Artículo
NUSO Nº Junho 2012

A nova morfologia do trabalho no Brasil. Reestruturação e precariedade

As novas realidades do trabalho no Brasil são marcadas por fortes processos de reestruturação produtiva e organizacional. Inicialmente, o artigo apresenta uma fenomenologia da flexibilização do trabalho no Brasil. Em seguida, descreve as principais tendências da reestruturação produtiva e suas consequências para o mundo do trabalho nos setores automobilístico, de telecomunicações e telemarketing, bancário, têxtil e confecções, calçados e artístico. A subcontratação, os «sistemas flexíveis» e outras inovações produtivas desenham uma nova morfologia do trabalho, caracterizada por sua precariedade estrutural.

A nova morfologia do trabalho no Brasil. Reestruturação e precariedade

As transformações ocorridas no capitalismo recente no Brasil, particularmente na década de 1990, foram de grande intensidade, impulsionadas pela nova divisão internacional do trabalho e pelas formulações definidas pelo Consenso de Washington. Tais mudanças desencadearam uma onda enorme de desregulamentações nas mais distintas esferas do mundo do trabalho. Houve também um conjunto de transformações no plano da organização sociotécnica da produção, presenciando-se, ainda, um processo de reterritorialização e mesmo de desterritorialização da produção, entre tantas outras consequências da reestruturação produtiva e do redesenho da divisão internacional do trabalho e do capital. Este artigo indicará, portanto, alguns traços particulares e singulares da reestruturação produtiva do capital no Brasil.

O capitalismo brasileiro, de desenvolvimento hipertardio quanto ao seu modo de ser, vivenciou, ao longo do século XX, um verdadeiro processo de acumulação industrial, especialmente a partir do getulismo. Pôde, então, efetivar seu primeiro salto verdadeiramente industrializante, uma vez que as formas anteriores de indústria eram prisioneiras de um processo de acumulação que se realizava dentro do âmbito da exportação do café, no qual a indústria tinha um papel de apêndice.

De corte fortemente estatal e feição nacionalista, a industrialização brasileira somente deslanchou a partir de 1930 e, posteriormente, com Juscelino Kubitschek, em meados da década de 1950, quando o padrão de acumulação industrial deu seu segundo salto. O terceiro salto foi experimentado a partir do golpe de 1964, quando se aceleraram fortemente a industrialização e a internacionalização do Brasil1.

O país estruturava-se, então, com base em um desenho produtivo bifronte: de um lado, voltado para a produção de bens de consumo duráveis, como automóveis, eletrodomésticos, etc., visando um mercado interno restrito e seletivo; de outro, prisioneiro que era de uma dependência estrutural ontogenética, o Brasil continuava também a desenvolver sua produção voltada para a exportação, tanto de produtos primários como de industrializados.

No que concerne à dinâmica interna do padrão de acumulação industrial, estruturava-se pela vigência de um processo de superexploração da força de trabalho, dado pela articulação entre baixos salários, jornada de trabalho prolongada e fortíssima intensidade em seus ritmos, dentro de um patamar industrial significativo para um país que, apesar de sua inserção subordinada, chegou a se alinhar, em dado momento, entre as oito grandes potências industriais.Esse padrão de acumulação, desde Kubitschek e especialmente durante a ditadura militar, vivenciou amplos movimentos de expansão, com altas taxas de acumulação, entre os quais a fase do «milagre econômico» (1968-1973). O país vivia, então, sob o binômio ditadura e acumulação, arrocho e expansão.

Rumo ao «capitalismo flexível»

Foi somente em meados da década de 1980, ao fim da ditadura militar, e sob a chamada «Nova República» de José Sarney, que esse padrão de acumulação – centrado no tripé setor produtivo estatal, capital nacional e capital internacional – começou a sofrer as primeiras alterações. Embora, em seus traços mais genéricos, muito ainda se mantenha em alguma medida vigente, foi possível presenciar o início das mutações organizacionais e tecnológicas no interior do processo produtivo e de serviços em nosso país, mesmo que num ritmo muito mais lento do que aqueles experimentados pelos países centrais, que viviam intensamente a reestruturação produtiva de capital e seu corolário ideopolítico neoliberal. A singularidade brasileira começava a sofrer os efeitos dos traços universais emergentes do sistema global de capital, que redesenhava uma particularidade que, aos poucos, foi se diferenciando da fase anterior. A princípio, a mudança se deu apenas em alguns aspectos, mas logo se expandiu para muitos de seus traços essenciais.

Foi durante a década de 1980 que ocorreram os primeiros impulsos do nosso processo de reestruturação produtiva, levando as empresas a adotar, no início de modo restrito, novos padrões organizacionais e tecnológicos, bem como novas formas de organização social do trabalho. Iniciou-se a utilização da informatização produtiva e do sistema just-in-time2; germinou a produção baseada em team work, alicerçada nos programas de qualidade total, ampliando também o processo de difusão da microeletrônica. Deu-se, também, o início da implantação dos métodos denominados «participativos», mecanismos que procuram o «envolvimento» (na verdade, a adesão e a sujeição) dos trabalhadores com os planos das empresas. Estruturava-se, ainda que de modo incipiente, o processo de reengenharia industrial e organizacional, cujos principais determinantes foram decorrência:

a) das imposições das empresas transnacionais, que levaram à adoção, por parte de suas subsidiárias no Brasil, de novos padrões organizacionais e tecnológicos, em maior ou menor medida inspirados no toyotismo e nas formas flexíveis de acumulação;

b) da necessidade, no âmbito dos capitais e de seus novos mecanismos de concorrência, de as empresas brasileiras prepararem-se para a nova fase, marcada por forte «competitividade internacional»3;

c) da necessidade de as empresas nacionais responderem ao avanço do novo sindicalismo e das formas de confronto e de rebeldia dos trabalhadores que procuravam estruturar-se mais fortemente nos locais de trabalho, desde as históricas greves da região industrial do ABC e da cidade de São Paulo, no pós-1978.

Mas foi a partir dos anos 1990 que se intensificou o processo de reestruturação produtiva do capital no Brasil, processo que vem se efetivando mediante formas diferenciadas, configurando uma realidade que comporta tanto elementos de continuidade como de descontinuidade em relação às fases anteriores.

Nossa pesquisa demonstrou que há uma mescla nítida entre elementos do fordismo, que ainda encontram vigência acentuada, e elementos oriundos das novas formas de acumulação flexível e/ou influxos toyotistas no Brasil, que também são por demais evidentes.

No estágio atual do capitalismo brasileiro, enormes enxugamentos da força de trabalho combinam-se com mutações sociotécnicas no processo produtivo e na organização do controle social do trabalho. A flexibilização e a desregulamentação dos direitos sociais, bem como a terceirização e as novas formas de gestão da força de trabalho, implantadas no espaço produtivo, estão em curso acentuado e presentes em grande intensidade, coexistindo com o fordismo, que parece ainda preservado em vários ramos produtivos e de serviços. Mas quando se olha o conjunto da estrutura produtiva, pode-se também constatar que o fordismo periférico e subordinado, que foi estruturado no Brasil, cada vez mais se mescla fortemente com novos processos produtivos, em grande expansão, consequência da liofilização organizacional4, dos mecanismos próprios oriundos da acumulação flexível e das práticas toyotistas que foram assimiladas com vigor pelo setor produtivo brasileiro.

Se, por um lado, é verdade que a baixa remuneração da força de trabalho – que se caracteriza como fator de atração para o fluxo de capital estrangeiro produtivo no Brasil – pode-se constituir, em alguma medida, como obstáculo para o avanço tecnológico, devemos acrescentar, por outro, que a combinação entre padrões produtivos tecnologicamente mais avançados e uma melhor «qualificação» da força de trabalho oferece como resultante um aumento da superexploração da força de trabalho, traço constitutivo e marcante do capitalismo brasileiro. Isso porque, para os capitais produtivos (nacionais e transnacionais), interessa a mescla entre os equipamentos informacionais e a força de trabalho «qualificada», «polivalente», «multifuncional», apta para operá-los, percebendo, entretanto, salários muito inferiores àqueles alcançados pelos trabalhadores das economias avançadas, além de regida por direitos sociais amplamente flexibilizados.

Ainda na década de 1990, no contexto da desregulamentação do comércio mundial, a indústria automobilística brasileira foi submetida a mudanças no regime de proteção alfandegária, com a redução das tarifas de importação de veículos. Desde então, as montadoras intensificaram o processo de reestruturação produtiva através das inovações tecnológicas, introduzindo, inicialmente, robôs e sistemas CAD/CAM – o que acarretou transformações no layout das empresas –, ou por meio da introdução de mudanças organizacionais. Tais alterações envolviam uma relativa desverticalização, forte subcontratação e terceirização da força de trabalho, relativa redução de níveis hierárquicos e implantação de novas fábricas de tamanho reduzido, estruturadas com base em células produtivas, além da ampliação da rede de empresas fornecedoras5.

As unidades produtivas mais antigas e tradicionais, como a Volkswagen, a Ford e a Mercedes-Benz, situadas no ABC paulista, também desenvolveram um forte programa de reestruturação, visando sua adequação aos novos imperativos do capital no que concerne aos níveis produtivos e tecnológicos e às formas de «envolvimento» da força de trabalho. A Volkswagen e a Mercedes-Benz foram objetos de investigação em nossa pesquisa. Na primeira montadora, o experimento de tentativa de controle, manipulação e interiorização dos trabalhadores, denominado «Coração Valente», é exemplar de como a empresa pretendeu capturar a subjetividade do trabalho em benefício do aumento da produtividade. O Manual de integração distribuído pela Toyota para os trabalhadores que ingressam na empresa é outro exemplo. Sua denominação fala por si só6.

Depois de um primeiro ensaio, sob o governo Fernando Collor, significativo, mas logo estancado pela crise política que se abateu sobre seu governo, o processo de reestruturação produtiva deslanchou novamente, por meio do Plano Real, a partir de 1994, sob o governo Fernando Henrique Cardoso. Quer mediante programas de qualidade total, dos sistemas just-in-time e kanban, quer mediante a introdução de ganhos salariais vinculados à lucratividade e à produtividade, de que é exemplo o Programa de Participação nos Lucros e Resultados (PLR), sob uma pragmática que se adequava fortemente aos desígnios neoliberais (ou social-liberais), finalmente o mundo produtivo encontrou uma contextualidade propícia para o deslanche vigoroso de sua reestruturação, do assim chamado enxugamento empresarial e da implementação de mecanismos estruturados em moldes mais flexíveis. Se o processo de reestruturação produtiva no Brasil, durante os anos 1980, teve uma tendência limitada e seletiva, foi especialmente a partir da década de 1990 que ele se ampliou sobremaneira.

Os novos trabalhadores «multifuncionais»

Outro exemplo importante pode ser encontrado no setor financeiro. Em seu processo de reestruturação, os trabalhadores bancários foram fortemente atingidos pelas mudanças nos processos e rotinas de trabalho, fundamentadas e impulsionadas, principalmente, pelas tecnologias de base microeletrônica e pelas mutações organizacionais.

Novas políticas gerenciais foram instituídas nos bancos, sobretudo por meio de seus programas de «qualidade total» e de «remuneração variável». As políticas de concessão de prêmios de produtividade aos bancários que superavam as metas de produção estabelecidas, acrescidas do desenvolvimento de um eficiente e sofisticado sistema de comunicação empresa-trabalhador por meio de jornais, revistas ou vídeos de ampla circulação nos ambientes de trabalho, bem como da ampliação do trabalho em equipe, acarretaram um significativo aumento da produtividade do capital financeiro, além de buscar também a «adesão» dos bancários às estratégias de autovalorização do capital, reproduzidas nas instituições bancárias.

Como consequência das práticas flexíveis de contratação da força de trabalho nos bancos (mediante a ampliação significativa da terceirização, da contratação de trabalhadores por tarefas ou em tempo parcial, da introdução dos call centers), presenciou-se uma ainda maior precarização dos empregos e redução de salários, aumentando o processo de desregulamentação do trabalho e de redução dos direitos sociais para os empregados em geral e, de modo ainda mais intenso, para os terceirizados, em particular no espaço dos bancos7.

Do ponto de vista do capital financeiro, essas formas de contratação possibilitaram (e ainda possibilitam) ganhos enormes de lucratividade, ao mesmo tempo em que procuraram obnubilar os laços de pertencimento de classe e diminuir a capacidade de resistência sindical dos bancários, dificultando sua organização no espaço de trabalho. A liofilização organizacional nos bancos, apoiada no incremento tecno-informacional, implementando os programas de ajustes organizacionais nas agências, vem reduzindo a estrutura administrativa e os quadros funcionais das instituições financeiras, aumentando os mecanismos de individualização das relações de trabalho e de remuneração.

Como consequência, foram desativados ou bastante reduzidos grandes centros de computação, de serviços e de compensação de cheques, e setores inteiros foram extintos nas agências bancárias e centrais administrativas. Enquanto os grandes conglomerados financeiros privados cresciam em poderio econômico – com taxas de lucro enormes –, o número de bancários no país reduziu-se de aproximadamente 800.000, no fim dos anos 80, para pouco mais de 400.000 em 2005. Os planos de demissão voluntária tornaram-se regra nos bancos públicos, conforme pudemos analisar em nossa pesquisa no Banco do Brasil. Paralelamente, proliferaram os terceirizados no labor bancário8.

Em relação à divisão sexual do trabalho, na medida em que se desenvolviam os processos de automatização e flexibilização do trabalho, presenciou-se um movimento de feminização dos bancários que, entretanto, não foi seguido por uma equalização da carreira e do salário entre homens e mulheres. Uma série de mecanismos sociais de discriminação – reproduzidos e intensificados nos ambientes de trabalho – estruturou relações de dominação e de exploração mais duras sobre o trabalho feminino, que se traduziram em desigualdades e segmentações entre gêneros9.

As mudanças apontadas nas características pessoais e profissionais dos bancários são, portanto, expressões da adequação às exigências da reestruturação produtiva em curso e de seus movimentos de tecnificação e racionalização do trabalho. Visando adequar sua força de trabalho às modalidades atuais do processo produtivo, as instituições financeiras passaram a exigir uma aparente «nova qualificação» para os trabalhadores do setor, que parece ter mais uma significação ideológica do que tecnofuncional10.

Num contexto de crescente desemprego e aumento de formas precárias de contratação, os assalariados bancários foram compelidos a desenvolver uma formação geral e polivalente, na tentativa de manter seus vínculos de trabalho, sendo submetidos à sobrecarga de tarefas e a jornadas de trabalho extenuantes. Agravaram-se os problemas de saúde no espaço de trabalho nas últimas décadas. Observou-se ainda um aumento sem precedentes das lesões por esforço repetitivo (LER), que reduzem a força muscular e comprometem os movimentos. Ditas lesões são consideradas típicas da era da informatização do trabalho, conforme também foi constatado na pesquisa realizada no universo bancário.

Os programas de qualidade total e de remuneração variável, amplamente difundidos no setor, recriaram estratégias de dominação do trabalho que procuram obscurecer e nublar a relação entre capital e trabalho. Os trabalhadores bancários foram constrangidos a se tornar «parceiros», «sócios», «colaboradores» dos bancos e das instituições financeiras, num ideário e numa pragmática que aviltam ainda mais a condição laborativa.

Sob o movimento rápido e ágil das máquinas informatizadas, os homens e as mulheres realizam um conjunto infindável de operações de registro e transferência de valores. Transformam essa mercadoria-dinheiro em mais dinheiro, verdadeira fonte misteriosa, conforme a sugestiva referência de Marx. E, quanto mais «produzem», em tempo cada vez mais virtual, mais bancários veem diminuir seus postos de trabalho por meio dos chamados «planos de demissão voluntária» (PDV)11.

É nesse contexto que a greve dos bancários realizada em setembro/outubro de 2004 constituiu evento bastante importante, uma vez que se trata da primeira ação de grande amplitude desencadeada pelos bancários depois do vastíssimo processo de reestruturação dos bancos. Quando tantos analistas diziam que os bancários tinham perdido a capacidade de resistência e ação, presenciamos um movimento que paralisou mais de 200.000 trabalhadores em várias partes do país, em bancos públicos e privados.

Foi contra esse quadro de penalização do trabalho que os trabalhadores dos bancos desencadearam a paralisação, reivindicando a reposição da inflação e mais 17% de aumento real. Um mês depois, sem ganho real, mas tendo mostrado que algo novo se passava no espaço de trabalho dos bancos, a greve foi suspensa. Se parece visível a derrota material da greve, o mesmo não se pode dizer no plano da política e da ação. Aqui houve uma resposta coletiva e sob a forma de greve, depois da monumental reestruturação vivenciada no interior do espaço dos bancos.

O reino da terceirização

Outro setor que experimentou mudanças significativas foi o de calçados, situado em Franca, no interior de São Paulo, onde as técnicas de gerenciamento da força de trabalho foram implementadas em várias empresas, visando o «envolvimento» dos trabalhadores no processo de reestruturação da produção, com a finalidade de aumentar a produtividade do trabalho12.

Como consequência desse processo, presenciou-se uma significativa redução de postos de trabalho, que oscilava em decorrência dos movimentos do mercado, além da reorganização produtiva, por meio da implantação de células de produção. Foi assim introduzido o denominado trabalho «polivalente» ou «multifuncional», que em verdade mais se assemelha a um mecanismo responsável por níveis mais acentuados de intensificação e exploração da força de trabalho.

Além das mudanças na organização produtiva, o setor calçadista vivenciou um intenso processo de terceirização por meio da ampliação do trabalho em domicílio, nas pequenas unidades produtivas. Isso contribuiu para o agravamento das condições de trabalho, uma vez que boa parte desse trabalho é realizada em locais precários e improvisados, dentro e fora das casas, alterando o espaço familiar e as suas condições de vida.

Ao estudar a indústria calçadista de Franca, a pesquisa também constatou uma degradação dos direitos sociais do trabalho, que se ampliou em função da externalização e da terceirização da produção. Direitos conquistados, como o descanso semanal remunerado, férias, o 13o salário e aposentadoria, tornaram-se mais facilmente burláveis. Houve, ainda, uma ampliação do trabalho infantil, consequência direta da transferência do trabalho produtivo do espaço fabril para o espaço domiciliar, onde o controle do trabalho infantil fica ainda mais difícil13. Os exemplos anteriores já evidenciam como o universo do trabalho tem sido fortemente penalizado, em consequência dos mecanismos introduzidos pela liofilização organizacional. Se as formas da reestruturação produtiva têm sido diferenciadas, quando se toma a realidade cotidiana do trabalho, um traço praticamente constante tem sido a tendência de aumento dos mecanismos de desregulamentação e até mesmo de precarização da força de trabalho.

No setor têxtil, o processo de reestruturação produtiva foi muito intenso ao longo dos anos 90, como consequência da política de abertura econômica e de liberalização comercial que desorganizou fortemente as indústrias. O processo acarretou um enorme desemprego, com diminuição de mais de 50% do nível de emprego na primeira metade da década, além de um alto grau de terceirização da força de trabalho.

Embora tenha havido, na região pesquisada, crescimento do número de empresas ao longo da década de 1990, esse aumento traz consigo o enorme processo de reestruturação das grandes empresas e a transferência de amplos espaços produtivos para o universo das micro e pequenas empresas que proliferaram no setor.

O incremento tecnológico, as novas formas de organização da produção e a introdução ampliada da terceirização acabaram por acarretar altos níveis de desemprego e subemprego no setor têxtil, compensados apenas parcialmente pelo crescimento das pequenas e microempresas.

Na indústria de confecções, além dos baixos níveis de remuneração da força de trabalho, a terceirização tornou-se um elemento estratégico central implementado pelas empresas para reduzir os custos e aumentar a produtividade, sem desconsiderar a importante significação política dessa medida, que é tanto maior quanto mais combativos são os sindicatos. Esse processo originou a ampliação do trabalho em domicílio e as chamadas «cooperativas de trabalho», responsáveis por formas acentuadas de subcontratação e precarização da força de trabalho, pela redução significativa da remuneração da força de trabalho e pelo descumprimento dos direitos trabalhistas.Uma vez preservada a marca, na era do capitalismo dos signos, das embalagens, do invólucro e do supérfluo, as empresas passaram a recorrer ainda mais à terceirização, reduzindo os custos da produção, acarretando um enorme desemprego e enfraquecendo a coesão e a solidariedade dos trabalhadores.

Na década de 1990, por exemplo, a Hering, sediada em Santa Catarina, terceirizou mais de 50% da sua produção, acarretando o desemprego de cerca de 70% da sua força de trabalho, conforme dados da mencionada pesquisa. Processo similar ocorreu com a Levi Strauss do Brasil, que, na mesma década, criou uma «cooperativa», eliminando praticamente todos os seus postos diretos de trabalho.

O «infoproletariado»

Nas empresas de telecomunicações, as alterações no universo do trabalho também foram de grande monta. A necessidade de inovar os processos, os produtos e os serviços ampliou em muito a importância da esfera comunicacional para a agilização do ciclo produtivo que agora opera em tempo virtual. Esse processo de mercadorização da informação possibilitou a direta e rápida incorporação dos novos dados e informações ao mundo produtivo, instrumental decisivo para a continuidade das chamadas «inovações produtivas».

Um caso estudado foi o da Sercomtel, empresa estatal com sede em Londrina. Dada a sua condição de empresa pública que comportava uma certa estabilidade dos trabalhadores, a alternativa encontrada pela nova lógica gerencial, sob influxo privatista, foi a redução e o remanejamento de parcela dos assalariados por meio dos planos de aposentadoria e demissão voluntária, que possibilitaram reduzir o quadro de pessoal. O ritmo quase alucinante da terceirização e da automatização, que marcam o fetiche da tecnologia, acabou atuando também para dificultar os laços de solidariedade de classe, reforçando ainda mais a flexibilização e a conseqüente precarização do trabalho no setor de telecomunicações. No fluxo das tendências anteriormente analisadas, também a terceirização foi recorrente, sobretudo por meio da introdução dos call centers, que passaram a se responsabilizar por todo o serviço de mediação do cliente com a empresa.

E a expansão desse novo universo das empresas de call center nos levou a pesquisar o setor de telemarketing, onde constatamos que a enorme ampliação de empregos é preenchida predominantemente por jornadas parciais, de seis horas diárias, cujas atividades são marcadas pela acentuada intensificação dos ritmos e pelo aumento da exploração da força de trabalho. Cabe lembrar, também, que esse setor (como se pode conferir no Grupo Atento-Brasil) tem seu contingente laborativo predominantemente feminino, com mais de 70% de mulheres, confirmando-se a tendência forte de feminização do mundo do trabalho em diversos setores e ramos.

Seu principal «produto» é dado pela prestação de serviços, por meio do atendimento telefônico, que busca a solução de dúvidas, o oferecimento de informações (como endereços e telefones) e a orientação de clientes na compra ou utilização de um produto, entre tantas possibilidades abertas pelo telemarketing14. E, para realizar essa jornada diária, as teleoperadoras, sempre com seus headsets (fones de ouvido), ficam quase todo o tempo de trabalho sentadas, coladas no visor do microcomputador e no teclado, sob rígida vigilância das supervisoras, que exigem sempre maior produtividade e controlam o tempo médio de atendimento das trabalhadoras. Aqui também constatamos o crescente adoecimento no trabalho, algo que tem sido constante no setor de telemarketing.

Quanto às condições de trabalho, pode-se testemunhar, com base na pesquisa, que em muitas dessas empresas de call center e telemarketing há inclusive «baias» que separam as trabalhadoras, para que elas não conversem e não diminuam os ritmos extenuantes de trabalho, rigorosamente cronometrados.

No universo dos trabalhadores da arte, no teatro lírico, também contemplado pela pesquisa, as relações de trabalho configuram cada vez mais uma ausência de regulamentação específica para o trabalho musical. O trabalhador do canto lírico, bem como os músicos de orquestra, dada a feição de «prestação de serviços», vivem sob a marca da instabilidade, que permite o desligamento dos artistas pela direção dos teatros sempre que não houver interesse na renovação dos contratos. Como estes são renovados periodicamente (a cada dois ou três meses), não se configura o reconhecimento do vínculo empregatício.

No contexto dos artistas dos coros, que anteriormente tinham maior estabilidade, o processo de flexibilização se intensificou ao longo dos anos 90. Pode-se perceber também uma precarização maior do trabalho, aumentando a busca por outras atividades, além de revelar uma dupla fragilidade na organização dos artistas, dada, por um lado, pela forte individualização do trabalho e, por outro, pela alta competição que marca a profissão, aumentando ainda mais o risco do desemprego.

Este breve retrato aqui oferecido nos permite observar um nítido crescimento de relações de trabalho mais desregulamentadas, distantes da legislação trabalhista, gerando uma massa de trabalhadores que passam da condição de assalariados com carteira para a de trabalhadores sem carteira assinada, especialmente durante a década de 1990. Se nos anos 80 era relativamente pequeno o número de empresas de terceirização, locadoras de força de trabalho de perfil temporário, na década seguinte esse número aumentou significativamente para atender à grande demanda por trabalhadores temporários, sem vínculo empregatício, sem registro formalizado. Essas mutações, portanto, inseridas na lógica da racionalidade instrumental do mundo empresarial, estão intimamente relacionadas ao processo de reestruturação produtiva do capital, no qual as grandes empresas, por meio da flexibilização dos regimes de trabalho, da subcontratação e da terceirização, procuram aumentar sua competitividade fraturando e fragmentando ainda mais a classe-que-vive-do-trabalho.

A proliferação dos trabalhadores dos call centers e das empresas de telemarketing como trabalhadores em serviços cada vez mais inseridos na lógica produtiva, de agregação de valor, acabou por criar um novo contingente de trabalhadores, que Ursula Huws denominou cybertariat («ciberproletariado»), o novo proletariado da era da cibernética. Ruy Braga e eu o denominamos como infoproletariado15, ou seja, composto por trabalhadores que procuram uma espécie de trabalho cada vez mais virtual em um mundo profundamente real, conforme o sugestivo título do livro Huws16, que trata de compreender os elementos que configuram o mundo do trabalho na era da informática, do telemarketing e da telemática.

Isto nos permite afirmar que, em plena era da informatização do trabalho, do mundo maquinal da era da acumulação digital, estamos presenciando a época da informalização do trabalho, caracterizada pela ampliação dos terceirizados, pela expansão dos assalariados do call center, subcontratados, flexibilizados, trabalhadores em tempo parcial, teletrabalhadores, pelo cyberproletariado, o proletariado que trabalha com a informática e vivencia outra pragmática, moldada pela desrealização, pela vivência da precarização, daquilo que neste livro, sugestivamente, Luciano Vasapollo denominou «trabalho atípico».

Conclusão

Estamos vivenciando, portanto, a erosão do trabalho contratado e regulamentado, dominante no século XX, e vendo sua substituição pelas diversas formas de «empreendedorismo», «cooperativismo», «trabalho voluntário», etc. O exemplo das cooperativas talvez seja ainda mais esclarecedor. Em sua origem, elas nasceram como instrumentos de luta operária contra o desemprego, o fechamento das fábricas, o despotismo do trabalho. Hoje, entretanto, contrariamente a essa autêntica motivação original, os capitais criam falsas cooperativas como instrumental importante para depauperar ainda mais as condições de remuneração e aumentar os níveis de explotação da força de trabalho, fazendo erodir ainda mais os direitos do trabalho.

As cooperativas «patronais» no Brasil vêm se tornando verdadeiros empreendimentos, visando aumentar ainda mais a exploração da força de trabalho e a conseqüente precarização da classe trabalhadora. Similar é o caso do «empreendedorismo», que cada vez mais se configura como forma oculta de trabalho assalariado e que permite o proliferar das distintas formas de flexibilização salarial, de horário, funcional ou organizativa. É neste quadro, caracterizado por um processo tendencial de precarização estrutural do trabalho, em amplitude ainda maior, que os capitais estão exigindo também o desmonte da legislação social protetora do trabalho.

Ou seja, no movimento pendular do trabalho, preservados os imperativos destrutivos do capital, oscilamos crescentemente entre a perenidade de um trabalho cada vez mais reduzido, intensificado e mais explorado, dotado de direitos, e uma superfluidade crescente, cada vez mais geradora de trabalho precarizado e informalizado, como via de acesso ao desemprego estrutural.

  • 1. R. Antunes: Classe operária, sindicatos e partidos no Brasil, Cortez, São Paulo, 1982 e A rebeldia do trabalho. O confronto operário no abc paulista: as greves de 1978/80, 2a ed., Unicamp, Campinas, 1992.
  • 2. O método just-in-time ou «método Toyota» baseia-se na utilização de trabalhadores polivalentes e máquinas multiuso. Busca reduzir, entre outros, os custos de estocagem ao produzir o necessário, nas quantidades necessárias e no momento necessário.
  • 3. Giovanni Alves: O novo (e precário) mundo do trabalho: Reestruturação produtiva e crise do sindicalismo, Boitempo, São Paulo, 2000.
  • 4. «Liofilização» se refere aqui ao processo pelo qual o trabalho vivo é progressivamente substituído pelo maquinário tecno-informacional (trabalho morto). Nas empresas «liofilizadas», é necessário um «novo tipo de trabalhador», que os capitais denominam, de maneira enganosa, como «colaborador».
  • 5. R. Antunes e Maria Moraes Silva (orgs.): O avesso do trabalho, Expressão Popular, São Paulo, 2004; G. Alves: ob. cit.; e Maria da Graça Druck: Terceirização: (Des)Fordizando a fábrica: um estudo crítico do complexo petroquímico, Boitempo, São Paulo, 1999.
  • 6. Eurenice Lima: Toyotismo no Brasil: O desencantamento da fábrica, envolvimento e resistência, 1a ed., Expressão Popular, São Paulo, 2004.
  • 7. Nise Jinkings: Trabalho e resistência na «fonte misteriosa». Os bancários no mundo da eletrônica e do dinheiro, Editora da Unicamp, Campinas e Imprensa Oficial do Estado, São Paulo, 2002; e Selma Venco: Telemarketing nos bancos. O emprego que desemprega, Editora da Unicamp, Campinas, 2003.
  • 8. N. Jinkings: op. cit.
  • 9. Liliana Segnini: Mulheres no trabalho bancário. Difusão tecnológica, qualificação e relações de gênero, Edusp, São Paulo, 1998.
  • 10. N. Jinkings: op. cit.
  • 11. N. Jinkings: op. cit.
  • 12. Vera Lucia Navarro: «O trabalho e a saúde do trabalhador na indústria de calçados» em São Paulo em Perspectiva vol. 17 No 2, 2003, pp. 32-41.
  • 13. Ibid.
  • 14. Claudia Mazzei Nogueira: O trabalho duplicado. A divisão sexual do trabalho e na reprodução. Um estudo das mulheres trabalhadoras no telemarketing, Expressão Popular, São Paulo, 2006.
  • 15. R. Antunes e R. Braga: Infoproletários. Degradação real do trabalho virtual, Boitempo, São Paulo, 2009.
  • 16. The Making of a Cybertariat: Virtual Work in a Real World, Monthly Review Press, Nova York-The Merlin Press, Londres, 2003.
Este artículo es copia fiel del publicado en la revista Nueva Sociedad , Junho 2012, ISSN: 0251-3552


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