Tema central
NUSO Nº Junho 2017

A democracia conseguirá sobreviver ao século XXI?

A democracia liberal é o único sistema de governo que emergiu do conturbado século xx com legitimidade global. No entanto, seus princípios fundacionais se encontram hoje sob ataque nas democracias industrializadas. Como explicar esse fenômeno? Um novo contexto global, caracterizado pela relocalização da produção industrial, impele os eleitores a respaldar lideranças cada vez mais radicalizadas. A experiência latino-americana sugere que esses governos intransigentes erodem os direitos políticos e as liberdades civis de seus adversários. As tentativas de renovar a democracia costumam conduzir, inesperadamente, a formas veladas de poder autocrático.

A democracia conseguirá sobreviver ao século XXI?

Os princípios da democracia liberal encontram-se sob questionamento nos países do Atlântico Norte que foram seus maiores representantes durante a segunda metade do século xx. Nos Estados Unidos, Donald Trump ganhou a eleição presidencial com um discurso hostil ao ideal de diversidade que impulsionou o desenvolvimento democrático a partir de 1965. Na Europa, os partidos tradicionais que dominaram a política do pós-guerra perdem votos em benefício de uma direita nacionalista que resiste à integração regional e rejeita a tolerância cultural. Essa força em ascensão inclui a Frente Nacional na França; o Partido do Povo na Suíça (svp, na sigla em alemão), a legenda mais votada desde 2003; o Partido da Liberdade (fpö, na sigla em alemão) na Áustria; e os Democratas na Suécia, que já controlam 14% dos assentos do Parlamento.

É paradoxal que essa crise se manifeste nos países centrais exatamente quando a democracia liberal parece ser o único sistema de governo com legitimidade global. Pouco mais da metade dos países do mundo possuem hoje governos democráticos, um recorde na história humana. Até mesmo os regimes autoritários contemporâneos – salvo raras exceções, como a Arábia Saudita – simulam ter credenciais republicanas. Esse é, sem dúvida, o grande legado político do século xx, um legado que será disputado ao longo do próximo século.

O argumento central deste ensaio é que a relocalização global da atividade industrial tem produzido uma crescente segmentação do mercado de trabalho nos países centrais. A exclusão de importantes setores do eleitorado das cadeias produtivas gera um risco para as democracias industrializadas. Algumas experiências recentes na América Latina sugerem que esse contexto é favorável para o surgimento de líderes com discursos radicalizados, que promovem a concentração do poder no Executivo e a erosão das liberdades civis. O principal risco para a democracia do século xxi não é representado por líderes abertamente autoritários, mas por aqueles que propõem reformar o sistema a partir de um discurso intolerante.

A democracia em jogo

Para compreender esse problema, é necessário estabelecer no que consiste o sistema atualmente em disputa. A forma de governo conhecida como democracia – com eleições regulares, partidos políticos e calorosos programas de debate na televisão – poderia ser descrita com maior precisão como uma república liberal de massa, um regime definido por três elementos. O primeiro deles, central para os debates do século xix, é a ideia de um governo operado por instituições representativas nas quais os líderes exercem poder por tempo limitado. As monarquias parlamentares aceitaram transformar-se em repúblicas de fato ao entregarem o governo a um gabinete sujeito a eleições periódicas. O segundo elemento se manifesta na ideia de direitos constitucionais que protegem todos os cidadãos e limitam o exercício do poder por parte dos governantes eleitos. Finalmente, o terceiro princípio justifica a invocação da democracia ateniense: existe um direito à participação popular, expressa através do sufrágio «universal». As fronteiras dessa «universalidade» foram renegociadas ao longo de dois séculos para incorporar homens sem propriedade, mulheres, eleitores jovens e grupos étnicos excluídos pelas populações de origem europeia.

É importante destacar a novidade dessa adaptação institucional, bem como sua contingência histórica. Esse modelo, vagamente inspirado na República romana, era desconhecido até o final do século xviii e emergiu progressivamente como resultado da experimentação institucional ocorrida nos séculos xix e xx1. A Segunda Guerra Mundial transformou a república liberal de massa no modelo «oficial» dos países capitalistas do Atlântico Norte, e o fim da Guerra Fria permitiu sua expansão à Europa Oriental, seu fortalecimento na África e estabilização na América Latina.

O mundo do pós-guerra oferecia uma afinidade eletiva entre produção industrial e república liberal de massa que as ciências sociais interpretaram de diferentes formas. A teoria da modernização propôs, a partir do final da década de 1950, a existência de uma relação causal entre desenvolvimento econômico e democratização. Já a teoria da dependência interpretou esse mesmo padrão a partir de uma perspectiva menos otimista, como conflito entre um «centro» composto de democracias industrializadas e uma «periferia» de democracias instáveis e ditaduras produtoras de matérias-primas. Essa concepção do mundo está sendo questionada atualmente.

A periferização dos países centrais

O mundo que inspirou as teorias da modernização e da dependência foi alterado pelo deslocamento da produção industrial em direção à «periferia» e pela desaceleração do crescimento nos países «centrais». Esse processo começou lentamente com a instauração de um modelo de desenvolvimento industrial orientado à exportação no Japão, Coreia do Sul e Taiwan, acelerando-se com as reformas realizadas por Deng Xiaoping na China dos anos 1980. O delta do rio das Pérolas representa hoje uma das maiores concentrações urbanas e industriais do planeta. Estima-se que a China produza atualmente 70% dos telefones celulares e 60% de todos os sapatos vendidos no mundo2.A vantagem desses competidores globais, baseada em um custo menor do trabalho em relação às democracias industrializadas, foi reproduzida posteriormente pelo México e parte do Sudeste Asiático. Uma empresa localizada no Centro-Oeste dos eua paga a seus operários industriais aproximadamente 20 dólares por hora. No México, a mesma empresa paga atualmente cerca de cinco dólares pelo mesmo período de trabalho. Ao migrar para o sul, portanto, uma fábrica de dois mil operários economiza por volta de 60 milhões de dólares anuais em salários. Dessa forma, a educação de nível secundário que assegurava aos eleitores estadunidenses condições de vida de classe média na segunda metade do século xx garante apenas um emprego incerto no início do século xxi.

Esse processo gerou uma inesperada periferização das democracias industriais. A teoria da dependência observou uma concentração de indústrias de alta tecnologia nas democracias centrais e previu uma dispersão de indústrias com tecnologia obsoleta e produção de matérias-primas rumo à periferia. Sob essa divisão internacional do trabalho, a alta produtividade dos países centrais permitiria manter salários elevados e financiar seu Estado de Bem-estar. Nos países periféricos, ao contrário, a força de trabalho se encontraria segmentada entre uma elite integrada às cadeias de produção globalizadas e uma população marginal cuja atividade econômica – orientada estritamente ao mercado local – estaria exposta a uma feroz concorrência por parte dos líderes industriais do planeta3.

Em uma estranha reversão da riqueza, a força de trabalho das democracias industriais encontra-se hoje em uma situação que lembra as previsões dependentistas para os países latino-americanos. O núcleo mais dinâmico dos processos de pesquisa e desenvolvimento tecnológico continua concentrado nas democracias industrializadas, mas o deslocamento das atividades produtivas gerou uma crescente cisão entre uma classe profissional vinculada a esse núcleo dinâmico, que se beneficia dos processos de globalização econômica e diversificação cultural, e uma classe média industrial cujos níveis de produtividade já não cobrem seus custos salariais. De forma semelhante ao que ocorreu com os trabalhadores latino-americanos nos séculos xix e xx, esse setor periférico se beneficia (como consumidor) com os produtos importados de baixo custo, ao mesmo tempo em que se vê ameaçado (como produtor) pelas mesmas importações.A periferização da força de trabalho explica em boa medida a rebelião da classe operária nas democracias industrializadas. Os integrantes desse grupo – trabalhadores industriais em democracias com cada vez menos indústrias – resistem com razão ao otimismo de uma elite educada e cosmopolita que celebra a diversidade, a integração global e a economia do conhecimento. São eles que abandonaram o projeto da União Europeia para favorecer o Brexit no Reino Unido, que se afastaram do Partido Democrata para apoiar Trump nos eua e que desertam cada vez mais do Partido Socialista ou Comunista.

Essa rebelião é acelerada por três fatores que aprofundam a luta distributiva: uma redução do crescimento econômico, uma distribuição desigual da renda e uma sociedade mais diversa. No Atlântico Norte, a democracia liberal se consolidou durante o período do pós-guerra, uma era caracterizada por desenvolvimento acelerado e melhorias sustentadas na qualidade de vida. A taxa média de crescimento dos membros da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (ocde) entre 1961 e 1990 foi de 4% ao ano. A esse ritmo, o tamanho da economia se duplica em menos de 18 anos. A crise econômica de 2008 expôs claramente que os milagres econômicos chegaram ao fim. Nos últimos 15 anos, a taxa de crescimento anual desses mesmos países foi de 1,6%, e especialistas preveem taxas de 2% ao ano como a nova norma. Em tais condições, uma economia necessita de 34 anos para duplicar de tamanho. A promessa do progresso incessante que caracterizou a segunda metade do século xx está cada vez mais difícil de ser cumprida.

A desaceleração econômica reduz as oportunidades de trabalho em um contexto no qual a classe média industrial encontra-se em uma luta redistributiva «para cima», como resultado da crescente desigualdade social, e «para baixo» como resultado da migração. O período de paz inaugurado em 1945 permitiu a acumulação de capital físico e, com ele, a concentração da propriedade. Essa concentração, somada à mobilidade do capital e à menor capacidade de negociação dos movimentos sindicais, levou a uma redução da participação dos trabalhadores na renda nacional a partir da década de 1970. Em 1972, a parcela 1% mais rica da população concentrava 8% da renda nos eua e 7% no Reino Unido. Até 2012, essa proporção havia se elevado, respectivamente, para 19% e 13%4.

O nível de vida da classe operária do Atlântico Norte se explica não só pela relocalização da produção industrial, mas também por um fluxo inverso: a migração em direção aos países centrais. O projeto neoliberal buscou a circulação global de bens e capitais, mas – com exceção da União Europeia – nunca propôs uma mobilidade equivalente para a força de trabalho. Contudo, as sociedades humanas são cada vez mais móveis: calcula-se que mais de 3% da população mundial vive fora de seu país de origem, número pequeno em termos relativos, mas que equivale a cerca de 244 milhões de pessoas. Esses fluxos migratórios facilitam uma representação racializada da luta distributiva que fortalece a narrativa do nacionalismo xenofóbico. Além disso, estabelecem um novo desafio para a participação «universal» nas repúblicas de massa. No total, 115 países possibilitam atualmente a participação eleitoral de expatriados, mas apenas oito democracias do mundo permitem que residentes não nacionalizados tenham direito a voto em eleições nacionais5.

O perigo para as repúblicas de massa

Esse quadro representa algum perigo para a democracia? E, caso represente, que mecanismos concretos poderiam desestabilizar as repúblicas liberais de massa? A resposta a essas perguntas desafia as teorias dominantes sobre os processos de democratização e requer um olhar mais atento para a experiência latino-americana.

Uma influente literatura na ciência política tem alertado sobre o impacto negativo da desigualdade para a sobrevivência da democracia, mas essa obra oferece uma utilidade limitada para entendermos o problema apresentado na parte anterior. Os modelos teóricos propostos por essa literatura compartilham uma tese estilizada: quando comparadas com as ditaduras, as democracias tendem a redistribuir a renda em favor dos setores mais pobres. Por esse motivo, as elites pagam um custo por viver em democracia, e esse custo se torna maior na medida em que aumenta a distância entre pobres e ricos, uma vez que os pobres exigem uma maior redistribuição. Assim, em contextos de grande desigualdade, as elites adquirem maiores incentivos para respaldar uma ditadura que suprima a participação popular e preserve a desigualdade social6.

Essa tese estilizada se mostra plausível em alguns contextos – o golpe de Estado chileno de 1973 vem imediatamente à cabeça –, mas se choca com a complexidade da evidência histórica. Uma recente pesquisa de Stephan Haggard e Robert Kaufman mostra que, no mundo posterior à Guerra Fria, apenas uma pequena parte das reversões autoritárias envolveu algum tipo de conflito redistributivo. Não existe associação estatística entre níveis de desigualdade e instabilidade democrática em escala global. A maioria das reversões autoritárias ocorre em países pobres, onde as instituições democráticas são sensivelmente frágeis7.

Nos países de renda média, Haggard e Kaufman identificam um padrão de erosão democrática diferente que denominam «reversão populista», no qual a democracia não é afastada por elites que buscam evitar a redistribuição da riqueza, mas por líderes que prometem uma distribuição mais justa e uma solução para a crise econômica. Esses líderes denunciam suas elites, recorrem aos setores populares e mobilizam a insatisfação dos cidadãos com o regime democrático. Ao contrário do que defendem as teorias em voga, o resultado da desigualdade não é um governo reacionário da minoria, mas um Executivo forte com amplo respaldo majoritário. Os principais casos identificados pelos autores – Venezuela com Hugo Chávez, Rússia com Vladimir Putin e Turquia com Recep Erdoğan – mostram líderes que exploraram a frustração popular com o republicanismo liberal de massa para impor restrições a seus adversários políticos e ampliar sua margem de autonomia em relação às instituições de controle.

Tais exemplos sugerem que, nas repúblicas liberais de massa contemporâneas, o principal elemento ameaçado pela exclusão social não é a participação massiva na política, mas sim o republicanismo liberal. No século xxi, a suspensão dos mecanismos eleitorais é pouco viável, pois desafia abertamente o princípio dominante de legitimidade. Ao contrário, cidadãos rebelados contra a classe política podem utilizar o voto para delegar poder a um Executivo intransigente, reivindicando uma reconstrução radical do regime.

As lições da América Latina

A experiência latino-americana recente oferece lições importantes para as democracias industrializadas. A frustração dos cidadãos com o projeto neoliberal do final do século xx impulsionou uma renovação da classe política em boa parte da região. Mas naqueles países onde os novos líderes adotaram um discurso radicalizado, o ressurgimento econômico do início do século xxi financiou a erosão da democracia e a concentração de poder na figura do presidente.

Na década de 1980, as principais economias latino-americanas ruíram sob o peso da dívida pública, do déficit fiscal e da hiperinflação. As tentativas de controlar o gasto público e estabilizar a moeda levaram à adoção de programas neoliberais: políticas monetárias restritivas, cortes no gasto público, privatização de empresas estatais, liberação de preços e eliminação das barreiras comerciais. A estratégia neoliberal conseguiu reduzir a inflação, mas a eliminação de barreiras comerciais afetou o emprego industrial e aumentou o setor informal8.

A crise do modelo neoliberal minou a credibilidade dos partidos tradicionais, que foram incapazes de reduzir o desemprego e melhorar as condições de vida. Entre 1992 e 2002, sete presidentes eleitos foram alvo de julgamento político ou forçados a renunciar por protestos sociais. Algumas organizações, como o Partido Justicialista (pj) da Argentina, distribuíram benefícios clientelistas de maneira seletiva para manter o apoio de trabalhadores informais e desempregados; outras, como a Ação Democrática (ad) da Venezuela, simplesmente desmoronaram diante da nova realidade9.

A falta de prestígio dos partidos tradicionais beneficiou um setor político «não contaminado», que havia permanecido fora do poder e podia representar uma oposição confiável ao status quo10. Esse setor alternativo – que hoje se encontra na extrema direita em quase todas as democracias industrializadas – se localizava majoritariamente à esquerda do espectro político na América Latina dos anos 1990. Os líderes que ascenderam dessa esquerda «não contaminada» eram diferentes entre si em termos de experiência política e compromisso com os princípios democráticos, mas todos eles se beneficiaram surpreendentemente com o auge exportador do início do século xxi.

Da mesma forma que no caso das democracias centrais, as consequências das mudanças econômicas no mundo foram inesperadas para os países latino-americanos. Na interpretação dependentista convencional, os termos de troca deveriam se revalorizar cada vez mais em favor dos produtos industrializados e em detrimento dos produtos primários. Isso condenaria os países periféricos a produzirem cada vez mais matérias-primas para obter a mesma quantidade de importações industriais11. No entanto, o século xxi produziu o que o economista Jaime Ros descreveu como «o pesadelo de Prebisch». Entre 2000 e 2008, o valor total das exportações aumentou anualmente 21% no Peru, 17% no Brasil e no Chile, e 13% na Argentina; os termos de troca se valorizaram em quase toda a região12. O auge das exportações primárias foi impulsionado em grande medida pela expansão da economia industrial chinesa, que ampliou a demanda global por energia, minerais e alimentos. Sebastián Mazzuca lembra que, «em 2002, uma centena de toneladas de soja (…) tinha o mesmo valor de um automóvel Honda pequeno. Dez anos mais tarde, a mesma quantidade de soja permitia comprar um bmw conversível»13.

As consequências desse período econômico expansivo – encerrado até 2013 – foram notavelmente diversas para as democracias latino-americanas e são ilustrativas para as democracias industriais hoje em dia. A disponibilidade de recursos fiscais e a crescente popularidade permitiram que presidentes de vários países direcionassem os recursos e a autoridade legal do Estado de maneira discricionária para apoiar seus aliados e intimidar seus opositores.

A erosão democrática ocorreu de maneira notável com Hugo Chávez e Nicolás Maduro na Venezuela, com Daniel Ortega na Nicarágua e, em menor medida, com Rafael Correa no Equador e Evo Morales na Bolívia. Do ponto de vista histórico, a orientação ideológica desses líderes representa um dado circunstancial. Não ocorreu uma erosão semelhante em outros países governados por partidos de esquerda, como o caso do Brasil com o Partido dos Trabalhadores (pt) e o Uruguai com a Frente Ampla (fa), embora tenha se esboçado um processo de erosão na Colômbia com Álvaro Uribe, um presidente de direita. O elemento comum nos casos de erosão democrática foi a adoção de um discurso radicalizado por parte do presidente e seu núcleo governante. Com radicalização, entendemos uma estratégia discursiva que, ainda que se coloque geralmente nos extremos do espectro político (seja à direita ou à esquerda), distingue-se por expressar intransigência e impaciência para atingir os objetivos de política pública propostos. Os líderes radicalizados não reconhecem limites e apresentam uma atitude intolerante com aqueles que questionam seus projetos. Essa estratégia intolerante oferece certo grau de confiança aos eleitores, que veem sua sobrevivência ameaçada em um contexto de crise; eles não podem se dar ao luxo de esperar14.

Nossa compreensão desses processos de erosão ainda se encontra em uma etapa inicial, mas as evidências sugerem que a estratégia radicalizada produz um efeito sequencial: os líderes «não contaminados» adotam um discurso intransigente que mobiliza os eleitores frustrados com a democracia; seu sucesso eleitoral lhes garante o controle das instituições eletivas e dos recursos fiscais; os recursos do Estado, por sua vez, permitem ampliar a influência sobre instituições não eletivas como o Poder Judiciário e a burocracia; e a ação (ou inação) dessas instituições finalmente se torna decisiva para silenciar os meios de comunicação críticos e minar a oposição política.

Da república à monarquia de massa?

A experiência latino-americana sugere que o principal desafio para a democracia no século xxi não virá dos projetos explicitamente autoritários, mas sim de líderes que, em uma tentativa de reformar as repúblicas liberais de massa, abalem seus fundamentos. Os projetos radicais bem-sucedidos produzem regimes de poder pessoal – representados por figuras populares como Chávez, Erdoğan ou Viktor Orbán – que parecem inverter o acordo que deu origem às monarquias parlamentares no século xix. Enquanto estas preservaram a forma monárquica para operarem de fato como repúblicas de massa, as lideranças radicais, ao contrário, preservam a forma republicana de massa para operarem de fato como regimes de poder concentrado.

Os partidos das democracias industrializadas sofrem hoje com um desprestígio semelhante ao enfrentado pelos partidos latino-americanos na década de 1990, e os eleitores do «Primeiro Mundo» mostram-se cada vez menos identificados com o ideal democrático15. Contudo, as democracias industriais apresentam três vantagens em relação aos países latino-americanos dos anos 90: melhores políticas de proteção social, instituições mais fortes e uma estrutura econômica mais diversificada. Tais fatores reduzem o poder de atração do discurso radical, oferecem espaços de poder autônomo para a oposição e facilitam a resistência diante de um governo radicalizado.

É perigoso confiar atualmente em qualquer forma definitiva de consolidação democrática. A capacidade da democracia para subsistir no próximo século dependerá de seu poder para dar respostas aos desafios sociais criados pela relocalização industrial, resistindo ao mesmo tempo à tentação do radicalismo. Como nunca antes na história moderna, os dilemas dos países centrais se aproximam hoje aos da periferia.

  • 1.

    John Markoff: «Where and When Was Democracy Invented?» em Comparative Studies in Society and History vol. 41 No 4, 1999.

  • 2.

    «Made in China?» em The Economist, 14/3/2015.

  • 3.

    Theotonio dos Santos: «The Structure of Dependence» em American Economic Review vol. 60 No 2, 1970, pp. 234-235; Fernando Henrique Cardoso e Enzo Faletto: Dependencia y desarrollo en América Latina, Siglo xxi, Cidade do México, 1969 [n. do t.: há uma edição em português; Dependência e desenvolvimento da América Latina, Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 2011].

  • 4.

    O aumento da concentração de renda foi menos intenso em outros países, como França (estável em aproximadamente 9%) e Noruega (entre 6% e 8%) durante essas mesmas quatro décadas. Dados do World Wealth and Income Database, disponíveis em www.wid.world.

  • 5.

    Divisão de População das Nações Unidas: «Trends in International Migration» em Population Facts No 4, 2015; Andrew Ellis, Carlos Navarro, Isabel Morales, María Gratschew e Nadja Braun: Voting from Abroad: The International idea Handbook, International idea, Estocolmo, 2007; David Earnest: «Neither Citizen nor Stranger: Why States Enfranchise Resident Aliens» em World Politics vol. 58 No 2, 2006.

  • 6.

    Daron Acemoglu e James A. Robinson: The Economic Origins of Dictatorship and Democracy, Cambridge University Press, Cambridge, 2006; Carles Boix: Democracy and Redistribution, Cambridge University Press, Cambridge, 2003.

  • 7.

    S. Haggard e R.R. Kaufman: Dictators and Democrats: Masses, Elites, and Regime Change, Princeton University Press, Princeton, 2016.

  • 8.

    Juan Ariel Bogliaccini: «Trade Liberalization, Deindustrialization, and Inequality: Evidence from Middle-Income Latin American Countries» em Latin American Research Review vol. 48 No 2, 2013, pp. 79-105; Alejandro Portes e Kelly Hoffman: «Latin American Class Structures: Their Composition and Change During the Neoliberal Era» em Latin American Research Review vol. 38 No 1, 2003, pp. 41-82.

  • 9.

    A. Pérez-Liñán: Juicio político al presidente y nueva inestabilidad política en América Latina, fce, Buenos Aires, 2009; Laura Wills-Otero: Latin American Traditional Parties, 1978-2006: Electoral Trajectories and Internal Party Politics, Ediciones Uniandes, Bogotá, 2015.

  • 10.

    Rosario Queirolo: The Success of the Left in Latin America, University of Notre Dame Press, Notre Dame, 2013.

  • 11.

    Para a formulação clássica dessa tese, v. Raúl Prebisch: «Commercial Policy in the Underdeveloped Countries» em American Economic Review vol. 49 No 2, 1959.

  • 12.

    Paradoxalmente, os termos de troca se valorizaram muito pouco para o México, que exporta produtos manufaturados para os eua. Ver J. Ros: «Latin America’s Trade and Growth Patterns, the China Factor, and Prebisch’s Nightmare» em Journal of Globalization and Development vol. 3 No 2, 2013.

  • 13.

    S. Mazzuca: «The Rise of Rentier Populism» em Journal of Democracy vol. 24 No 2, 2013, p. 110.

  • 14.

    Sobre o conceito de radicalismo e seu impacto nos processos de democratização, v. S. Mainwaring e A. Pérez-Liñán: Democracies and Dictatorships in Latin America: Emergence, Survival, and Fall, Cambridge University Press, Cambridge, 2013.

  • 15.

    Até 2011, quase 25% dos entrevistados pela World Values Survey nos eua e mais de 10% dos entrevistados na Europa afirmavam que um sistema político democrático é «ruim» ou «muito ruim» para o país. Roberto Foa e Yascha Mounk: «The Democratic Disconnect» em Journal of Democracy vol. 27 No 3, 2016.

Este artículo es copia fiel del publicado en la revista Nueva Sociedad , Junho 2017, ISSN: 0251-3552


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