Coyuntura
NUSO Nº Julho 2018

Chile: o segundo suicídio da centro-esquerda

Chile: o segundo suicídio da centro-esquerda

Nota: a versão original deste artigo em espanhol foi publicada em Nueva Sociedad No 274, 3-4/2018, disponível em ‹www.nuso.org›. Tradução de Luiz Barucke.

A centro-esquerda chilena sofreu uma dura derrota, certamente a mais profunda e dolorosa de uma longa história iniciada em meados da década de 1980. A Concertação de Partidos pela Democracia, organizada para enfrentar a ditadura de Augusto Pinochet, é de longe a coalizão política mais longeva da história do Chile. Ela supera até mesmo os governos da Frente Popular1 que, à imagem da França e da Espanha, comandaram o destino do país até sua derrota em 1952 para o general Carlos Ibáñez del Campo, um caudilho populista que já havia governado de forma ditatorial entre 1927 e 1931.No segundo turno eleitoral, realizado em dezembro de 2017, Sebastián Piñera obteve cerca de 55% dos votos, superando amplamente Alejandro Guillier, o candidato da coalizão governista Nova Maioria. Trata-se do melhor resultado obtido pelas forças de direita em aproximadamente um século de vida republicana no país. Apesar das previsões de um resultado apertado, a grande mobilização do eleitorado de direita possibilitou uma vitória indiscutível ao empresário e ex-presidente a partir dos 36,6% que obteve no primeiro turno. Esse resultado parecia expor as fragilidades da candidatura de direita, pois, somados, os candidatos de centro e de esquerda (Guillier, Beatriz Sánchez, Carolina Goic, Marco Enríquez-Ominami e Alejando Navarro) alcançaram mais de 54%. Em um primeiro momento, esses números deram a sensação de que a vitória de Piñera não era inevitável e que ele poderia ser derrotado no segundo turno; tudo dependeria da capacidade de reunificação das forças até então governistas. Mas, como se sabe, política não tem muito a ver com aritmética, e Guillier, que havia obtido apenas 22,7% no primeiro turno, conseguiu somente 45,4% na votação final. Um em cada três eleitores da nova esquerda articulada em torno da Frente Ampla votou em Piñera no segundo turno, e algo parecido ocorreu com os votos de Enríquez-Ominami; já no caso de Goic, candidata da Democracia Cristã (dc), estima-se que três em cada quatro eleitores acabaram optando por Piñera.

É claro que uma frente entre o centro e a esquerda unida desde o início do processo teria possibilitado um resultado melhor e até mesmo – por que não? – uma vitória. No entanto, prevaleceu a dispersão. Foi uma espécie de suicídio cujo resultado era previsível. O aspecto patológico do caso é que algo muito semelhante já havia ocorrido nas eleições presidenciais de 2009. Naquela ocasião, a soma dos votos direcionados ao centro e à esquerda (Eduardo Frei, Enríquez-Ominami e Jorge Arrate) alcançou 55%, mas, por uma estreita margem, Piñera se impôs no segundo turno. O resultado de 2017 é uma história que se repete, um segundo suicídio em benefício, em ambos os casos, do mesmo candidato: Piñera.

A direita volta a governar o Chile. Na verdade, o governo anterior de Piñera transcorreu sem grandes problemas, mas também sem muita glória. Para importantes setores da direita, foi inclusive uma decepção. Tanto que alguns o consideraram depreciativamente como uma espécie de «quinto» governo da Concertação, em sequência aos de Patricio Aylwin, Eduardo Frei, Ricardo Lagos e Michelle Bachelet. Para a esquerda, foi uma surpresa constatar que um governo de direita não desconstruía as conquistas sociais alcançadas na democracia, sendo capaz até mesmo de avançar em algumas delas, como a ampliação da licença pós-parto para seis meses ou a eliminação dos 7% de contribuição de saúde cobrada dos aposentados, medidas amplamente reivindicadas pelos cidadãos e às quais os governos anteriores não haviam querido atender argumentando seu elevado impacto orçamentário.

Mas as condições atuais são muito diferentes. Por um lado, a direita está muito mais unida e motivada, e a liderança de Piñera é mais sólida e indiscutível. Por outro, a tradicional dc enfrenta uma grave crise depois de seus fracos resultados nas eleições presidenciais (5,8%) e parlamentares (caiu de 21 para 14 deputados em uma Câmara que viu seu número de representantes aumentar de 120 para 155). Por sua vez, a esquerda é uma espécie de arquipélago em que predominam as divisões. A grande novidade da última eleição é a irrupção da chamada Frente Ampla, que, contrariando todas as previsões, obteve com sua candidata Beatriz Sánchez mais de 20% no pleito presidencial e conseguiu eleger 20 deputados e um senador. O fenômeno da Frente Ampla guarda muitas semelhanças com o movimento Podemos da Espanha. Tanto lá como no Chile, surge a partir da mobilização social uma nova força em resposta às graves insuficiências dos partidos tradicionais da esquerda com o principal objetivo de afastá-los e ocupar esse espaço.

A vitória de Piñera foi muito festejada pelas forças conservadoras da América Latina. Como era de se esperar, ela é apresentada como a confirmação do chamado «fim do ciclo» dos governos progressistas surgidos principalmente na América do Sul. Como já mencionamos em um livro recente2, a teoria do ciclo tem um forte caráter publicitário e ainda deve passar pela prova das eleições presidenciais que serão realizadas em 2018 nos maiores países da região (Venezuela, Colômbia, México e Brasil). Além disso, deve-se considerar que os principais aliados de Piñera – Mauricio Macri na Argentina e Pedro Pablo Kuczynski no Peru – estão decepcionando as expectativas de progresso despertadas no início de seus mandatos. O caso de Kuczynski é especialmente dramático, dada sua posição minoritária no Congresso, que o colocou à beira da destituição e que finalmente o levou a renunciar em março de 2018. Dessa forma, o ambiente político regional pode ser menos favorável do que a direita chilena avaliou em um primeiro momento. Mas ela tem a seu favor a conjuntura econômica internacional, marcada por um forte crescimento da China, um bom desempenho dos Estados Unidos e um desempenho ainda melhor da Europa, o que eleva consideravelmente o preço das matérias-primas, especialmente do cobre, principal componente das exportações chilenas.Nessa conjuntura, a direita chilena exala entusiasmo. Piñera fala de um ciclo que deveria se prolongar por pelo menos dois períodos de governo (oito anos), enquanto os mais otimistas falam até mesmo em 12 anos. Nos tempos atuais de alta volatilidade, essas previsões devem ser tomadas como simples declarações de intenção. Contudo, no caso do Chile, dada a profunda crise do centro e da esquerda, não é descabido pensar que a direita tenha desta vez capacidade para assegurar sua sucessão em um novo período presidencial a partir de 2022. Agora, a ausência de uma figura de grande popularidade como a que representava a ex-presidenta Bachelet torna muito mais hipotético um rápido retorno dessas forças ao governo.

Muitas perguntas e poucas respostas

Será então este segundo governo de Piñera um novo parêntese próprio da alternância de poder ou o início de um ciclo mais ou menos longo de predomínio conservador? A pergunta está sobre a mesa. Piñera não assumiu o risco de uma nova candidatura presidencial para simplesmente permanecer no mesmo lugar. Ele possui uma ambição maior: refundar uma direita democrática que deixe para trás a herança pinochetista3. É claro que ele tentará fazer isso, embora ainda não esteja claro se terá sucesso. No interior da coalizão que o apoia, a Chile Vamos, coexistem forças que atuam em sentidos divergentes. Tanto na União Democrática Independente (udi) como na Renovação Nacional (rn), há disputas entre setores conservadores e outros mais liberais comandados por uma nova geração de dirigentes. Recentemente, foi criado um novo partido, a Evolução Política (Evópoli), que busca liderar a renovação da direita e, considerando que ainda é pequeno, obteve bons resultados nas últimas eleições parlamentares, conquistando assentos para dois senadores e seis deputados. O desfecho desse conflito dentro do governo de Piñera e da coalizão que o sustenta será determinante na projeção futura da direita chilena. O abandono das políticas econômicas ortodoxas clássicas baseadas no «gotejamento» (trickle down) pode abrir caminho para um longo ciclo de governos de direita. Ao contrário, uma gestão governamental tipicamente conservadora nos campos político e dos valores, e neoliberal no campo econômico-social, pode ser mais facilmente derrotada no pleito presidencial de 2021. Tudo dependerá também da capacidade de recomposição das forças de centro e de esquerda, hoje duramente golpeadas por essa nova derrota e traumatizadas diante da obrigação de empreender uma travessia pelo longo deserto que se anuncia.

A derrota de 2009 obrigou a Concertação da época a uma reflexão profunda sobre as causas de sua ocorrência. Assim como o debate no final da década de 1990 havia sido sufocado entre «autoflageladores» e «autocomplacentes», como foram denominados na época pela imprensa4, adiou-se também naquele momento uma análise mais profunda dos fatores da permanente decadência da coalizão de centroesquerda. A razão eleitoral esteve por trás desse bloqueio. De fato, os dirigentes concertacionistas chegaram a avisar que havia a possibilidade de voltar rapidamente ao poder impulsionados pela grande popularidade alcançada pela ex-presidenta Bachelet. Do ponto de vista eleitoral, a estratégia foi magistral. Instalada em Nova York à frente da onu Mulheres, Bachelet dispunha de uma excelente tribuna para se manter em evidência sem correr os riscos próprios de um conflito doméstico. Portanto, o necessário debate deveria ser congelado. O retorno triunfal de Bachelet requeria uma coalizão organizada, à qual se uniu sem grandes exigências o Partido Comunista, o grande excluído da esfera institucional desde 1990. No entanto, o preço pago pelos partidos para possibilitar sua volta ao poder foi enorme e envolveu um aspecto vergonhoso: a completa subordinação à autoridade da segura futura presidenta.

Bachelet se impôs nas eleições presidenciais de 2013 de forma esmagadora. Mesmo obrigada a um segundo turno, a ex-presidenta venceu a etapa final com 62,16%, percentual inédito na história eleitoral chilena, e contou pela primeira vez desde o início da transição com maioria em ambas as casas parlamentares. Seu programa representava certa ruptura com os governos anteriores da Concertação, inclusive seu primeiro período (2006-2010). Desta vez, as grandes mobilizações, especialmente as de 2011, tinham conseguido modificar a agenda nacional. O programa de Bachelet assumiu as reivindicações das ruas e definiu como sua espinha dorsal três grandes reformas: constitucional, tributária e educacional.

A sequência das reformas foi, porém, estranha. A nova Constituição, a mãe de todas as reformas, foi deixada para o final. Chegou-se até mesmo ao absurdo de precisar acomodar as reformas tributária e educacional a uma Constituição que seria modificada logo depois. A reforma tributária foi aprovada com grandes alterações em relação ao projeto original de fins de 2014. Os resultados da negociação parlamentar conduziram a um sistema híbrido extremamente complexo que, pouco depois, precisou ser modificado. A reforma educacional será sem dúvida o principal legado do segundo governo de Bachelet, particularmente o ensino superior gratuito para a parcela 60% mais pobre dos estudantes. Em matéria constitucional, os avanços foram muito menores.

As razões da derrota

Amplamente populares durante a campanha presidencial de 2013, as reformas foram perdendo apoio dos cidadãos à medida que se entrava em um debate mais pormenorizado. As grandes manchetes perdiam relevância diante de uma engenharia de detalhamento marcada pela improvisação. Embora grande parte do incremento de arrecadação da reforma tributária tenha sido proveniente dos setores de renda mais elevada5, o aumento dos impostos sobre combustíveis, bebidas alcoólicas e tabaco afetou também os mais pobres. A ideia de que a reforma cobraria a conta daqueles que mais têm se diluiu e, em pouco tempo, constituiuse uma maioria bastante crítica. De forma ainda mais intensa, o mesmo ocorreu com a reforma educacional. Chegou um momento em que a reforma conseguiu provocar até mesmo a rejeição de todos os atores do sistema: professores, estudantes, pais, mães e responsáveis.

Um recurso óbvio para explicar a derrota consiste em atribuir a principal responsabilidade às insuficiências da gestão governamental. Esse foi certamente um fator importante, mas não o único nem o mais determinante. Bem ou mal, houve um segundo governo Bachelet porque assim determinaram os partidos que compuseram a Nova Maioria. Sua responsabilidade é, portanto, maior e inquestionável. A lista das razões da derrota é longa. Trata-se, além disso, de um fato muito recente, e as explicações ainda precisam ser decantadas. De qualquer forma, a linha argumental passa pelo que Manuel A. Garretón denominou a «grande ruptura»6. Para o bem ou para o mal, a institucionalidade política construída ao longo de mais de duas décadas após a transição é obra da Concertação, e a história desse período ainda está sendo escrita. O processo chileno possui particularidades não encontradas em outras transições da ditadura para a democracia; trata-se de uma transição mal pactuada, que permitiu à direita e às Forças Armadas exercer uma influência completamente desmedida7. Embora destituídas do poder, as Forças Armadas e de segurança mantiveram uma grande autonomia, que aliás é o que explica os grandes escândalos financeiros em que estão envolvidos atualmente o Exército e o Corpo de Carabineiros.

O fato essencial é que, uma a uma, as principais bases sociais da Concertação e, depois, da Nova Maioria foram abandonando o apoio que lhe haviam dado inicialmente. O movimento sindical, protagonista das lutas democráticas de meados dos anos 1980, foi se distanciando pouco a pouco de uma coalizão que privilegiou o diálogo e o entendimento com o meio empresarial. O movimento estudantil também não encontrou um espaço de interlocução fluida com os governos de centro-esquerda, a tal ponto que a primeira das grandes mobilizações estudantis – a dos «pinguins» da educação secundária – ocorreu em 2006 no início do primeiro governo de Bachelet. Algo semelhante ocorreu com os professores, principal sindicato do país, com os trabalhadores da administração pública e tantos outros.

Ao mesmo tempo, o notável dinamismo da economia chilena possibilitou uma grande redução da pobreza. De mais de 40% no final da ditadura, a pobreza diminuiu para pouco mais de 10% na atualidade. Como consequência desse processo, emergiram novos setores médios, altamente demandantes e formados em uma cultura essencialmente individualista segundo a qual tudo o que conquistaram foi produto de seu esforço e todas as dificuldades que enfrentam para manter sua posição e não retornar à pobreza são de responsabilidade do sistema político.

Nesse sentido, a centro-esquerda é de alguma forma vítima de suas próprias realizações. Seu grande êxito na luta contra a pobreza possibilitou o surgimento de setores que acabaram lhe dando as costas. Os apelos aos grandes temas da transição – direitos humanos, liberdade, democracia e igualdade – acabaram sendo menos decisivos que os discursos do crescimento, do emprego e da repressão contra a criminalidade. Trata-se de um libreto conhecido que, no Chile, amplamente orquestrado pelos principais meios de comunicação, possibilitou a nova vitória de Piñera. No fim das contas, e o que é mais delicado, trata-se de uma derrota cultural das forças progressistas. Mas, nesse contexto, intervêm também outros fatores que contribuem para explicar a derrota. Entre os mais evidentes, cabe destacar o esgotamento e o empobrecimento ideológicos dos partidos, a erosão das lideranças históricas e a má campanha de Guillier, candidato bastante improvisado que não foi capaz de reanimar uma força de centro-esquerda dividida e pouco motivada.

As tarefas do progressismo

O debate sobre as causas da vitória da direita apenas começou, e ele será longo, turbulento e doloroso. As responsabilidades são amplamente compartilhadas. Nós, que nos situamos do lado da reflexão autocrítica da Concertação e do processo de transição, não assumimos com a força necessária a defesa de suas importantes conquistas, obtidas em condições extremamente difíceis. Por sua vez, aqueles que não quiseram notar as enormes insuficiências do processo não possibilitaram a geração de um debate que permitisse a necessária retificação. Por motivos subalternos, esse debate foi silenciado8, e os posicionamentos mais conservadores dentro da coalizão acabaram se impondo pela via dos fatos.

A confluência entre o centro e a esquerda, expressa na aliança entre a dc e o Partido Socialista (ps), havia sido crucial para enfrentar e derrotar Pinochet, e a Concertação se constituiu em torno desse eixo. Uma aliança pensada inicialmente para abrir caminho para a democracia e constituir um governo de transição acabou sendo transformada em uma coalizão que governou o Chile por 20 anos consecutivos. Ninguém, nem o mais otimista, imaginou que algo assim poderia acontecer. No entanto, o grande consenso em torno da necessidade de acabar com a ditadura foi se diluindo à medida que a democratização avançava e a figura de Pinochet se eclipsava até atingir o ponto mais baixo da história. Ele foi acusado de sérias agressões aos direitos humanos e, o que era ainda mais grave para muitos chilenos, apropriação indébita de enormes quantias de recursos públicos.

Se a causa da democracia constituía um grande fator de unidade, as tarefas do desenvolvimento geravam muitas divergências. A Concertação pôde sobreviver gerando um sistema de vetos cruzados com o qual eram deixadas de fora da ação governamental todas as propostas que produzissem grandes divisões. O menor denominador comum foi se reduzindo cada vez mais, e a capacidade de transformação da Concertação, se esgotando. Foi nessa conjuntura que ocorreu sua primeira derrota, em 2009. Como se sabe, transformada em Nova Maioria com a inclusão do Partido Comunista, a centro-esquerda retornou ao poder em 2014. Bachelet fez um esforço para abrir um novo ciclo de reformas profundas. Mas a coalizão que havia se subordinado à candidata presidencial em um primeiro momento, por motivos de conveniência eleitoral, começou a mostrar divergências cada vez mais profundas à medida que o governo colocava seu programa em prática. A história do segundo governo de Bachelet é, em grande parte, a história das crescentes divergências em seu interior, protagonizadas na maioria dos casos pelos dirigentes da dc. Essas divisões exerceram uma influência considerável na derrota de 2017. O fato de a dc decidir se excluir das eleições primárias e lançar uma candidatura própria facilitou ainda mais o caminho trilhado pela direita sob a liderança de Piñera.

A lógica de funcionamento da Concertação fez com que o entendimento entre o centro e a esquerda gerasse uma espécie de força única de «centro-esquerda», e o resultado acabou sendo fatal. Ao buscar se assimilar à esquerda, a dc foi sofrendo um sangramento em sua ala à direita, ao passo que a esquerda, na tentativa de garantir a aliança com a dc, foi sangrando em seu flanco esquerdo. Assim, como ficou claro nas últimas eleições, a Nova Maioria perdeu a condição que seu nome lhe atribuía, inaugurando-se um novo período. Cada força é agora obrigada a ver como pode reconstruir sua identidade, e a situação da dc é a mais complexa. De eixo da política chilena apoiado por cerca de um terço do eleitorado, o partido passou a ser uma força de 10%, e seu futuro está sendo questionado. Vive com o fantasma de sua grande referência, o Partido Democrata Cristão italiano, que acabou se fragmentando em múltiplos pedaços. Por sua vez, a esquerda tem a obrigação de acertar as contas consigo mesma. Ainda que sua existência não esteja ameaçada, seu papel preciso na construção do futuro parece muito mais difuso. Será ela uma força de vanguarda que liderará as mudanças trazidas por uma nova época de grandes avanços tecnológicos? Ou acabará sendo uma força de retaguarda, buscando resistir aos efeitos dos ventos da história? Esse é, sem dúvida, um grande debate ainda não resolvido pela esquerda mundial. Nesse sentido, o debate chileno faz parte de uma discussão muito mais ampla, em que tudo ou quase tudo está em questão.

É evidente que as propostas devem ser atualizadas para estar no rumo das coordenadas maiores do século xxi, a democracia, a globalização e a economia de mercado. Isso deve ser feito como esquerda, como social-democracia reinventada ou simplesmente como progressismo? A partir da esquerda, sustento que são de direita todos aqueles que afirmam que o eixo direita-esquerda perdeu significado, mas é necessário reconhecer os grandes limites da esquerda para dar conta de todos os desafios apresentados por este século. A luta pela igualdade, grande bandeira da esquerda, continua plenamente atual, mas têm surgido, ao mesmo tempo, novos desafios para os quais as esquerdas tradicionais não possuem muita capacidade de resposta. Além disso, a prática da esquerda é, em muitos sentidos, oposta ao grande desafio do aprofundamento da democracia. Sua tradição produtivista se choca com a necessidade de um desenvolvimento sustentável, o machismo típico das esquerdas tradicionais colide com as demandas de igualdade de gênero, e seu tradicional estatismo não condiz com as novas realidades em matéria de inovação e empreendimento. Na falta de um termo mais adequado, o progressismo parece ser a categoria mais inclusiva. Certamente ambígua, como alguns dizem, ela «serve para tudo». Essa é precisamente sua virtude diante de uma esquerda que, apesar de sua coragem e contribuição histórica, «serve para pouco».

  • 1.

    Coalizão constituída por socialistas, comunistas e radicais que ganhou as eleições presidenciais de 1938 com o candidato Pedro Aguirre Cerda.

  • 2.

    C. Ominami: Claroscuro de los gobiernos progresistas. América del Sur: ¿fin de un ciclo histórico o proceso abierto?, Catalonia, Santiago do Chile, 2017.

  • 3.

    C. Ominami: «Obras son amores...» em La Tercera, 3/2/2018.

  • 4.

    C. Ominami: El debate silenciado, IOM, Santiago do Chile, 2009.

  • 5.

    Banco Mundial: «Chile. Efectos distributivos de la reforma tributaria de 2014», disponível em <http://documentos.bancomundial.org/curated/es/496131468228282235/Chile-Efectosdistributivos-de-la-reforma-tributaria-2014>.

  • 6.

    M.A. Garretón: La gran ruptura. Institucionalidad política y actores sociales en el Chile del siglo XXI, IOM, Santiago do Chile, 2016.

  • 7.

    C. Ominami: Los secretos de la Concertación, Planeta, Santiago do Chile, 2011.

  • 8.

    Ibid.

Este artículo es copia fiel del publicado en la revista Nueva Sociedad , Julho 2018, ISSN: 0251-3552


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