Tema central
NUSO Nº Outubro 2022

AMLO e suas contradições

O presidente mexicano tem caminhado na corda bamba, equilibrando as tendências opostas do populismo: a ampliação da democracia e o fortalecimento da liderança pessoal. Mas parece que ele começou a cambalear. Uma análise dos resultados de sua gestão permite abordar as tensões de seu governo e as razões de sua alta popularidade.

AMLO e suas contradições

Em 1o de dezembro de 2021, a praça central da Cidade do México, o Zócalo, ficou repleta de simpatizantes do presidente Andrés Manuel López Obrador (amlo). Havia dois anos que não se via uma convocação popular dessa magnitude. Chegaram ônibus de todo o país, alguns deles organizados por distritos governados pelo Movimento Regeneração Nacional (Morena), partido de amlo, e por alguns sindicatos. Após horas de espetáculos musicais, apareceu o presidente. Seus seguidores estavam felizes por ver alguém que admiram como político e autoridade moral. Em seu discurso, amlo destacou as políticas promovidas pelo governo e os planos para o futuro. «Em três anos, a mentalidade do povo mudou como nunca, e isso é o mais importante de tudo»1, afirmou.

Enquanto seus partidários celebravam e o presidente proclamava seu respeito à Constituição, um grupo muito menor se reunia a cerca de 16 quilômetros do centro da cidade. Fora do Centro de Pesquisa e Docência Econômicas (cide, no acrônimo em espanhol), os estudantes tinham organizado uma ocupação para protestar contra o reitor da instituição designado pelo governo em novembro daquele ano. O cide é uma prestigiosa universidade pública especializada na formação em Ciências Sociais. Enquanto a Universidade Autônoma do México (unam) tem mais de 200.000 estudantes, o cide conta somente com 400. Foi fundado em 1974, durante o mandato do presidente nacionalista de esquerda Luis Echeverría, para formar especialistas que pudessem aconselhá-lo em temas de política econômica. Na década de 1990, entretanto, o centro se tornou conhecido por seus professores que concluíam doutorados no exterior, o que incluía em alguns casos formação em economia de mercado2. amlo alega que, durante o período neoliberal que critica com tanta frequência, a instituição acabou «abominando o serviço público»3.

Os estudantes do cide não têm a mesma visão. Eles iniciaram uma greve no último trimestre do ano passado, quando o novo reitor chegou e transgrediu práticas habituais da universidade com respeito à promoção e à retenção de seu corpo docente. Muitos se preocupam que, em um contexto no qual amlo tende a equiparar o serviço público com o apoio a seu governo, haja um risco real para a liberdade acadêmica de quem se envolve em pesquisa ou defesa de causas que divirjam dos planos e das políticas do governo. Esses temores estão relacionados com outros ataques ao âmbito acadêmico. Em 2021, o governo mexicano foi criticado na mídia internacional pelo modo como tratou um caso de corrupção contra alguns cientistas que tinham recebido apoio estatal, em que rejeitou decisões judiciais que favoreciam os cientistas e os ameaçou com a aplicação de leis muito severas utilizadas normalmente contra traficantes de drogas4. Estudantes e professores temem igualmente que o governo de amlo os tenha incluído entre seus alvos e que esteja utilizando a política de austeridade para atacar instituições que considera hostis a seus propósitos.

O «amlofest» e a ocupação do cide pelos estudantes dificilmente podem ser comparados em escala, e o contraste entre esses dois episódios sugere algo sobre a natureza do governo de amlo. Embora o presidente continue contando com níveis de aprovação próximos a 60%, seu índice de desaprovação cresceu de escassos 14% em 2019 para 39% em fevereiro passado5. O governo conserva sua popularidade entre amplas faixas da população, mas as ações do presidente têm afastado um número crescente de eleitores. amlo julga quase tudo em função de como sua imagem é afetada. Durante uma de suas conferências de imprensa matinais, ele se vangloriou de ter o segundo maior índice de aprovação líquido do mundo, superado somente por Narendra Modi, aparentemente sem advertir que a comparação poderia ser pouco favorecedora, dadas as características do governante indiano. O presidente reserva para si o direito de decidir quem pertence ao autêntico povo e quem é parte da elite egoísta. Em sua lógica de «comigo ou contra mim», ele apresenta os críticos – o que inclui não somente acadêmicos, mas também jornalistas e ativistas de várias causas – como pessoas motivadas pela defesa de seus privilégios e do velho regime. Muitos dos simpatizantes de amlo repercutem essas críticas; por exemplo, Gibrán Ramírez, jornalista simpatizante do Morena, desdenhou da ocupação do cide chamando-a de «piquenique»6.amlo é o primeiro presidente mexicano de esquerda desde a transição do país a uma democracia competitiva, ocorrida no final da década de 1990. Quando foi eleito em 2018, muitos esperavam que sua presidência aprofundaria e expandiria a democracia ao reduzir a extrema desigualdade e a corrupção como havia prometido. Embora alguns estivessem preocupados com seus traços «populistas», os movimentos populistas não são totalmente inimigos da democracia e podem somar novas vozes à política, dar poder e integrar grupos marginalizados e desmantelar redes de privilégio. Mas esses movimentos também podem imbuir líderes carismáticos de poder simbólico, atacar instituições independentes e movimentos sociais e construir novas redes de privilégio baseadas na lealdade. Desde sua eleição, essas tendências opostas do populismo coexistiram no México de amlo, mas, no último ano, houve episódios mais frequentes e mais graves nos quais o presidente excedeu os limites da liderança democrática e incorporou a personalização da autoridade como a melhor forma de promover seu projeto político.

Os trabalhadores, um pouco melhor

Percebidas de modo geral como um referendo sobre a gestão de amlo, as eleições de meio mandato realizadas em junho de 2021 foram a primeira oportunidade para que sua coalizão (o Morena se associou a dois partidos pequenos) disputasse muitos dos poderosos governos dos estados do país. A coalizão conquistou bons resultados e obteve 11 dos 15 estados disputados, mas perdeu terreno na Câmara dos Deputados. Os principais partidos do sistema político prévio a amlo – os remanescentes do Partido Revolucionário Institucional (pri), de longa trajetória no poder, o Partido da Ação Nacional (pan), de direita, e o Partido da Revolução Democrática (prd), de centro-esquerda – formaram um bloco opositor unido e obtiveram resultados suficientemente positivos para evitar que o Morena conquistasse a maioria necessária para aprovar emendas constitucionais. Contudo, o Morena continua sendo o favorito inquestionável para as eleições presidenciais de 2024, nas quais provavelmente será representado por Marcelo Ebrard, secretário de Relações Exteriores, ou por Claudia Sheinbaum, prefeita da Cidade do México (a Constituição mexicana não permite a reeleição presidencial, norma que amlo prometeu respeitar).

Os resultados na Cidade do México permitem vislumbrar algumas das mudanças na coalizão presidencial. Sua vitória em 2018 foi o resultado de um apoio multiclassista, mas ele perdeu no ano passado a maioria das demarcações territoriais da cidade, o primeiro resultado desse tipo para um partido nominalmente de esquerda desde 2000. Com uma população superior a oito milhões, a Cidade do México tem sido o bastião da esquerda política do país, e tanto amlo como Ebrard foram seus prefeitos. Mas em maio passado, às vésperas das eleições de meio mandato, Ebrard e Sheinbaum foram prejudicados pelo desmoronamento de um trajeto elevado do metrô da Cidade do México, e sua construção e manutenção deficientes sugeriram que a conveniência política havia sido priorizada em detrimento da segurança dos passageiros. As derrotas do Morena na área oeste da cidade, onde se localizam alguns dos bairros mais ricos, representam não só a esperável hostilidade das classes mais altas – que amlo desqualifica como «fifís» (presunçosas) –, mas também a queda do apoio entre os profissionais de maior nível educacional. Ao mesmo tempo, sua força nas áreas mais pobres no leste da cidade mostra a lealdade dessa parcela de sua base eleitoral.Parte dessa lealdade se deve aos novos programas sociais implementados durante a gestão de amlo, que geraram conquistas limitadas, porém reais. O governo aprovou aumentos significativos do salário mínimo, em um país onde o salário médio de 2019 era inferior em termos reais ao de 2005. A série de aumentos salariais aprovados pelo Morena – que incluem uma elevação de 22% para 2022 – soma 65% em termos reais7. Os projetos de destaque do governo para combater a desigualdade e a pobreza mediante transferências de renda a estudantes e aposentados, entre outros grupos, também lhe propiciaram algum apoio. Entre 2018 e 2020, a população mexicana em situação de pobreza aumentou sete pontos percentuais8, número um pouco mais baixo que o esperado devido aos efeitos da pandemia. Durante o mesmo período, os benefícios provenientes de programas sociais cresceram 56%, estando as transferências de renda entre as razões dessa aparente contradição9.

Outras reformas trabalhistas introduzidas pelo Morena começaram a surtir efeitos positivos. Conforme requerido pelo Tratado Norte-Americano de Livre Comércio (nafta, no acrônimo em inglês), o partido introduziu novas regulamentações que permitem que trabalhadores e trabalhadoras apresentem queixas, anulem contratos fraudulentos e formem sindicatos independentes sobre bases mais favoráveis10. Trata-se de reformas significativas e democráticas. Durante os governos semiautoritários do pri, partido que governou o México durante a maior parte do século xx, sindicatos poderosos obtiveram posições de privilégio em setores-chave em troca de lealdade política. Esses sindicatos foram pilares fundamentais do regime e seus dirigentes enriqueceram, mas somente uma minoria de trabalhadores foi beneficiada. Uma representação sindical mais democrática pode criar uma nova cultura de trabalho no México.

Como exemplo, em fevereiro de 2022, os funcionários de uma fábrica da General Motors na cidade de Silao, que monta caminhonetes Chevy e gmc, aprovaram majoritariamente em votação sua união a um sindicato independente, encerrando o convênio negociado por um dos dinossauros da era do pri. De acordo com o antigo convênio, os salários chegavam no máximo a 23 dólares estadunidenses diários, e os trabalhadores relatavam maus-tratos frequentes, como a recusa de pausas para ir ao banheiro. Os organizadores do sindicato independente enfrentaram intimidações e ameaças para obterem essa conquista. Seu sucesso é emblemático quanto às possibilidades que se abrem para o poder dos trabalhadores a partir da nova lei, especialmente no setor privado. Caso se consolide, esse fortalecimento do trabalho promovido pela nova legislação oferecerá uma das esperanças mais tangíveis de uma redistribuição duradoura da riqueza no México.

Em outras áreas, a centralização do poder no Executivo e a falta de transparência reduzem o potencial das reformas. Tudo nos programas sociais está coberto de opacidade, desde o registro de beneficiários até os efeitos sociais das transferências de renda. Ao contrário do que afirma a retórica do governo, o gasto social é de fato mais baixo e menos progressivo do que com o presidente anterior11. A evolução dos sindicatos-chave do setor público também não é muito alentadora. O sindicato dos trabalhadores da Pemex, empresa petrolífera estatal, foi famoso durante décadas por sua corrupção, e seus dirigentes ostentavam apartamentos em Miami e Cancún. Em 2019, o líder histórico do sindicato foi obrigado a se demitir, mas a Procuradoria-Geral (formalmente independente, mas percebida como aliada ao presidente) deixou cair ou conteve as investigações judiciais, apesar dos claros indícios contra ele. Muitos se perguntam se a importância estratégica do sindicato levou amlo a tolerar práticas antidemocráticas enquanto seus líderes se mantinham favoráveis ao governo. Na mesma época da votação ocorrida na fábrica da General Motors, os trabalhadores da Pemex chegaram a um resultado contrário daquela que saiu vitoriosa em Silao e consagraram um colaborador próximo ao líder deposto em uma eleição na qual os candidatos independentes denunciaram intimidação e clientelismo12.

A reforma energética

A Pemex é fundamental para os planos de desenvolvimento regional de amlo para o sudeste, a região mais pobre do país, assim como para seu objetivo de alcançar a «soberania energética». Para isso, sua administração está concedendo injeções de capital, créditos fiscais e generosos aumentos orçamentários à profundamente endividada estatal13. O governo federal também reabilitou refinarias antigas, iniciou a construção de uma nova instalação e adquiriu outra no Texas14.

O objetivo da soberania energética também esteve por trás da proposta presidencial de uma reforma constitucional – rejeitada na Câmara dos Deputados em 18 de abril – que transformaria drasticamente o mercado nacional de energia elétrica relegando empresas privadas e fortalecendo a Comissão Federal de Eletricidade (cfe), a empresa estatal de energia. Segundo o governo, a legislação energética atual – resultado de uma reforma constitucional de 2013 – cria uma «desordem regulatória»15 e desperdiça bilhões de dólares em subsídios a empresas privadas16. Rocío Nahle, secretária de Energia, sustentou que um mercado energético submetido ao controle privado deixa os consumidores indefesos perante as flutuações de preços17. A reforma proposta corrigiria essa situação ao devolver o controle da eletricidade ao Estado, garantindo o fornecimento a todos os consumidores e reduzindo os riscos para a segurança nacional18.

Se a reforma fosse aprovada, as instalações da cfe teriam prioridade sobre as privadas no envio de sua energia para a rede de distribuição, o que representaria um duro golpe para as instalações de energia renovável, majoritariamente em mãos privadas19. Além disso, a reforma estabelecia que a cfe seria legalmente responsável pela geração de pelo menos 54% da eletricidade do México, muito acima dos atuais 38%. As instalações existentes não têm capacidade para atender a essa necessidade, o que muito provavelmente significaria o direcionamento de mais recursos para combustíveis fósseis. O Climate Action Tracker classifica as ações e as políticas mexicanas para a redução de emissões como «altamente insuficientes», e a aposta de amlo pela energia não renovável só pioraria a situação20.

A reforma energética proposta também estabelecia a supressão de organismos responsáveis por regular a produção de energia, considerados pelo governo limitadores do poder presidencial, além de um monopólio estatal sobre a exploração das enormes jazidas mexicanas de lítio21. A busca por mudanças dessa natureza é representativa da crescente centralização do poder no governo federal e da sistemática desconfiança de amlo com relação a organismos públicos, empresas e atores políticos fora de seu controle direto. 

Após anunciar a rejeição da proposta de lei, o presidente chamou os deputados de oposição que votaram contra de «traidores da pátria».

Autonomismo

A pesquisadora especializada em relações internacionais Natalia Saltalamacchia descreve o foco de amlo em política energética como «autonomismo», isto é, a convicção de que os países mais frágeis deveriam se concentrar em ampliar sua autonomia para atingir objetivos nacionais, não interesses estrangeiros. A mesma ideia se aplica à política exterior da administração de amlo. O presidente cita frequentemente Benito Juárez, estadista liberal do século xix, que afirmou: «O respeito ao direito alheio é a paz». Na prática, isso significa certa indiferença com relação às condições internas de outros países. Essa indiferença não é ideológica, já que amlo buscou manter boas relações com Donald Trump e faz o mesmo agora com os líderes cubanos. O resultado é que o México adota hoje uma postura na política exterior semelhante à que caracterizava os governos do pri, que buscavam com frequência atuar como mediadores em conflitos regionais.

No ano passado, o país ocupou a presidência rotativa do Conselho de Segurança das Nações Unidas e foi anfitrião de uma cúpula de chefes de Estado da Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (celac), um grupo que alguns Estados latino-americanos – especialmente os não democráticos, como Venezuela, Nicarágua e Cuba – esperam construir como alternativa à Organização dos Estados Americanos (oea), sem a presença dos Estados Unidos. Em um discurso realizado na cúpula de setembro, amlo defendeu o fim da «política de bloqueios e de maus-tratos», e «nos associarmos pelo bem da América, sem fragilizar nossas soberanias». Também defendeu a construção de algo parecido com «o que foi a Comunidade Econômica que deu origem à atual União Europeia». No entanto, a ue impõe restrições significativas às estruturas legais e à política econômica em troca da inclusão. Como assinalou Martha Bárcena Coqui, ex-embaixadora do México nos eua, a ue é um exemplo supremo de «cessão de soberania nacional a uma organização supranacional»22.

As sanções impostas pelos eua causaram sem dúvida sofrimento à população de Cuba e da Venezuela (e, pode-se argumentar, fortaleceram seus governos em lugar de enfraquecê-los). E em teoria, é útil para um país como o México estar apto para realizar negociações sensíveis, como aquelas mantidas entre o governo venezuelano e a oposição. Mas amlo muitas vezes interpreta os esforços para proteger a democracia como interferências na soberania. Nesse sentido, por exemplo, ele advertiu contra as sanções à Nicarágua após as eleições ilegítimas de novembro de 2021 e discordou das propostas de proibir os meios de comunicação estatais russos depois da invasão da Ucrânia23. «Temos boas relações com todos», declarou. Outra iniciativa recente da Secretaria de Relações Exteriores foi amplamente elogiada, inclusive por muitos críticos de amlo24. Em agosto, o órgão anunciou que iniciaria ações legais contra os fabricantes de armas estadunidenses por contribuírem para a violência e a instabilidade no México. Entre 2014 e 2018, 70% das armas rastreadas no México eram provenientes dos eua. O processo judicial, aceito por um tribunal de Massachusetts, acusa os fabricantes de produzirem deliberadamente armas atrativas para o mercado e os grupos criminosos mexicanos. Os compradores de armas ilegais e contrabandistas aproveitam as normas extremamente brandas dos Estados Unidos para adquirir armas e depois as traficar em direção ao sul. «Assim como não podem despejar resíduos tóxicos ou outros contaminantes para envenenar os mexicanos do outro lado da fronteira», afirma-se no processo, «os denunciados não podem colocar suas armas de guerra nas mãos dos cartéis, causando um dano grave e reiterado, e depois pedir que os isentem de responsabilidade»25. Os especialistas jurídicos não esperam que esse processo tenha sucesso, mas ele pode ainda assim ampliar a conscientização sobre o caráter compartilhado da responsabilidade pela violência armada no México e, talvez, gerar certa pressão comercial e política.

Contra «os conservadores»

amlo tende a identificar os países com seus governantes e não seus cidadãos, o que pode nos dizer algo sobre como ele pensa o México. Algumas vezes, o presidente descreve sua liderança como se estivesse acima de outros princípios ou instituições democráticas, embora isso não implique que ele ou o México tenham se tornado autoritários. Há divisões dentro de seu partido que ele não pode controlar, e algumas de suas propostas estão travadas no Congresso. E apesar de todos os reveses para sua administração, sua popularidade pessoal ainda é imensa, mas seu estilo de liderança está ligado, ao menos em parte, a tradições mais antigas e antidemocráticas, especialmente à crença de que o chefe de Estado é a única solução possível para os problemas do país.

Uma pesquisa realizada em março de 2022 mostrou que o índice de aprovação de amlo havia caído para 54%. Ainda que esteja elevada para a maioria dos padrões, sua aprovação foi prejudicada por um escândalo recente que enfraqueceu sua afirmação de que ele e seu governo «não são iguais» (como repete com frequência) aos governantes anteriores do México26. Em janeiro, novos relatórios mostraram que um dos filhos de amlo, antes com um estilo de vida de classe média, passou a viver de forma luxuosa ao se mudar para uma enorme casa em Houston27. Posteriormente, foi revelado que ele está trabalhando para uma empresa pertencente aos filhos de um empresário responsável por supervisionar a construção do Trem Maia, um dos megaprojetos de infraestrutura de amlo. O presidente reagiu à história expondo informações privadas do jornalista responsável por tal revelação e exigindo uma investigação sobre sua receita e patrimônio, além de detalhes de seus sócios de negócios e familiares. Essa hostilidade perante a mídia cresceu de forma incessante durante o governo de amlo, chegando ao ponto de o México ser considerado hoje um dos países mais perigosos para jornalistas.

Ao longo dos três primeiros anos de seu governo, o discurso político de amlo mudou de forma sutil: ele abandonou pouco a pouco suas afirmações antioligárquicas sobre a máfia do poder – sua expressão para se referir à aliança entre os plutocratas monopolistas e os políticos corruptos – e passou a falar dos conservadores, um grupo identificado de forma vaga e que inclui empresários, jornalistas, intelectuais, feministas, ativistas de direitos humanos e até mesmo a «classe média» em seu conjunto. O único aspecto que os une é que amlo percebe todos como «adversários» de seu governo. O mandatário mexicano costumava ser conhecido por seu conceito inclusivo de «povo», mas, durante seu mandato, esse grupo vem se reduzindo cada vez mais.

A instância mais extrema dessa tendência é sua disputa com o Instituto Nacional Eleitoral (ine), o órgão público autônomo responsável pela organização das eleições. As manipulações eleitorais fizeram parte do sistema político do país durante a maior parte do século xx, mas diversas reformas realizadas na década de 1990 tornaram o ine um elemento importante na democratização do México. Entretanto, amlo o trata como um obstáculo, chegando a chamá-lo de inimigo da democracia no país. As autoridades do ine devolveram algumas vezes a hostilidade de amlo adotando um discurso que apresenta o «populismo» (empregado para se referir a amlo e ao Morena) como uma ameaça à democracia.

A inimizade do presidente com as autoridades eleitorais remonta a 2006, quando ele foi derrotado em sua primeira tentativa de chegar à presidência por uma margem inferior a um ponto percentual. Desde então, amlo tem estado convencido de que o ine (chamado na época de ife) cometeu fraude eleitoral contra sua candidatura. As evidências dessa afirmação são insuficientes, e o ine também foi responsável pela organização de eleições que terminaram em vitória para o Morena, entre elas a do próprio amlo em 2018.

O ine está em boa medida fora do alcance da autoridade pessoal de amlo (o órgão recebeu autonomia constitucional em 1996), mas sofreu cortes orçamentários substanciais no contexto de sua política de austeridade. Essas questões chegaram a um clímax com a inédita convocação de uma votação nacional para uma revogação de mandato realizada em abril. O plebiscito foi proposto em 2019 pelo próprio governo, que o descreveu como um instrumento de democracia direta para determinar se o povo «perdeu a confiança» em amlo. Dada a popularidade do presidente, o resultado desse exercício nunca foi questionado (com muita abstenção por parte da oposição, 91% dos votos favoreceram a continuidade de amlo no poder). Mas, mesmo com um resultado previsível e participação inferior a 18%, a votação permitiu que amlo empreendesse o equivalente a uma segunda campanha eleitoral para promover sua imagem e a de seu partido um ano antes das eleições locais deste ano e das presidenciais de 2024. Além disso, o referendo representou uma pesada carga para o ine, somada a seu já apertado orçamento. Em dezembro passado, o Conselho Geral do ine votou a favor de suspender momentaneamente a organização do plebiscito até que a Secretaria da Fazenda disponibilizasse os recursos necessários. Em resposta, figuras de destaque do Morena pediram à Procuradoria-Geral a prisão dos membros do Conselho Geral e sugeriram que, daquele momento em diante, as eleições fossem organizadas pelo governo federal28.

Um dos principais pontos de discórdia a respeito do ine são os salários e os benefícios dos funcionários do Conselho e assessores do órgão. As reduções orçamentárias, juntamente com a consulta revogatória, representam uma forma indireta de exercer pressão sobre o ine para baixar os salários, mas o instituto se recusou a ceder. Depois que a Fazenda se negou a conceder mais recursos, o ine decidiu organizar a votação com apenas um terço das sedes necessárias para um exercício dessa magnitude. «Não fazem isso com satisfação. Eles não gostam de democracia», comentou amlo. «E tudo isso é porque eles querem manter seus salários e seguir vivendo como reis»29. Entretanto, independentemente das falhas do ine, colocar as eleições sob controle federal geraria sérias dúvidas sobre a legitimidade das próximas eleições.

O equilibrista

Durante os primeiros anos de seu mandato de seis, amlo caminhou na corda bamba equilibrando-se entre as tendências opostas do populismo: a ampliação da inclusão democrática e o fortalecimento da liderança pessoal à custa das instituições democráticas. Ele agora começou a cambalear. Os elementos positivos de seu governo – alguns de seus programas sociais, as novas leis trabalhistas, o processo contra os fabricantes de armas – continuam sendo objeto de elogio, embora não necessariamente melhores que os que outra administração poderia empreender. Outros elementos podem ser polêmicos, mas permanecem dentro do campo da divergência democrática. No entanto, a resistência de amlo à transparência e ao escrutínio, e sua preferência pelo controle presidencial são motivos reais de preocupação.

amlo afirmou que o próximo plebiscito representa a democracia real e participativa: «Em uma democracia autêntica, o povo manda». Logo depois, declarou a seu modo, que ao mesmo tempo inclui e exclui, que a democracia é o «poder do povo, não dos intelectuais, não dos políticos, não dos jornalistas, dos especialistas, dos magnatas; é o poder de todos»30.


Nota: uma versão em inglês deste artigo foi publicada com o título «The Contradictions of AMLO» em Dissent, primavera de 2022. Tradução de Luiz Barucke.

  • 1.

    «Discurso del presidente Andrés Manuel López Obrador a 3 años de gobierno 2018-2021», disponível em https://lopezobrador.org.mx/2021/12/01/discurso-del-presidente-andres-manuellopez-obrador-a-3-anos-de-gobierno-2018-2021/.

  • 2.

    Mauricio Tenorio Trillo: «¿Por qué la inquina contra el cide?» em Reforma, 21/11/2021.

  • 3.

    Eduardo Dina: «Los neoliberales hicieron del cide una versión ‘hasta de segunda’ del itam: amlo» em El Universal, 28/1/2022.

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    Christine Murray: «Mexican President’s War on ‘Neoliberalism’ Moves on to Campus» em Financial Times, 4/11/2021.

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  • 6.

    «Gibrán Ramírez se burla de protesta en el cide: ‘Es un picnic de juventudes neoporfiristas’» em Reporte Índigo, 2/12/2021.

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    Jon Martín Cullell: «El salario mínimo en México subirá un 22% en 2022» em El País, 2/12/2021.

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    Rodolfo de la Torre: «Avanza la pobreza y retrocede la política social» em El Gatopardo, 10/8/2021.

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  • 11.

    Máximo Ernesto Jaramillo-Molina: «Los mitos de la política social de la 4t» em Nexos, 29/6/2021.

  • 12.

    Carlos Montesinos: «stprm: de vuelta al mismo lugar de Romero Deschamps» em Reporte Índigo, 2/2/2022.

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    «Pemex y CFE, las mayores apuestas del gobierno pierden 319,734.5 mdp en 2021» em El Ceo, 4/3/2022.

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    Francesco Manetto: «López Obrador persigue su sueño petrolero con un plan de soberanía energética para México» em El País, 29/12/2021.

  • 15.

    Rodrigo Benedith: «La reforma eléctrica de amlo busca arreglar la reforma fallida de EPN» em The Washington Post, 5/10/2021.

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    Oriol Malló: «Industria eléctrica y soberanía energética: lo que está en juego» em Jornada, 12/4/2021.

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    Javier Lafuente e Sonia Corona: «Rocío Nahle: ‘No nos va a venir nadie de fuera a decir si la reforma energética está bien o mal’» em El País, 17/10/2021.

  • 18.

    «cfe: falacias y realidades» em Jornada, 1/2/2021.

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    Isabella Cota e J.M. Cullell: «La iniciativa energética de López Obrador margina a las renovables en favor de la CFE» em El País, 2/2/2021.

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    J.M. Cullell: «Reforma eléctrica: López Obrador concentra el poder en la Comisión Federal de Electricidad» em El País, 1/10/2021.

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    M. Bárcena Coqui: «¿Es posible la unión latinoamericana?» em El Heraldo, 3/8/2021.

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    Natalie Kitroeff e Oscar Lopez: «Mexico Sues Gun Companies in us, Accusing Them of Fueling Violence» em The New York Times, 4/8/2021.

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    Zach Murdock: «Mexico Sues us Gun Manufacturers, Including Colt’s Manufacturing in Connecticut, over Weapons Trafficking that Arms Dangerous Drug Cartels» em Hartford Courant, 24/8/2021.

  • 26.

    Alejandro Moreno: «Casa Gris le ‘cuesta’ a amlo: Aprobación baja a 54% en febrero» em El Financiero, 1/3/2022.

  • 27.

    Carlos Loret de Mola: «Los lujos que sataniza amlo, su hijo mayor los goza» em El Universal, 28/1/2022.

  • 28.

    M. Albert Hernández: «Mario Delgado considera que hay que ‘exterminar’ al ine tras cancelación de candidaturas de Morena» em El Financiero, 29/3/2021.

  • 29.

    «López Obrador afirma que el INE realiza la consulta de revocación ‘a regañadientes’» em El Sur, 23/2/2022.

  • 30.

    «AMLO insistió que el INE sí tiene presupuesto para la Revocación de Mandato: ‘El pleito no es conmigo’» em Infobae, 17/1/2022.

Este artículo es copia fiel del publicado en la revista Nueva Sociedad , Outubro 2022, ISSN: 0251-3552


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