eleição, a surpresa tenha sido o sucesso tanto da coalizão que propunha o aprofundamento do modelo de desenvolvimento atual (direita) como da que propunha mais fortemente a mudança de rumo (fa)?

Nesse sentido, ganha força a segunda interpretação sobre a «armadilha dos países de renda média»14. Desse ponto de vista, o principal desafio na atual etapa de desenvolvimento não consiste em conter a emergente classe média, mas em superar uma elite que chegou a se constituir em torno de formas de produção rentistas. Um país pode crescer da renda baixa para a renda média com essa forma de produção, mas dificilmente poderá fazê-lo para avançar rumo a uma renda alta. Portanto, o principal desafio do momento seria incorporar novos segmentos da sociedade aos direitos sociais e, em geral, à tomada de decisão sobre o modelo produtivo. Isto seria tanto um projeto de justiça como de eficiência. De algum modo, a fa, em seus melhores momentos, conseguiu encarnar essa visão sobre o projeto de país.

Reflexão final: o que é a nova esquerda chilena?

Com os resultados eleitorais, a fa começou a ganhar notoriedade. Isto trouxe comparações com outros agrupamentos políticos. Em particular, menciona-se com frequência a Frente Ampla uruguaia e o Podemos da Espanha. A influência do modelo do Podemos, apesar de certas expectativas, foi bastante limitada: isto pode ser observado na noção de ocupar a centralidade do tabuleiro, em vez do centro, apelando à clivagem embaixo/em cima mais do que esquerda/direita, e na pretensão de ser um agrupamento que superou os tetos eleitorais históricos da esquerda. Este último aspecto se manifestou, por exemplo, na decisão de não declarar a coalizão como uma força unicamente de esquerda, mas aberta a distintas ideologias que compartilhassem um substrato político comum, o que permitiu a ampliação das margens para agrupamentos que se definiam de centro progressista, como o Partido Liberal. No entanto, o discurso da fa tentou rapidamente superar as arestas mais impugnadoras da referência espanhola e mostrar uma vocação de governo e convocação de maiorias prescindindo de apelativos como o de «casta» política15.A homonímia com a Frente Ampla uruguaia não é coincidência. Bem antes da formação da fa chilena, a Revolução Democrática já se propunha como desafio de médio prazo constituir uma «frente ampla», tendo o caso uruguaio como exemplo paradigmático16. Ao menos dois aspectos desse modelo chamavam a atenção. Primeiro, a possibilidade de constituir uma coalizão ampla, além da esquerda tradicional, mas com um programa que, comparado com o modelo econômico e social do Chile, tinha um claro cunho progressista. O modelo uruguaio continha uma amplitude orgânica similar à da Nova Maioria (do Partido Comunista até a Democracia Cristã), mas conferindo ao Estado, como garante de certos direitos sociais, um papel muito mais relevante que o chileno. Segundo, talvez o elemento fundamental do modelo da Frente Ampla uruguaia, dada a experiência com o governo da Nova Maioria, tenha sido um modo de funcionamento da coalizão que assegurasse o cumprimento de acordos programáticos, junto com uma participação da militância de base, no marco de uma «identidade frenteamplista» que extrapolasse as identidades partidárias. Isto permitiria pensar em uma diretriz ou um mandato programático que unisse a coalizão em sua diversidade.

Além das comparações com outras referências internacionais, os primeiros anos de vida da fa chilena revelaram seu principal defeito. Enquanto na forma há relativa clareza, no terreno programático há mais perguntas que respostas.

Isto se traduziu em dificuldades para coordenar uma bancada parlamentar composta por um grande número de coletivos políticos. Esse fenômeno não é próprio do Chile e parece estar se replicando em várias referências da nova esquerda no mundo, mas, no caso chileno, parece ser o epicentro de uma discussão acerca do surgimento de um novo ator social.

Nos próximos anos, a nova esquerda chilena viverá importantes momentos de definição. Sua capacidade de demonstrar que pode ser motor de um novo ciclo progressista para o Chile dependerá de, pelo menos, dois elementos. Em primeiro lugar, deverá convencer que, além de encarnar uma insatisfação com a maneira como o país é conduzido e uma demanda por renovação política, é capaz de formular novos consensos sociais, assim como de retomar a melhoria das condições materiais da população, algo que marcou o Chile no passado. Em segundo lugar, à medida que tiver acesso a espaços de poder institucional, a nova esquerda deverá mostrar suficiente capacidade de gestão política para, sem abandonar sua vinculação com os movimentos sociais, articular uma maioria com a esquerda e a centro-esquerda históricas. Em última instância, articular esses 50% mais um sem perder o que lhe permitiu chegar à arena política no primeiro momento. Para os dois desafios, o município de Valparaíso terá um papel fundamental, como exemplo da capacidade da coalizão de levar à prática o que – até agora – tem sido vontade e retórica. Às vezes, o ato mais revolucionário é que um município recolha o lixo a tempo e que os postes de luz funcionem adequadamente. Não basta o ímpeto que permite vencer eleições, como dizia Max Weber; é preciso saber governar perfurando lentamente tábuas duras, com paixão e prudência ao mesmo tempo.

  • 1.

    Noam Titelman: é economista formado pela Pontifícia Universidade Católica (puc) do Chile, mestre em Métodos de Pesquisa Social pela London School of Economics and Political Science (lse) e candidato a doutor pela mesma universidade. Foi presidente da Federação de Estudantes da puc e atualmente é militante da Revolução Democrática. Palavras-chave: desigualdades, nova esquerda, transição, Concertação, Chile.Nota: a versão original deste artigo foi publicada em espanhol em Nueva Sociedad No 281, 5-6/2019, disponível em ‹www.nuso.org›. Tradução de Eduardo Szklarz.. Osvaldo Larrañaga e María Eugenia Rodríguez: «Desigualdad de ingresos y pobreza en Chile 1990 a 2013», documento de trabalho, pnud Chile, 12/2014.

  • 2.

    lom Ediciones, Santiago, 1997, sem tradução no Brasil.

  • 3.

    Malone Gabor e Jordan Bazak: «The Price of Free Education», Council on Hemispheric Affairs, 12/10/2016.

  • 4.

    Patricio Meller: Universitarios, ¡el problema no es el lucro, es el mercado!, Uqbar Editores, Santiago, 2011.

  • 5.

    Carlos Rodríguez Garcés e Víctor Castillo Riquelme: «Empleabilidad, ingresos y brechas: un análisis comparativo de los procesos de inserción laboral en Chile» em Orientación y Sociedad vol. 14, 2014, p. 3.

  • 6.

    Sergio Urzúa: «La rentabilidad de la educación superior en Chile. Revisión de las bases de 30 años de políticas públicas» em Estudios Públicos No 125, verão de 2012.

  • 7.

    pnud: Desarrollo humano en Chile. Los tiempos de la politización, pnud, Santiago, 2015.

  • 8.

    cerc-mori: Barómetro de la política, 3/2015.

  • 9.

    pnud: op. cit.

  • 10.

    V., entre outras colunas, N. Titelman: «¿Qué pasó el 2011?: el derrumbe de la legitimidad de la élite» em El Mostrador, 1/7/2015.

  • 11.

    Ignacio Walker: El programa no es la Biblia ni una camisa de fuerza» em Cooperativa.cl, 20/4/2014.

  • 12.

    «Andrés Zaldivar rechaza críticas al acuerdo tributario: ‘No todo el mundo puede estar en la cocina’» em The Clinic, 15/7/2014.

  • 13.

    Para uma análise detalhada nesse sentido, v. Carlos Peña: Lo que el dinero sí puede comprar, Taurus, Santiago, 2017.

  • 14.

    Daron Acemoglu e James A. Robinson: Why Nations Fail: The Origins of Power, Prosperity, and Poverty, Profile Books, Londres, 2012.

  • 15.

    Por outro lado, no Podemos o eixo esquerda/direita retornou nas últimas eleições, e o apelo à clivagem entre «o povo» e «a casta» se enfraqueceu.

  • 16.

    V., a título de exemplo, Nicolás Valenzuela e Carlos Figueroa: «Mirando a Uruguay: la posibilidad de un Frente Amplio en Chile» em El Mostrador, 14/3/2014.

Este artículo es copia fiel del publicado en la revista Nueva Sociedad 2019, Dezembro 2019, ISSN: 0251-3552


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