O socialismo estadunidense e a «esquerda do possível»
Entrevista com Bhaskar Sunkara
Nueva Sociedad 2019 / Dezembro 2019
Quando fundou a revista Jacobin no final de 2010, Bhaskar Sunkara tinha uma ambição ao mesmo tempo simples e imponderável: superar a barreira que manteve isolados importantes projetos editoriais do marxismo anglo-saxão – New Left Review, Monthly Review, Dissent – e colocar o socialismo no centro do debate mainstream dos Estados Unidos. Essa audácia fundacional foi acompanhada de uma aposta estilística: um socialismo apresentado em uma linguagem comunicativa e propositiva, um design gráfico inovador e uma atitude insurgente. Depois, vieram suas primeiras conquistas. Cinco anos após seu lançamento, Jacobin já era a indiscutível porta-voz da esquerda estadunidense, mas lhe faltava um golpe de sorte para que cumprisse seu principal objetivo. A campanha de Bernie Sanders em 2015 foi um divisor de águas: o «socialismo democrático», rótulo utilizado por Sanders para definir sua própria identificação política, tornou-se rapidamente uma expressão de uso comum e objeto de fascinação – e também de forte rejeição – para um público estadunidense que até pouco antes via essa denominação com a mesma descrença com que encarava uma invasão alienígena.
Por sua vez, o termo «socialismo democrático» remetia a uma das influências constitutivas da revista: a agrupação Socialistas Democráticos da América (dsa, na sigla em inglês). Ainda que diferentes tendências fossem apresentadas nas páginas de Jacobin – nas quais eram debatidos os méritos do comunismo italiano, Leon Trotski, Karl Kautsky, Ralph Miliband e o eurocomunismo –, a nova visibilidade do socialismo democrático evidenciou a missão ideológica da revista. Não por acaso, muitos integrantes de sua linha fundadora também militavam no dsa: tanto a revista como a organização – que não é um partido – adotavam uma estratégia dialogista e buscavam polemizar com o senso comum liberal (no sentido estadunidense, que é praticamente sinônimo de progressista) com o objetivo de conquistar novos adeptos ao socialismo.
Como relata Sunkara, a vitória de Donald Trump em 2016 foi o golpe de misericórdia. A derrota dos democratas por uma figura amplamente rejeitada dinamitou a legitimidade do partido e abriu um vácuo que logo seria preenchido por novas figuras da esquerda insurgente. Alexandria Ocasio-Cortez, Rashida Tlaib e Ilhan Omar são as figuras de maior destaque nas mídias hegemônicas, mas há atrás delas diversos socialistas, em grande parte afiliados ao dsa, muitos com menos de 30 anos de idade e que vêm registrando vitórias eleitorais por todo o país.
Embora não tenha a onipresença midiática de Ocasio-Cortez, Sunkara é convidado frequentemente pela cnn e por outros canais de grande audiência para discorrer sobre o socialismo. Seu novo livro, The Socialist Manifesto1 [O manifesto socialista], é uma boa síntese do tom que ele vinha elaborando em seu trabalho editorial: programático e agressivo, mas também jocoso e otimista. Navegando na nova onda socialista, Jacobin inclui, além das versões impressa e digital (com um milhão de visitas mensais), uma publicação teórica chamada Catalyst, a revista britânica Tribune, Jacobin Itália e, em breve, uma edição brasileira da mesma revista.
Segundo uma recente pesquisa da Gallup, 51% dos jovens estadunidenses com idade entre 18 e 29 anos possuem uma opinião favorável sobre o socialismo, ao passo que somente 45% têm um olhar positivo sobre o capitalismo. A que se atribui a surpreendente popularidade do socialismo?
Obviamente, o termo «socialismo» tem sido utilizado em um sentido muito vago. Quando falam de socialismo nos eua, costumam se referir a uma expansão do Estado de bem-estar. Parte da popularidade do socialismo se relaciona – apesar de a Guerra Fria ter terminado há muito tempo – com o fato de a direita estadunidense seguir utilizando o fantasma do socialismo para difamar reformas que são meramente liberais, inclusive aquelas não necessariamente apoiadas pelos socialistas, como o Obamacare lançado por Barack Obama para, com certos limites, melhorar a cobertura de saúde. Creio que, ironicamente, a direita do país conseguiu retirar da palavra parte do medo que transmitia ao repeti-la com frequência. Acredito também que as pessoas em geral sentem que o capitalismo não está funcionando para elas, ou pelo menos não como deveria. Em minha opinião, parte disso está por trás dessa pesquisa.
Depois, veio a campanha de Sanders. Por um acaso da história, Sanders define a si mesmo como socialista democrático. Sanders se politizou no ambiente do socialismo democrático e, desde jovem, integrou a Liga da Juventude Socialista (Young People’s Socialist League), o braço jovem do Partido Socialista dos eua. Mas acredito que a revista Jacobin, assim como alguns setores da esquerda estadunidense, desempenhou um papel importante na capitalização do descontentamento das pessoas com o liberalismo. O Occupy Wall Street, a revolta no estado de Wisconsin em 2011, a recente onda de greves de professores… todos esses processos estão mostrando o crescente descontentamento com determinados tipos de políticas dos democratas liberais. Até mesmo o Black Lives Matter, um movimento novo que denuncia o racismo e a violência contra as pessoas negras, nasceu a partir do descontentamento com os mesmos políticos negros eleitos, que eram justamente democratas liberais. Jacobin conseguiu delinear uma política à esquerda do liberalismo dominante e enunciar que esse tipo de política é, em termos amplos, uma política socialista democrática.
Para usar um clichê, o surgimento de Sanders e o descontentamento gerado pelas políticas liberais criaram as «condições objetivas» para o surgimento de um tipo de revolta à esquerda do centro liberal. No entanto, essa revolta poderia facilmente ter adotado uma linguagem mais populista, como a do Podemos. Tanto pela revista Jacobin quanto pela existência de redes socialistas nos eua, por nossa capacidade de lutar em categorias acima de nosso peso – sendo numericamente minoritários, mas com grande alcance midiático –, o debate se polarizou em torno do socialismo.
Não estou totalmente seguro de que tenha sido positivo que o debate tenha se desenvolvido dessa forma. Mas a verdade é que, se Jacobin tem algum crédito nisso, é com relação à linguagem que está sendo utilizada.É interessante o que você diz sobre o caráter fortuito da instalação do termo «socialismo». Por mais de um século, a pergunta parece ter sido: por que não há socialismo nos eua2? Agora que o termo está em circulação, talvez seja o momento de recuperar a história do socialismo no país e redescobrir algumas figuras esquecidas, como Eugene Debs, Mother Jones ou Bayard Rustin.
Obviamente, cabe recordar que o socialismo não foi inorgânico para a política estadunidense. Ele tem sido mais episódico que ausente. Há mais de 100 anos, víamos a primeira onda de socialismo estadunidense, e foi o melhor tipo de socialismo. Foi o melhor no sentido de ter «falado» socialismo em uma linguagem estadunidense, abarcando as diferentes línguas do país: o socialismo judeu do Lower East Side de Nova York, as tradições populistas do centro e do sul do país, o sindicalismo dos mineiros do oeste, os grupos socialistas cristãos. Basta olhar o caso de Eugene Debs, um ateu e fundador do Partido Socialista, e observar como ele também falava como um pastor cristão. O socialismo voltou a ganhar força com a Grande Depressão da década de 1930 e outra vez com a Nova Esquerda nos anos 60. E agora está ressurgindo novamente, mas de uma forma distinta. Em outras palavras, hoje é necessário que nos localizemos dentro de uma tradição socialista estadunidense.
Mas o que é tão importante quanto incomum com relação ao socialismo estadunidense é que ele esteve totalmente ausente da cena política desde a Nova Esquerda até hoje. Isso significa que, atualmente, podemos nos apresentar como uma força insurgente: nunca estivemos no poder, nunca fomos responsáveis por uma política de austeridade, como a social-democracia europeia. A situação atual nos permite trabalhar com a campanha de Sanders – a expressão massiva da centro-esquerda nos eua – e propor um programa próprio que, em linhas gerais, é social-democrata. Esse programa é visto por muitos nos eua como uma insurreição ou uma revolução política, embora em qualquer outro lugar do mundo pudesse ser visto com outros olhos, inclusive como simples retoques tecnocráticos. Também podemos inverter a pergunta que você propõe: por mais que haja uma tradição socialista, por que não se desenvolveu um partido trabalhista ou um partido social-democrata nos eua? Para ser breve, acredito que isso tem muito a ver com a contingência: perdemos batalhas fundamentais em determinados momentos da história.
Em primeiro lugar, no contexto da precoce industrialização estadunidense, houve uma divisão inicial entre os sindicatos de artesãos e os nascentes sindicatos de trabalhadores industriais. Além disso, o país sempre teve uma estrutura partidária incomum que dificultou a existência de outros partidos. Quando o socialismo começou a crescer em 1890, muitos eleitores – em sua maioria, homens brancos que conquistaram antes o direito de voto – já tinham consolidadas suas lealdades partidárias para com algum dos dois partidos majoritários: Democrata ou Republicano. E há também outras razões históricas para a ausência de um partido social-democrata. O Estado foi muito violento ao reprimir qualquer conflito trabalhista. E o tamanho do país acrescentou outras dificuldades: as diferentes células do socialismo estadunidense eram difusas e não tinham o aparato centralizado de outras partes do mundo, como ocorreu com os partidos da Segunda Internacional, com o Partido Social-Democrata da Alemanha [spd, na sigla em alemão] em 1880 e com os bolcheviques durante seus anos de atividade clandestina ou semiclandestina. É uma questão complicada que tento abordar em The Socialist Manifesto. Nós socialistas sempre estivemos presentes, em pequenas células, e realmente acredito que veremos um renascimento. Pode ser que esse renascimento não use exatamente o vocabulário político que gostaríamos como socialistas. De qualquer forma, vai haver uma crescente força de centro-esquerda, igualitária, um movimento com base social. A corrente sanderista na política estadunidense veio para ficar. Mas se o uso atual da linguagem socialista, o dsa ou a revista Jacobin permanecerão por muito mais tempo, isso é algo de que não tenho tanta certeza.
Você menciona a ideia de um socialismo vernáculo, que havia um socialismo falado com sotaque estadunidense. Há em Jacobin uma tentativa de adaptar o marxismo à mentalidade estadunidense, ao sonho americano e a sua fixação com a liberdade?
Creio que a base de nossa política precisa ressoar com o senso comum da maioria das pessoas. Nos eua, já contamos com as maiorias para levar adiante programas social-democratas. Já temos a maioria para impulsionar uma cobertura gratuita de saúde para todos (Medicare for All) e um programa de emprego garantido. Temos maiorias que pensam que a imigração é algo positivo. A pergunta é como aproveitar essas preferências políticas e transformá-las em uma plataforma. Acredito que a questão não é tanto como mudar a consciência das pessoas – sua consciência não é algo tão terrível –, mas sim convencê-las de que a política pode fazer diferença em suas vidas. Sob o capitalismo, é perfeitamente racional manter a cabeça baixa e não confrontar porque, por mais que entre trabalhadores e capitalistas haja uma dependência mútua, sempre será uma situação assimétrica de poder. É racional que, se alguém é demitido, recorra à ajuda de seus amigos e familiares para se manter, ou que busque capacitação e tente avançar. Todas essas respostas são mais racionais nas condições atuais que recorrer à greve ou envolver-se em um movimento político. Nosso objetivo como socialistas é dizer a essas pessoas que a política tem algumas soluções para elas e que buscamos criar a estrutura que canalize seu mal-estar, e que lute e defenda seus interesses. Sou muito otimista com relação à mentalidade da maioria da população estadunidense; sou otimista de que haverá, mais cedo ou mais tarde, uma maioria progressista duradoura neste país, como houve em outros.
Quando você fala de «nós», se refere ao dsa?
Não. Eu me refiro ao socialismo nos eua e à esquerda de modo geral. Não creio que o dsa seja uma organização suficientemente coerente para que possamos falar em termos de «nós». Qualquer um pode se afiliar a essa organização. Eu me refiro à esquerda estadunidense. Dentro do dsa, há anarcocomunistas, social-democratas, socialistas democráticos e trotskistas. Temos muitas tendências dentro do arco do dsa e, de modo geral, elas não estão organizadas em facções, mas majoritariamente trabalhando em conjunto, o que é algo positivo. Não é a mesma organização à qual me afiliei em 2007 quando tinha 17 anos. Mesmo assim, como o dsa chega a ter 60.000 integrantes, não há problema em não ser coerente, dirigido por um comitê central que considere a si mesmo a vanguarda da classe trabalhadora estadunidense, pois somos um país com 330 milhões de habitantes. E ainda que eu acredite que devamos ser ambiciosos, precisamos rejeitar essas velhas arrogâncias de uma certa esquerda tradicional.
Nossa missão é participar de coalizões com correntes muito mais amplas. Vejo o papel do socialismo como formador de uma rede com capacidade de intervir em diferentes movimentos – particularmente no movimento de trabalhadores – para elevar os níveis de consciência de classe e radicalizar suas lutas; mas não necessariamente que o socialismo seja o movimento. E essa consideração não é tanto uma declaração política, um medo do centralismo democrático ou dos movimentos de vanguarda, mas uma questão prática. Estamos em um momento histórico de fragilidade da esquerda. Não deveríamos superdimensionar ou inflar as coisas positivas que estão ocorrendo. É uma armadilha clássica da esquerda dizer: «Temos 50.000 membros hoje e ontem tínhamos 5.000. Assim, amanhã teremos milhões e nos tornaremos um partido de massas». Não vejo que isso esteja acontecendo.
Poderia comentar um pouco mais sobre a história do dsa?
O dsa tem suas raízes em uma organização chamada Comitê Organizador dos Socialistas Democráticos [dsoc, na sigla em inglês], fundado a partir de uma divisão do que foi o Partido Socialista dos eua [spa]. O spa sofreu um enorme declínio após sua época dourada e tornou-se um simulacro de si mesmo no início dos anos 1970. Em seus últimos dias, naquela mesma década, o spa havia se dividido em um setor de esquerda, um de centro e outro de direita. A esquerda ainda se agarrava à insistência de Debs na absoluta independência política da classe trabalhadora e estava muito focada em competir eleitoralmente como socialistas independentes, sem vínculos com o Partido Democrata. A ala de direita havia se tornado indistinguível do liberalismo da Guerra Fria: anticomunistas ferozes, também haviam revisado suas posturas sobre a burocracia sindical e efetivamente abraçaram a central burocratizada – a Federação Americana do Trabalho e Congresso de Organizações Industriais [afl-cio, na sigla em inglês] – como uma possível vanguarda de um novo movimento reformista nos eua. Esse era o sonho, por exemplo, do ativista Bayard Rustin, que queria conectar uma parte do movimento trabalhador com a corrente mais mainstream do movimento por direitos civis e transformar essa confluência em uma força social-democrata. Rustin combinou seu apoio à Guerra do Vietnã e sua adesão ao anticomunismo com um desejo de não separar a esquerda da base social trabalhadora para armar uma futura força social-democrata.
No centro, estavam Michael Harrington e seu pessoal. Harrington, uma espécie de sucessor de Norman Thomas3, era o socialista de maior destaque nos eua. Ele tinha escrito alguns anos antes The Other America [A outra América], um best-seller sobre a pobreza que inspirou o programa de bem-estar social de Lyndon B. Johnson, a chamada «War on Poverty» [Guerra contra a pobreza]. A postura de Harrington era buscar um ponto intermediário: não ceder às tendências de direita do partido, opondo-se à Guerra do Vietnã – de forma mais tímida do que gostaríamos – mas, ao mesmo tempo, confiando que o Partido Democrata poderia se realinhar e virar uma força próxima aos partidos social-democratas europeus. Cabe lembrar que, nesses anos, a social-democracia europeia ainda tinha fortes tendências de esquerda, e parecia possível uma transição da democracia social para o socialismo democrático.
Depois, nos anos 1980, o dsoc se fundiu com o New American Movement [Novo Movimento Americano], um movimento mais ativista que se desprendeu da Nova Esquerda e estava um pouco mais orientado à militância sindical. O dsa surgiu dessa fusão.
Harrington convocou uma nova coalizão da esquerda trabalhadora com os democratas progressistas, e alguns deles – como David Dinkins, o primeiro prefeito negro de Nova York – eram membros do dsa. Um democrata como Ted Kennedy proferiu um discurso no funeral de Harrington em 1989. Ou seja, o dsa propôs um jogo político: manter um pé dentro e outro fora do Partido Democrata, com a ideia de que a organização pudesse se tornar a «esquerda do possível». Após a morte de Harrington, a organização rumou ainda mais para a direita e se tornou algo irrelevante. Quando me incorporei em 2007, o dsa estava basicamente morto, com menos de 5.000 membros. Insatisfeitos com a organização, os integrantes jovens como eu brincávamos que havíamos nos tornado a «direita do impossível». O conflito naquele momento se centrou nas tensões entre os jovens, uma geração situada mais à esquerda e que era crítica à aproximação do dsa ao Partido Democrata, e os contemporâneos a Harrington, que tratavam de manter viva a organização.
No final de 2010, surgiu a revista Jacobin. Embora ela fosse independente, muitos dos que participavam do projeto eram próximos ao dsa. E integrantes de Jacobin que também eram membros do dsa, como Amber Frost e Elizabeth Bruenig, começaram a ganhar destaque. Jacobin começou a crescer com o movimento Occupy Wall Street em 2011. Mas, assim como o dsa, nosso verdadeiro crescimento ocorreu durante a campanha de Sanders de 2015-2016, quando a organização passou de 6.000 para mais de 12.000 membros. Em geral, entravam jovens com uma forte presença nas redes sociais. Como muitos deles trabalhavam nos meios de comunicação ou em outros campos, tinham muita visibilidade. Mas a verdadeira explosão da organização em termos de associação ocorreu com a eleição de Trump, quando seu número de membros superou os 30.000. Muito do que ocorreu foi por acaso: começamos a receber uma cobertura favorável na mídia, e as pessoas passaram a pesquisar «democratic socialism» [socialismo democrático] na internet.
Quando se alcança um determinado tamanho e são mantidas reuniões por todo o país, às vezes com centenas de participantes, isso passa a ter seu próprio efeito de recrutamento: um amigo ou uma amiga pergunta o que você vai fazer mais tarde, e você responde: «Vou a uma reunião política. Venha comigo se quiser». Assim, o crescimento se tornou mais orgânico, mas é realmente interessante ver como esse crescimento foi aleatório, impulsionado em grande parte pela internet.
Pode-se dizer o mesmo sobre o fenômeno Sanders. Sempre quando quero explicar a meus amigos trotskistas e de outros países que estão tentando compreender isso em um contexto internacional, eu lhes digo: há um certo grau de sorte e casualidade. Não é possível entender a campanha de Sanders como uma campanha eleitoral tradicional de esquerda, como se houvesse um movimento social de esquerda do que Sanders fosse o reflexo eleitoral. Isso teria sentido em outros momentos do século xx, quando era possível dizer que o peso dos partidos social-democratas nos parlamentos era um reflexo do peso do movimento dos trabalhadores. Mas a situação de hoje parece ser oposta. Sanders surge de um vazio e está, de fato, gerando militância, não cooptando ou refletindo forças extraparlamentares. O mesmo ocorre com o dsa, que, através da internet e com uma cobertura midiática favorável, está alcançando muitas pessoas de orientação liberal que acabam indo para a organização. Não me lembro de um antecedente de algo semelhante em outro país.
Seria possível dizer do Podemos que muitos de seus fundadores estavam vinculados previamente a grupos tradicionais de esquerda e, depois, tentaram conscientemente abandonar a linguagem da esquerda mais tradicional para adotar uma retórica mais populista. A ironia nos eua é que estamos fazendo o contrário do Podemos: estamos recrutando vários liberais desiludidos que falam uma linguagem política mais familiar à maioria dos estadunidenses e transformando esses liberais em socialistas. De repente, esses liberais estão participando de debates esotéricos sobre o contraste entre as ideias de Nicos Poulantzas e de Ralph Miliband.
Obviamente, é ótimo que mais pessoas direcionem sua atenção a ideias mais radicais, considerando o quanto são radicais os problemas enfrentados pelo mundo hoje. Mas às vezes vejo pessoas que adotam uma retórica alienante, e cabe lembrar que são muitas vezes as mesmas que apoiavam Hillary Clinton em 2016.
De qualquer forma, não posso explicar completamente o auge do socialismo e do dsa. Mas a maciça presença cultural dos eua – ou o imperialismo cultural – faz com que tudo que façamos aqui seja amplificado.
Alguns elementos que você comenta – a contingência e o papel dos meios de comunicação na construção política – fazem me lembrar de um livro de Paolo Gerbaudo publicado recentemente em inglês: The Digital Party4. Nele, o autor analisa partidos novos como o Podemos e figuras como Sanders, destacando a natureza paradoxal dessa nova esquerda hipermidiática: por um lado, o peso da imagem favorece a criação de um culto à personalidade – me vem à cabeça também Alexandria Ocasio-Cortez – e também formas de organização extremamente verticais. Mas, por outro, incentiva uma forma de compromisso militante muito descentralizada, com maneiras difusas de associação. Vocês lidam com essas questões ao tentarem formar uma organização de massa e democrática?
O dsa é radicalmente democrático, talvez a organização mais democrática que haja na esquerda hoje, quase excessivamente. Sanders é um político cuja campanha temos a possibilidade de moldar e influenciar: se não gostamos de alguma política que ele propõe – um copagamento no Medicare, por exemplo –, podemos mandar uma mensagem pelos canais internos e por uma petição externa. Acredito que podemos dar forma à sua campanha, mas não resta dúvida de que somos ao mesmo tempo impulsionados pela energia do que ele está gerando. Obviamente, uma força minoritária pode fazer a diferença. Se olharmos a luta dos sindicatos de professores dos eua, a onda de greves foi impressionante, mas, atrás deles, há alguns milhares de pessoas que estimulam a atividade política por todo o país. Creio que essa é a natureza da política. O fundamental é que seu programa seja aceito amplamente e que você conte com meios democráticos para promover a ação política, refletindo suas decisões e também disciplinando os políticos eleitos (neste momento, para além do experimento em Chicago, não há votações em bloco realmente disciplinadas por parte dos socialistas5).
O que quero dizer é que vamos acabar necessitando de um partido à esquerda do liberalismo. Nessa questão, pelo menos no contexto europeu, sou muito tradicional, no sentido de conservar algumas velhas coisas que já deram certo. Por exemplo, creio que o Podemos é um partido incrivelmente pouco democrático. Considerando o que está ocorrendo na França e em outros lugares com o chamado retorno do populismo, gosto de uma parte da retórica populista, mas gostaria ainda mais se fosse só isso: retórica; que por trás dos líderes carismáticos ainda haja um processo de construção de partido em um sentido mais tradicional. Sou mais permissivo com as tendências populistas aqui nos eua porque acredito que ainda estejamos em uma situação «pré-partidária». É preciso entender isso: a situação política estadunidense é tal que sequer contamos com verdadeiros partidos políticos, isto é, não temos partidos sustentados por afiliados.
Eu me registrei no Partido Democrata quando tinha 18 anos e passei os 11 anos seguintes criticando-o sem parar. Não me expulsaram porque, segundo a própria lógica institucional dos partidos, não podem legalmente me expulsar. É uma situação estranha e nos dá espaço, por ora, para organizar os socialistas em torno das primárias, embora acabemos precisando romper definitivamente com os democratas em algum momento.
Você mencionou a ideia de converter os liberais ao socialismo. Creio que grande parte da aposta de Jacobin seja justamente essa: polemizar, de boa-fé, com uma tradição alheia – o liberalismo – para destruir algumas vacas sagradas dessa mesma ideologia, como a livre concorrência, o individualismo empreendedor e a autossuficiência, e certas versões da política da identidade.
A ideia sempre foi dividir o liberalismo em diferentes setores, pois vivemos em um país onde a linguagem do socialismo está em grande parte ausente. Então, quando falamos de liberalismo, não estamos interessados naquelas pessoas que tiveram plena consciência de uma política de esquerda e a rejeitaram optando por outra posição; estamos interessados nas pessoas às quais jamais foi apresentada uma alternativa. Desse segundo grupo, muitos se chamavam há pouco tempo liberais e votavam nos democratas; muitos dos liberais de nosso país são na realidade social-democratas que não contam com uma linguagem para se reconhecerem dessa forma. De minha parte, eu poderia dar ênfase naqueles setores despolitizados que raramente votaram e, quando o fazem, votam nos democratas. Esse grupo nem mesmo se identifica com algo que poderia ser chamado de uma ideologia liberal.
Essa distinção é importante no contexto dos eua. Na esquerda, precisamos avançar com muita humildade e paciência quando apresentamos nossa visão política. Não temos uma história de êxitos a que possamos recorrer. Não há nenhum motivo para que alguém se identifique como socialista neste país: ninguém está em um sindicato com uma tradição socialista, muito poucos tiveram um familiar que militasse em um partido socialista ou um avô que fosse perseguido em virtude de sua filiação socialista. A situação é diferente da existente em outros países. Sim, acreditamos que há uma necessidade moral por trás do movimento socialista, mas isso está muito distante de ser uma necessidade prática na vida cotidiana das pessoas. Novamente, é por isso que precisamos ter paciência e humildade.
Eu gostaria de mudar de assunto e passar a tratar de Trump. Um dos argumentos predominantes é que sua vitória eleitoral reflete um movimento da classe trabalhadora estadunidense rumo à direita, especificamente da classe trabalhadora branca. Como você responde a esse discurso? E, para além de sua veracidade, como a esquerda deveria responder à ameaça do populismo de direita?
A primeira forma de responder a isso é considerando o aspecto empírico: a base política de Trump é muito parecida com a base do populismo de direita e a dos partidos de direita do mundo todo. Não são os funcionários do McDonald’s nem necessariamente os banqueiros e ceos. É mais provável que o eleitor de Trump seja o gerente regional. É importante considerar que os eua são um país grande, com muitos eleitores. É fácil encontrar milhões de membros da classe trabalhadora que votaram em Trump. Ele conseguiu convencer com sua campanha uma porção suficiente da classe trabalhadora para virar o resultado eleitoral, em uma vitória apertada que dependia dos resultados de poucos estados do país. Mas a maior parte da classe trabalhadora votou em Hillary Clinton ou ficou em casa no dia das eleições. É muito importante não superdimensionar o componente trabalhador de Trump. A agenda de Trump é antipopular. Ele conta com uma base estável de aproximadamente 40% do país, o que é pouco.
Isso não significa que o surgimento de Trump não tenha seu lado assustador. Mas não acredito que possamos construir política somente reagindo contra a direita. Creio que há muita histeria com relação ao incipiente movimento fascista nos eua. O que vejo é um crescimento do populismo de direita que ocorre periodicamente ao longo da história do país, e temos agora novamente a tarefa histórica de derrotar esse populismo. Os liberais se equivocam ao ver esses movimentos populistas de direita como inorgânicos e superdimensionar sua novidade histórica.
Em que sentido eles seriam inorgânicos?
Os liberais sempre foram muito hostis com relação a qualquer tipo de militância da direita. Eles entendem essa atividade como paranoica, como se fosse a expressão de uma doença mental. Segundo eles, qualquer pessoa que questione as instituições republicanas deve sofrer de uma doença mental. E os liberais também estendem essa leitura «patologizante» a nós que estamos à esquerda. Creio que o Partido Democrata é exageradamente reativo, exageradamente anti-Trump, exageradamente concentrado na personalidade dele. Isso pode produzir uma situação na qual Trump perca nas próximas eleições, mas sem que o trumpismo tenha sido adequadamente vencido. Tem-se centrado muito no modo de se expressar de Trump, um enfoque que reflete a rejeição que ele gera entre a classe média profissional.
Minha própria experiência na mídia me coloca em contato constante com pessoas que compartilham de uma aversão moral a Trump, que rejeitam sua personalidade, seu evidente racismo e sexismo. Mas, para mim, é totalmente insuficiente permanecer nesse plano. Acredito que nós da esquerda devemos dizer aos eleitores: «Isso nos preocupa, entendemos seus medos e dores, e também temos algumas ideias para melhorar sua vida». Seguindo esse caminho, não conquistaremos a maior parte da base de Trump, pois a maioria dos que o apoiam não está motivada por dificuldades econômicas; mas nossa plataforma poderia conseguir reduzir seu apoio.
Acredito que a base para um futuro movimento de massas socialista democrático será formada por aqueles que votaram em Hillary Clinton e os que se sentem totalmente alienados da política. Haverá também uma pequena parte das pessoas que votaram em Trump. Mas será mais difícil atuar junto a esse último grupo, ou até mesmo alguns setores mais de centro, se simplesmente aceitarmos que 40% dos eleitores, ou uma ampla parcela da população, sofre de um transtorno psicológico. Essa me parece uma maneira muito equivocada de fazer política, além de ser uma análise incorreta.
Se analisarmos algumas das figuras de maior destaque dos últimos anos – penso em Ocasio-Cortez, proveniente do dsa, ou até mesmo em uma democrata de esquerda como Ilhan Omar –, parece que os pilares do consenso liberal do país estão sendo duramente questionados: Omar questiona a política internacional dos eua em cada um de seus discursos, e Ocasio-Cortez está convocando um Green New Deal [Novo Acordo Verde] que não só significaria uma refundação do Estado, mas também questiona o domínio irrestrito do capital sobre a sociedade estadunidense. Você tem esperanças de um possível realinhamento do consenso liberal mais à esquerda?
Sim. E para ser honesto, essa sempre foi nossa estratégia. Se houve uma estratégia compartilhada pelo movimento progressista e pelos socialistas democráticos, foi essa: dividir o que parece ser uma sólida coalizão do Partido Democrata. Não acreditamos que todos os eleitores do Partido Democrata realmente apoiem o liberalismo centrista de Clinton. Eles votaram nisso simplesmente porque era a melhor alternativa e sabem como a direita estadunidense é ruim e o quanto o Partido Republicano se posiciona à direita.
Assim, buscamos distinguir entre os membros do Partido Democrata que apoiam o Estado de bem-estar e o restante do Partido Democrata e sua direção. Acredito que essa divisão é algo que está encarnado e personificado em figuras do dsa como Ocasio-Cortez, Rashida Tlaib e Ilhan Omar, entre outras. Por trás da vitória eleitoral dessas figuras, há uma organização chamada Justice Democrats [Democratas pela Justiça], um grupo que, sem ter as mesmas motivações socialistas, emprega as mesmas táticas usadas antes pelo dsa: trabalhar dentro do Partido Democrata com uma força insurgente. Hoje em dia, a militância do dsa se concentra em outros lugares, fora do Partido Democrata, no ativismo de base.
É emocionante ver como essas divisões próprias do partido se personificaram. Creio que aprendemos uma grande lição: identificamos nossa base e provocamos a ação. Ocasio-Cortez não teria sido eleita sem a iniciativa de grupos como o Justice Democrats e o dsa. Agora, ela individualmente está radicalizando essas divisões e polarizando o debate em um sentido que favorece a esquerda.
O que estamos fazendo exatamente nos eua com esse novo tipo de político, com todos esses novos socialistas e com a campanha de Sanders? Quanto a isso, devo confessar que ainda não tenho elaborado um marco teórico, ainda que esteja tratando de desenvolvê-lo. Venho de uma formação marxista ortodoxa. Mas há uma observação muito útil no plano teórico: Sanders e o movimento à sua volta representam uma democracia social fundamentada na luta de classes diferente dos antigos modelos da social-democracia. Enquanto no período do pós-guerra a social-democracia buscava canalizar a militância sindical e o movimento dos trabalhadores, tentando transformá-los em poder eleitoral e em um pacto de governabilidade baseado no equilíbrio de classes, Sanders e Jeremy Corbyn são hoje forças insurgentes.
Em teoria, são movimentos moderados. Mas a forma como buscam conquistar o poder implica um processo de luta e polarização. Quando Sanders fala dos «milionários e bilionários», ele está invocando a figura do conflito social como a única maneira de o povo trabalhador conquistar o que merece. Nesse sentido, é importante esquecer essa ideia de que «Sanders é um mero social-democrata» porque, ainda que suas ideias não sejam revolucionárias, ele é um insurgente.
É preciso dar impulso a esse processo social-democrata aberto a partir da lógica da luta de classes para primeiro conquistar um sistema pleno de bem-estar e depois, sem desmobilizar, radicalizar o mesmo processo em direção ao socialismo. Na realidade, tenho hoje menos certeza que antes sobre os passos a seguir, mas, ao mesmo tempo, tenho mais confiança de que a história nos acompanha de alguma forma. Tenho mais certeza quanto à necessidade moral do socialismo democrático, mas ainda mais de que as pessoas tomarão consciência de que a democracia e a política oferecem soluções para seus problemas, e que elas não serão seduzidas pela política de exclusão, ódio e barbárie oferecida pela direita.
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1.
B. Sunkara: The Socialist Manifesto: The Case for Radical Politics in an Era of Extreme Inequality, Basic Books, Nova York, 2019.
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2.
Werner Sombart: ¿Por qué no hay socialismo en los Estados Unidos? [1906], Capitán Swing, Madri, 2009.
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3.
Ministro presbiteriano estadunidense. Foi pacifista e candidato presidencial pelo spa em seis ocasiões.
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4.
P. Gerbaudo: The Digital Party: Political Organisation and Online Democracy, Pluto Press, Londres, 2018.
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5.
Will Bloom: «Una ola socialista en Chicago» em Nueva Sociedad, edição digital, 4/2019, www.nuso.org.