Tribuna regional e global
NUSO Nº Julho 2018

Mal-estar no livre comércio Um novo papel para a OMC

Mal-estar no livre comércio  Um novo papel para a OMC

Nota: uma versão deste artigo em espanhol foi publicada em Nueva Sociedad No 271, 9-10/2017, disponível em www.nuso.org. Tradução do inglês de Luiz Barucke.

Introdução

Quando a Organização Mundial do Comércio (omc) foi criada, em 1995, logo após o final da Guerra Fria, seus Estados membros acreditavam plenamente que teriam adiante décadas de uma liberalização comercial ainda mais ambiciosa. A omc não só proporcionou um marco legal sem precedentes para forçar seus integrantes a estabelecerem compromissos com a abertura dos mercados nacionais, mas também pavimentou o caminho para uma liberalização comercial mais profunda em novas áreas, como o comércio de serviços. Naquela época de grande euforia do neoliberal Consenso de Washington, a maioria dos atores acreditava que o livre comércio traria benefícios tanto para o mundo desenvolvido como para os países em desenvolvimento. Duas décadas depois, em um período em que o modelo neoliberal enfrenta desafios à esquerda e à direita, o consenso por trás da ideia do livre comércio parece estar se desintegrando. Iniciativas recentes para fechar megaacordos regionais de comércio1, que prometem uma liberalização comercial em níveis inéditos, sofreram diversos reveses importantes. Parece haver pouco apetite político para reiniciar as negociações estacionadas sobre um Acordo de Parceria Transatlântica de Comércio e Investimento (apt) entre os Estados Unidos e a Europa. Anunciadas inicialmente como oportunidades inovadoras para a criação de padrões globais, essas conversas vêm sendo duramente criticadas nos dois lados do Atlântico. Os consumidores de cada país estão preocupados com a redução da segurança alimentar e de normas ambientais, e vozes mais à esquerda criticam a abertura da apt para que empresas acionassem governos judicialmente2. Ao mesmo tempo, líderes populistas fazem campanhas baseadas em nacionalismo econômico e exigem medidas protecionistas que favoreçam mais seus trabalhadores nacionais que os de outros países. Embora isso não signifique que o livre comércio esteja morto, como demonstra a recente conclusão do acordo de livre comércio entre eua e Japão, ficou claro que cresce o ceticismo com relação à promessa dos formidáveis benefícios dos mercados abertos.

Enquanto isso, o fracasso na conclusão da Rodada do Desenvolvimento de Doha da omc desapontou muitos Estados membros quanto à capacidade de o sistema multilateral regular o comércio global. A Rodada Doha – lançada em 2001 – a primeira e, até agora, única rodada de negociação da omc – foi declarada morta diversas vezes3. As negociações vêm se arrastando por mais de 16 anos sem gerar muitos resultados, enquanto cresce a necessidade de redigir novas regras que captem a natureza em transformação do comércio global. Tal situação tem incentivado diversos Estados a preencher as lacunas de regulação decorrentes com acordos bilaterais ou regionais de livre comércio que colocam a omc cada vez mais à margem e geram estruturas de governança mais fragmentadas.

Essa evolução contribui para aprofundar as incertezas sobre o futuro do sistema de comércio global e sua instituição central, a omc. Neste ensaio, defendemos que essas duas tendências mais proeminentes – a crescente fragmentação da regulação do comércio global e a emergência de sentimentos antiglobalização – definirão o futuro do sistema comercial. Concluímos apresentando diversas formas de lidar com os desafios que tais tendências apresentam e melhorar a situação atual, especialmente para os países em desenvolvimento. Em um sistema cada vez mais fragmentado, possibilitar que a omc avance em direção a uma maior coerência e concessões assimétricas para países em desenvolvimento será fundamental para que países de avanço mais lento não sejam deixados de fora. Para preservar a legitimidade do comércio internacional, contudo, os formuladores de políticas também precisarão fazer com que os mercados abertos atuem nos planos nacionais para suavizar – ao invés de aumentar – a desigualdade de renda.

Principais tendências que moldam a governança da política comercial mundial

A fragmentação e os crescentes sentimentos antiglobalização devem transformar fundamentalmente o sistema global de comércio e representam enormes desafios para uma economia mundial aberta e inclusiva. Para lidar com esses desafios, é importante compreender de onde eles vêm. Embora ambas as tendências sejam complexas, as grandes forças que as impulsionam são a multipolaridade e a desigualdade de riqueza nos países.

Como a multipolaridade contribuiu para a fragmentação da governança do comércio global. A mudança de um mundo unipolar para outro multipolar tem sido um importante fator para a fragmentação do sistema mundial de comércio. A regulação comercial tem se tornado cada vez mais difícil à medida que aumenta a quantidade de Estados membros ativos da omc e os problemas abordados. A mudança nas relações de poder em um mundo multipolar é uma razão fundamental para o enfraquecimento da Rodada Doha. O objetivo original dessa rodada era melhorar as perspectivas comerciais de países em desenvolvimento, compensando-os pelas concessões que fizeram no período anterior ao estabelecimento da omc, mas o ímpeto político para um resultado orientado ao desenvolvimento logo desapareceu. Em vez disso, a capacidade e a disposição de economias emergentes como Brasil, Índia e China de se oporem aos poderes estabelecidos levaram a uma indefinição sobre como (e se) cumprir as promessas da Rodada Doha relativas ao desenvolvimento. O impasse entre a China e países ocidentais4 quanto a seu «status de economia de mercado» na omc é um exemplo representativo5.

A incapacidade dos membros da omc de ajustar a organização às novas realidades acabou por reduzir sua relevância. Com a perspectiva de um grande avanço sendo limitada, os Estados membros consideram cada vez mais que o tempo e o esforço investidos em diálogos multilaterais são desproporcionais aos ganhos que poderiam obter. Como consequência, eles passaram a adotar formas alternativas de negociação, concentradas em grupos menores de países – denominados acordos plurilaterais em vez de multilaterais – ou em questões específicas em detrimento de acordos mais abrangentes.

Os acordos plurilaterais na estrutura da omc parecem oferecer alternativas muito mais fáceis e rápidas de colher alguns benefícios comerciais, ainda que mais limitados. Por exemplo, somente 53 dos 164 membros da omc assinaram em 2015 a prorrogação do plurilateral Acordo de Tecnologia da Informação em Nairóbi. Ao mesmo tempo, testemunhamos o crescimento de uma nova modalidade de negociação e da autorização de acordos parciais: na ix Conferência Ministerial realizada em Bali em 2013, os membros da omc permitiram pela primeira vez acordos parciais e com focos mais limitados. Isso permitiu que concluíssem o Acordo de Facilitação Comercial, mas os críticos lamentam que essa abordagem por partes dificulte o tratamento de questões centrais da Rodada Doha, como os subsídios agrícolas, que envolveriam conflitos de escolha como parte de um acordo mais amplo e abrangente.

Para além da omc, testemunhamos cada vez mais uma regionalização da cooperação comercial. Concentrar a política comercial em regiões individuais permite que os governos selecionem ou excluam parceiros comerciais específicos. Por exemplo, o acordo da Parceria Transpacífico (tpp) previsto entre os eua e 11 Estados do Pacífico não inclui a China. Por sua vez, a China está negociando seu próprio acordo de comércio regional, a Parceria Econômica Regional Abrangente (rcep), com 15 parceiros da Ásia e do Pacífico. Somado ao crescente número de acordos plurilaterais de comércio, isso tem criado um sistema comercial muito mais fragmentado e no qual a omc passou a ter um papel bem menos central.

Portanto, a mudança nas relações de poder e o desgaste do consenso tornaram mais difícil para a organização regular o comércio global e manter sua centralidade no sistema, tendência que deve se aprofundar no futuro à medida que a multipolaridade for ampliada.

Sentimentos antiglobalização: desigualdade de renda e outros fatores de influência. As populações de economias cada vez mais abertas têm percebido que a liberalização comercial não levantou todos os barcos e que, em vez disso, parcelas da sociedade podem estar ainda pior em decorrência da nova realidade. Especialmente as negociações de acordos megarregionais como o apt e a ppt têm tido uma reação contrária sem precedentes por parte da sociedade, e a oposição pública à liberalização comercial parece ganhar força em muitas economias. De forma similar, as recentes vitórias eleitorais de líderes populistas como Donald Trump, que fez campanha contra o livre comércio como nenhum outro candidato na história recente dos eua, demonstram o apelo de políticos que dão voz à insatisfação com a realidade e àqueles que se percebem como os perdedores da globalização. Um importante fator que promove os crescentes sentimentos antiglobalização em muitas sociedades está associado à desigualdade de renda.

A globalização ampliou oportunidades para muitos exportadores, empresas multinacionais, investidores e profissionais que podem extrair vantagens de mercados maiores e interconectados, e ajudou também alguns países pobres a transformarem rapidamente suas economias, aumentando as exportações e reduzindo a pobreza. Mas o preço pago pelo declínio geral da desigualdade global foi o crescimento das desigualdades nacionais e fissuras socioeconômicas. De acordo com um estudo recente, cerca de dois terços das famílias de 25 economias avançadas sofreram redução ou estagnação salarial entre 2005 e 20146. Os impostos e transferências ajudaram a suavizar o baque, mas a renda disponível se manteve estável ou caiu de 20% a 25% em média nos segmentos de renda. A incapacidade dos governos de administrar as perturbações domésticas geradas pela globalização gerou frustrações e incertezas no lado perdedor de uma economia aberta.

Para que fique bem claro, os mercados abertos não são o único fator responsável pela desigualdade de renda; para muitos, a digitalização, a automação e a desregulamentação desempenham um papel tão ou mais importante para essa realidade. Contudo, a liberalização comercial costuma ser a grande mencionada como a causa mais controversa de deslocamento do trabalho e declínio da renda. Como defende o economista Dani Rodrik, da Universidade de Harvard, isso não ocorre apenas porque a política comercial é um bode expiatório conveniente que permite a políticos colocarem a culpa nos estrangeiros7; além disso, o comércio «se maculou com um estigma que [o progresso tecnológico] conseguiu evitar», já que coloca os trabalhadores de um país em competição direta com outros que podem não seguir as mesmas regras.

Adicionalmente, a oposição pública à liberalização comercial em muitas sociedades ocidentais é alimentada por preocupações quanto a seus efeitos sobre o processo democrático de elaboração de políticas, especialmente se os acordos comerciais levarem a uma erosão de «regulamentações sociais» como a proteção ao consumidor, normas trabalhistas e ambientais8. Enquanto isso, em muitas regiões de países em desenvolvimento, como a América Latina, a preocupação com a privatização e a desregulamentação já gerou anteriormente críticas à agenda de globalização neoliberal diante do crescimento do desemprego9.

Desafios para um sistema comercial aberto e inclusivo

A fragmentação e os desafios da complexidade e do crescimento desigual. Uma maior fragmentação incentivará alguns países pioneiros a cooperarem mais profundamente com parceiros comerciais selecionados. Consequentemente, isso aumentará os riscos para os membros que avancem com menos velocidade, especialmente países pobres em desenvolvimento, que poderiam ser alijados do processo. Mas, de maneira geral, é provável que a crescente complexidade dificulte a regulação do comércio global para todos os países.

O número cada vez maior de iniciativas empreendidas fora da omc deve reduzir a influência dos países em desenvolvimento na futura estrutura do sistema mundial de comércio. Embora os membros em desenvolvimento já tenham unido forças anteriormente na omc em defesa de seus interesses econômicos, as negociações em subgrupos limitam a formação desse tipo de coalizão. Os riscos são menores para as potências comerciais emergentes, que podem entrar na competição por parcerias comerciais regionais, mas não é esse o caso de muitos países em desenvolvimento menores da África, América Latina ou Ásia. A China já está negociando a rcep e também sua Iniciativa Um Cinturão, Uma Rota para promover a cooperação com a Ásia Central e a Europa10.

Ao mesmo tempo, a disseminação de acordos de comércio bilaterais e regionais exerce muito mais pressão pela liberalização sobre os países em desenvolvimento11. A fim de cumprirem as normas da omc, esses acordos devem ir além dos atuais compromissos multilaterais para que obtenham maior abertura dos mercados. Os países em desenvolvimento que não querem ficar relegados são forçados a concordar com a liberalização em cada vez mais áreas. Enquanto isso, novos acordos bilaterais e regionais fechados por outros países não só compensariam o acesso preferencial a mercados desenvolvidos de que gozam muitas nações em desenvolvimento, mas também poderiam lhes dificultar a atração de capital e tecnologia.

Finalmente, a fragmentação também aumenta a complexidade, o que tornará mais difícil e cara para todos a regulação do comércio global. Se as regras não forem definidas de modo multilateral, não haverá grandes chances de serem muito diferentes de acordos bilaterais ou regionais. Isso significa menos transparência e mais custos para os produtores no cumprimento de um conjunto sem fim de regras segundo o destino de suas exportações. Por exemplo, os exportadores precisam seguir diferentes normas de origem para terem acesso às tarifas inferiores previstas por acordos de livre comércio, ao passo que os cortes de tarifas definidos pela omc se aplicam a todos.

Sentimentos antiglobalização e o desafio de um crescente protecionismo. Os debates sobre o papel do Estado na administração de mercados interconectados, na redistribuição dos ganhos comerciais e na manutenção do precário equilíbrio entre grupos de interesses domésticos devem se tornar politicamente mais controversos no futuro. Segmentos da população que se sentem prejudicados com a maior abertura econômica podem se afastar da política ou optar cada vez mais por partidos populistas ou nacionalistas que prometam soluções simples para problemas complexos. No curto prazo, os governos podem recorrer a um crescente número de medidas protecionistas em uma tentativa de atrair interesse especial ou partes significativas do eleitorado.

O resultado provável do crescimento de medidas protecionistas em todo o mundo – e particularmente em países ocidentais – será um caráter mais conflituoso das relações comerciais. O relatório mais recente da Global Trade Alert12 demonstra um forte aumento na quantidade de ações políticas dos eua que feriram interesses comerciais de outros membros do g-20 nos primeiros seis meses da administração Trump. O documento também aponta que o número de medidas discriminatórias implementadas pelo g-20 apresentou uma tendência de alta nos últimos cinco anos, apesar das reiteradas promessas de não recorrer ao protecionismo.

Os países em desenvolvimento podem sofrer mais as consequências desse crescimento do protecionismo comercial nas nações ocidentais. O peso econômico dos países em desenvolvimento menores é muito limitado para poderem fazer frente às medidas protecionistas com ameaças de retaliação. Além disso, não há nenhuma garantia legal de que grandes importadores, como União Europeia e os eua, apoiarão os atuais esquemas unilaterais de acesso a mercados preferenciais por países em desenvolvimento se o protecionismo seguir esta escalada atual. Já se manifestou o receio de que os eua possam revogar a Lei de Crescimento e Oportunidade para a África (Agoa), que habilita países da África Subsaariana a exportarem determinados produtos para o país norte-americano com isenção de tarifas. Cabe notar que o desafio do crescente protecionismo não implica que medidas protecionistas sejam necessariamente problemáticas. A omc reconhece muitas razões válidas para a prática do protecionismo – por exemplo, em questões de saúde pública e segurança essencial – e as medidas protecionistas costumam ser consideradas legítimas se empregadas por países em desenvolvimento em nome da «recuperação». Políticas industriais proativas são uma ferramenta fundamental para migrar o emprego do setor agrícola para o industrial com mais produtividade13. Mas essa prática difere claramente do crescente número de medidas comerciais que geram distorção e que são empregadas em busca de benefícios políticos, violam ou driblam frequentemente as normas da omc e desequilibram ainda mais o jogo em favor dos países poderosos. Em um mundo de nacionalismos econômicos, em que todos os países recorrem a um protecionismo injusto, os países menores sairão perdendo.

Soluções: reviver a omc e enfrentar a crescente desigualdade

A estabilidade e a inclusão do sistema de comércio mundial dependem da resposta aos desafios apresentados pela erosão da centralidade da omc e pelos crescentes sentimentos antiglobalização.

Assegurar a abertura e a inclusão em um sistema comercial cada vez mais complexo. O principal desafio para os formuladores de políticas comerciais nos próximos anos será evitar a perda ainda maior de relevância da omc como fórum central de negociação. Um «sistema de múltiplos níveis e velocidades» implica que os países sejam tratados com menos igualdade no futuro. Atualmente, nem a omc nem seus membros individualmente podem deter aqueles que buscam uma integração mais profunda com parceiros comerciais selecionados. No entanto, o que pode ser feito em um sistema de múltiplas velocidades é vincular os grupos de integração profunda com os membros de avanço mais lento, protegendo ao mesmo tempo e possivelmente aumentando um conjunto de regras comerciais fundamentais que sejam aceitáveis para todos. Isso reduzirá os riscos de deixar para trás os países em desenvolvimento.

Como uma forma de controlar os danos, será importante assegurar que os acordos bilaterais e plurilaterais complementem o sistema de comércio mundial em vez de debilitá-lo. O que será importante nesse processo é destacar o papel da omc no incentivo de maior coerência na elaboração de políticas comerciais globais. Embora seja improvável que a omc tenha em algum momento a capacidade efetiva de rever acordos bilaterais ou regionais entre os Estados membros, a organização será crucial para unir os pontos de vista de seus integrantes e fornecer parâmetros e diretrizes para o futuro desenvolvimento do regime comercial como um todo.

Ainda que não tenha como evitar a fragmentação, a omc pode proporcionar orientação sobre como administrá-la. Promover a inclusão do sistema precisa ser o grande objetivo: novos acordos, independentemente do número de signatários, não devem perder de vista os interesses dos Estados excluídos e oferecer formas de transmitir concessões de abertura de mercados a outros países. Dessa forma, exportadores de todos os países poderiam se beneficiar, tenham ou não assinado o acordo. Os acordos plurilaterais vigentes na omc já adotam essa abordagem. Mas essa prática também poderia ser aplicada em acordos bilaterais e regionais, especialmente para ampliar o acesso aos mercados a produtores de países menos desenvolvidos.

De maneira semelhante, uma cláusula de adesão abriria acordos bilaterais ou regionais a partes interessadas14. Ainda que os países aderentes tivessem pouca influência sobre o conteúdo de acordos já existentes, o papel de «destinatários de regras» poderia ser aceitável para economias que já tenham negociado seus próprios acordos bilaterais com um ou todos os signatários, e que continuam tendo profunda interdependência com esses mercados. Considerar a alternativa de adesão parcial também poderia significar a aplicação de obrigações menos numerosas ou menos exigentes a países em desenvolvimento aderentes em áreas como serviços, competição e investimentos.

Em um nível mais fundamental, contudo, a falta de vontade política entre os membros da omc para cumprir as promessas de Doha em benefício de países em desenvolvimento tem um sabor particularmente amargo numa época em que muitos líderes de países desenvolvidos declaram sua intenção de «fazer mais na África» por temor ao aumento dos fluxos de refugiados. É improvável que as promessas de ajuda nivelem o campo de jogo. É hora de mostrar mais desejo político para transformar a omc em uma instituição que reforce a coerência entre o comércio e outros objetivos15. Entre eles, ferramentas políticas acordadas em outros ambientes multinacionais, como a Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável, normas trabalhistas e os Princípios Orientadores sobre Empresas e Direitos Humanos das Nações Unidas. Os Estados membros da omc e suas respectivas missões poderiam, por exemplo, investir na ampliação de pessoal mais qualificado para lidar com vínculos entre o comércio e outras áreas problemáticas. A maior rotatividade de integrantes de ministérios e departamentos não comerciais para romper o isolamento de formuladores de políticas comerciais seria uma medida fundamental para assegurar que coerência não continue sendo simplesmente um termo da moda.

Combater a desigualdade em cada país compensando os perdedores do livre comércio. Para fazer frente ao crescimento das tendências protecionistas e da desilusão pública com a abertura econômica, será fundamental lidar melhor com o aumento da desigualdade nos países, com a qual o comércio global passou a se associar. Grande parte das recentes objeções à globalização pode ser considerada uma reação aos muitos anos em que figuras políticas e economistas minimizaram os efeitos malignos do livre comércio. Seu reconhecimento tardio de que a abertura econômica produz necessariamente vencedores e perdedores levou hoje a um novo debate sobre a compensação dos perdedores com programas de requalificação e Estados de bem-estar mais fortes. Mas os mecanismos de compensação existentes não serão suficientes para combater os efeitos negativos e provavelmente não conseguirão romper a rejeição generalizada à globalização econômica. Na verdade, é necessária uma resposta contínua e previsível ao potencial perturbador do livre comércio que se incorpore plenamente nos Estados de bem-estar e expanda as redes de segurança constituídas.

Os mecanismos de compensação existentes, como a Assistência de Ajuste Comercial (taa) nos eua e o Fundo Europeu de Ajustamento à Globalização (feg) da União Europeia, continuam limitando seu apoio a trabalhadores deslocados16. Uma análise oficial da taa realizada pelo Departamento do Trabalho dos eua identificou que os benefícios do programa não compensam plenamente a força de trabalho afetada pela redução salarial. De modo semelhante, com um orçamento anual de 150 milhões de euros, o feg só pôde ajudar uma parcela dos trabalhadores europeus afetados desde sua criação, em 200717. E ainda que a Comissão Europeia defenda atribuir um caráter mais operacional e flexível ao fundo18, os governos nacionais permanecem majoritariamente responsáveis pelas ferramentas políticas de compensação direcionadas aos perdedores. Como é escasso o fluxo de recursos adicionais a medidas de assistência social passiva como redes de seguridade social estabelecidas, os trabalhadores tendem a receber compensação insuficiente pela pressão extra que a liberalização comercial, a automação e outros fatores exercem sobre seus salários e perspectivas de emprego.

Pesquisas sugerem que cresce o apoio público a acordos comerciais – especialmente entre pessoas com menores salários – quando o comércio é acompanhado de assistência para ajustes de curto prazo19. Mas resta ao menos uma preocupação fundamental com a compensação que está diretamente vinculada ao crescimento da liberalização comercial. Rodrik defende uma hipótese convincente:

Como custa caro reverter acordos comerciais, os governos são sempre incentivados a prometer compensação, mas ela raramente se concretiza. Os vencedores precisam do consentimento dos perdedores para o acordo, mas, a partir do momento em que ele é aprovado, não há muita razão para que os primeiros cumpram suas promessas. Em grande medida, essa é a história da taa nos eua20.

Essa observação destaca a importância de políticas de redistribuição que estão solidamente integradas a Estados de bem-estar e não sujeitas a lógicas de curto prazo. Ela também aponta para uma mudança muito mais fundamental no equilíbrio de forças entre capital e trabalho. Os mercados abertos têm reduzido sucessivamente a influência do trabalho organizado na definição de salários em âmbitos nacionais, na realização de acordos comerciais benéficos para os trabalhadores e na expansão de redes de segurança nacionais. Nessas circunstâncias, a compensação real raramente ocorre e é, em muitos casos, extremamente limitada em alcance e duração.Aliviar as perdas provenientes de acordos comerciais requer mecanismos permanentes incorporados a Estados de bem-estar que garantam a justa divisão de custos e benefícios. Não se pode depender de medidas protecionistas ou tarifas punitivas para proteger de modo seguro os trabalhadores de um país nem recuperar os postos de trabalho perdidos. De forma semelhante, pelas razões mencionadas anteriormente, a compensação não deve ser uma reação às negociações comerciais, tampouco se adaptar a elas. A redistribuição dos ganhos obtidos com o comércio para compensar as pressões salariais e a perda de postos de trabalho deve ocorrer juntamente com medidas que lidem com outros fatores de mudança no mercado de trabalho, como a automação, a digitalização e o crescimento ou declínio da população em idade ativa. Isso também significa que os Estados precisam de sistemas de bem-estar e tributação progressiva, além da capacidade de impedir que empresas multinacionais e as pessoas mais ricas aproveitem brechas fiscais ou ocultem suas riquezas em paraísos fiscais. A redistribuição dos ganhos do comércio deve ser parte de um esforço mais amplo para enfrentar a desigualdade. Consequentemente, o ajuste da abertura econômica requer uma resposta muito mais abrangente, que vá além do comércio para envolver todo o espectro da política social. Será fundamental aprender com as experiências dos países latino-americanos que introduziram diversos programas sociais, inclusive transferências de renda direcionadas aos mais pobres21, e dos países escandinavos que geraram modelos de renda básica22.

Conclusão

Quando a omc foi criada, há duas décadas, muitos consideraram que as promessas de globalização econômica seriam irresistíveis e a sucessiva liberalização comercial, uma consequência natural. Mas a política comercial continua sendo uma questão em disputa, já que possui importantes consequências distributivas tanto nacional como internacionalmente. Com uma variedade cada vez maior de atores encontrando seu espaço em negociações comerciais multilaterais e grupos nacionais associando comércio a desigualdade, insegurança e menos perspectivas, a liberalização comercial se tornou mais controversa.

Em um sistema de comércio global cada vez mais complexo, habilitar a omc para promover mais coerência será fundamental para evitar a fragmentação e o crescimento de regras e abordagens conflitantes. Para superar as brechas entre os membros mais avançados e aqueles que progridem mais lentamente, é preciso envolver formas para que outros países tenham acesso aos mercados, fornecer diretrizes para a liberalização comercial bilateral ou regional, e reforçar a coerência entre política comercial e outros objetivos acordados, como os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável. Essas medidas ajudariam os Estados mais pobres e contribuiriam para reduzir a desigualdade internacional.

Mas, para preservar a legitimidade do comércio internacional e evitar o crescimento de medidas protecionistas injustas sugeridas por populistas de direita, os formuladores de políticas também precisarão enfrentar a crescente desigualdade em cada país. Ainda que demorem para reconhecer essa tendência, muitos governos têm se expressado mais no sentido de permitir que os cidadãos aproveitem melhor as oportunidades da globalização econômica. Trata-se de uma tarefa difícil. Diante da agitação populista em alguns países, pode ser necessário que a reconciliação envolva uma reformulação no modo como as preferências da sociedade são articuladas e como são definidos os objetivos da política comercial. E, o que é mais importante, o livre comércio deve ser complementado com políticas distributivas nacionais justas que limitem seu potencial disruptivo e, dessa forma, revertam a guinada rumo ao nacionalismo econômico.

  • 1.

    Esses acordos tratam de um maior intercâmbio no comércio mundial, mas também defendem uma liberalização profunda que afete a regulação comercial interna dos países, inclusive em questões como normas de produtos e direitos trabalhistas, em contraste com acordos que priorizam o corte de tarifas.

  • 2.

    Claire Provost e Matt Kennard: «The Obscure Legal System that Lets Corporations Sue Countries» em The Guardian, 10/6/2015.


  • 3.

    Evan Davis: «The Death of the wto’s Doha Talks» em BBC, 25/7/2006.

  • 4.

    Mark Wu: «The ‘China, Inc.’ Challenge to Global Trade Governance» em Harvard International Law Journal vol. 57 Nº 2, segundo trimestre de 2016.

  • 5.

    Tratar a China como uma «economia de não mercado» na qual prevalecem os subsídios estatais em muitos setores permite a países importadores um uso mais estrito de sua defesa comercial e medidas antidumping, algo que Pequim deseja
    abolir. A China está processando atualmente a União Europeia e os Estados Unidos no Órgão de Solução de Controvérsias da omc por descumprirem seus compromissos de passar a tratá-la como uma economia de mercado até dezembro de 2016.

  • 6.

    Richard Dobbs et al.: «Poorer than Their Parents? A New Perspective on Income Inequality», McKinsey Global Institute, 7/2016.

  • 7.

    D. Rodrik: «Populism and the Economics of Globalization», nber W orking P aper Nº 23.559, 6/2017.

  • 8.

    F. Bohnenberger e Christian Joerges: «A Conflicts-Law Response to the Precarious Legitimacy of Transnational Trade Governance» em Moshe Hirsch e Andrew Lang (eds.): Research Handbook on the Sociology of International Law, Edward Elgar, no prelo.

  • 9.

    Stephen Marks: «Latin America’s Rising Anti-Globalisation Movement» em Green Left Weekly, 28/1/2001.

  • 10.

    Ver Dietmar Dirmoser: «La Gran Marcha china hacia el oeste. El megaproyecto de la nueva Ruta de la Seda» em Nueva Sociedad No 270, 7-8/2017, disponível em www.nuso.org.

  • 11.

    C. Weinhardt e F. Bohnenberger: «Risks of TTIP and TTP» em D+C, 21/8/2015.

  • 12.

    Simon J. Evenett e Johannes Fritz: «Will Awe Trump Rules: Global Trade Alert Report», CEPR / Max Schmidheiny Foundation / Global Trade Alert, Londres, 2017, disponível em www.globaltradealert.org/reports/42

  • 13.

    UNCTAD: «Trade and Development Report, 2016», onu, 2016, disponível em <http://unctad.org/en/PublicationsLibrary/tdr2016_
    en.pdf>

  • 14.

    F. Bohnenberger e C. Weinhardt: «TTIP: How to Minimize Risks For Third Countries» em Atlantic-Community.org, 28/4/2015.

  • 15.

    C. Weinhardt: «The wto Bicycle Is Falling Over And Needs A New Push» em Social Europe, 30/11/2016.


  • 16.

    Benjamin Collins: «Trade Adjustment Assistance for Workers and the taa ReauthorizationAct of 2015» em Congressional Research Service, 14/9/2016.

  • 17.

    Ronald D’Amico e Peter Z. Schochet: «The Evaluation of the Trade Adjustment Assistance Program: A Synthesis of Major Findings» em Mathematica Policy Research, 30/12/2012.

  • 18.

    Comissão Europeia: «Reflection Paper on Harnessing Globalisation», 10/5/2017.

  • 19.

    Sean D. Ehrlich e Eddie Hearn: «Does Compensating the Losers Increase Support for Trade? An Experimental Test of the Embedded Liberalism Thesis» em Foreign Policy Analysis vol. 10 No 2, 2014.

  • 20.

    D. Rodrik: op. cit., p. 12.

  • 21.

    Santiago Levy: «Is Social Policy in Latin America Heading in the Right Direction? Beyond Conditional Cash Transfer Programs» em Brookings, 21/5/2015.

  • 22.

    Jon Henley: «Finland Trials Basic Income for Unemployed» em The Guardian, 3/1/2017.

Este artículo es copia fiel del publicado en la revista Nueva Sociedad , Julho 2018, ISSN: 0251-3552


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