Tema central
NUSO Nº Novembro 2015

O antimodelo brasileiro Proibicionismo, encarceramento e seletividade penal frente ao tráfico de drogas

O antimodelo brasileiro  Proibicionismo, encarceramento e seletividade penal frente ao tráfico de drogas

Nota: Tradução de Luiz Barucke. Uma versão deste artigo em espanhol foi publicada em Nueva Sociedad No 255, 1-2/2015, disponível em www.nuso.org.

Sobre drogas e seus mercados ilícitos

As drogas de uso ilícito são «mercadorias que circulam em mercados ilegais, que são consumidas pelos indivíduos para alterar seu estado de consciência». No entanto, como afirmam David J. Nutt et al., não tem havido qualquer avaliação científica e baseada em evidências sobre os riscos concretos nessa distinção entre drogas legais e ilegais1. Contudo, por serem mercadorias ilegais, o seu usuário não é um consumidor qualquer, mas sim um indivíduo mergulhado na ilegalidade, pelo caráter singular da economia ilícita de interação entre oferta e demanda, em decorrência da intervenção pública que interdita e reprime o consumo e o comércio da substância que ele faz uso2.

Dentre as características específicas da circulação de uma mercadoria em um mercado ilícito, devem ser avaliadas: a produção, o tráfico internacional e a distribuição final; a variação do preço da droga, de acordo com a oferta e a procura; a demanda e sua relação com os preços, regulados pela oferta, a disponibilidade e o consumo e, finalmente, a interferência da proibição no mercado.

O valor da substância é elevado diante das dificuldades impostas pela lei para sua comercialização3, e o mercado ilícito não prevê nenhum tipo de controle sobre a qualidade das substâncias consumidas. Isso aumenta mais os lucros, além de reforçar os riscos dos usuários pela má qualidade do produto vendido. As estimativas indicam que a produção mundial de drogas ilícitas é muito superior ao consumo4, embora, por se tratar de um mercado criminal ilícito e não registrado, os dados sejam pouco confiáveis5.

Se considerarmos que o modelo de controle penal de drogas existe há mais de cem anos6, desde sua origem preconizando a repressão a todas as atividades que envolvem o circuito produtivo, verifica-se que a proibição nem conseguiu impedir que as pessoas continuassem a consumir tais substâncias proscritas. Tampouco conseguiu reduzir sua disponibilidade no mercado, sendo certo que o grande consumo de droga no mundo todo não se inibe pela proibição, nem muito menos pela ameaça de encarceramento.

Assim, por uma opção político-econômica decidiu-se manter esse grande e lucrativo mercado na ilicitude, o que significa não reconhecer oficialmente a existência dessa indústria bilionária, que atua livre de impostos. A pretexto de proteger a saúde pública, insiste-se na proibição como a melhor forma de lidar com a questão, mesmo sem resultados positivos.

Sob a perspectiva econômica, o regime de proibição das drogas mergulha os agentes no mundo das transações ilegais e cria formas de organizações particulares7, tanto usuários como comerciantes, e faz com que o mercado de drogas tenha características específicas. Por exemplo, priva os agentes das transações ilegais dos meios oficiais de resolução de conflitos, como o Judiciário. A ausência de lei e de regras escritas nas transações envolvendo mercados ilícitos expõe as intervenções a transações de custo muito alto, que incluem a corrupção dos agentes públicos8.

De fato, a resolução de conflitos no comércio de drogas é uma das causas do incremento da corrupção e da utilização da violência armada, podendo ser citados dois exemplos: as favelas do Rio de Janeiro, controladas por traficantes bem armados, onde a polícia tem de fato uma autorização para matar pessoas identificadas como traficantes9; e as do México, onde a proximidade com o grande mercado consumidor dos Estados Unidos torna o mercado ilícito muito mais lucrativo e as disputas pelos cartéis e a corrupção das autoridades são circunstâncias geradoras de uma violência absurda. Triste exemplo disso foi o desaparecimento de 43 jovens estudantes em Ayotzinapa, em setembro de 2014. Para manter seu negócio e garantir a circulação de seu produto, o mercado ilícito da droga utiliza violência e, para garantir sua atuação e lucratividade, ainda conta com proteção, apoio ou adesão de autoridades. Isso porque não há comércio ilícito que se sustente sem alguma participação de funcionários do Estado.

Assim, com o foco na repressão, que recebe altos investimentos, deixa-se de lado a prevenção. Estima-se que apenas uma de cada seis pessoas com problema de dependência tenha tido acesso a programas de tratamento, segundo dados da Organização das Nações Unidas (onu) de 201410. No passado, foi preciso que uma panepidemia de aids assolasse o planeta para que se começasse a pensar mais seriamente em prevenção e redução de danos. Ainda assim, pouco foi feito nessa linha. Além disso, o aumento da repressão ao tráfico de drogas desde a década de 1990 é acompanhado de uma queda da detenção média no caso de outros crimes não ligados à droga para se concentrar na repressão ao tráfico11.O fato é que, como consequência da ideologia da «guerra às drogas», verificou-se uma «epidemia» de encarceramento em todo o mundo, o que levou recentemente países como os eua a adotarem medidas de redução de penas, diante do absurdo crescimento do número de presos em seus sistemas penitenciários, em grande parte decorrente da repressiva política de drogas adotada.

Como parece óbvio, o controle penal não inibe o consumo nem a produção porque não tem condições de impedir o funcionamento de um potente mercado ilícito que fabrica, fornece e distribui com eficiência e lucratividade seu produto. Nem tem o efeito de fazer com que as pessoas deixem de consumir. Os resultados da repressão penal e da estratégia de combate militar às drogas não alcançaram a redução da produção ou do consumo de drogas. O negócio se desenvolveu, os grupos se organizaram, o mercado ilícito incrementou as vendas e os preços baixaram, junto com o aumento do consumo.

No entanto, por mais que se reconheça uma certa organização nesse mercado, o tráfico de drogas é bem menos organizado do que se imagina. Considera Kopp que o comércio de drogas estaria mais próximo de um tipo de oligopólio pouco cartelizado. Contrariamente ao discurso midiático, «a criminalidade funciona como um oligopólio com um certo viés de concorrência, e não como um monopólio». Seus agentes «agrupam-se em organizações que diferem de empresas clássicas e reagem às mudanças de seu meio segundo modalidades (...) surpreendentes»12. Para o autor, as redes constituem a forma de organização do tráfico e atuam da seguinte forma: freiam a circulação de informações e fracionam a cadeia de produção, composta por intermediários de alta mobilidade, e seus procedimentos são reorganizados e redefinidos permanentemente, ou seja, a especialização é acompanhada por grande instabilidade, método eficaz de conduzir negócios ilegais.

Assim, a capacidade de criar novos mercados e a agilidade de seus operadores são o que leva ao aumento da oferta; as redes do tráfico não são idênticas e se mostram eficientes pois conseguem se adaptar às necessidades locais. Portanto, não é possível generalizar suas características. Ao mesmo tempo, seja pela corrupção de policiais e autoridades ou mesmo pela infiltração de interesses econômicos nas mais altas esferas de poder, há uma promiscuidade entre os chamados «traficantes» de drogas e o Estado, sem o qual o mercado de drogas ilícitas não permaneceria imune às ações dessas mesmas autoridades.

Ao contrário do modelo proibicionista uniforme que tenta controlá-lo, o tráfico é adaptado à economia e à diversidade locais. Contudo, no campo jurídico, a estratégia tem sido a generalização das condutas e a imposição de altas penas, de forma a ampliar o alcance da punição, quase sem nenhuma distinção. Prosseguindo nessa análise, há que se destacar a peculiar situação brasileira, pela dimensão diferenciada do fenômeno da droga e do controle social nos países em desenvolvimento13, bem como pela insistência na opção punitiva na política de drogas.

A economia da droga e as redes de tráfico no Brasil

Em termos socioeconômicos, deve-se destacar que «o Brasil é hoje uma economia de mercado onde os controles morais são fracos, a ética não se enraizou no comportamento cotidiano, especialmente dos políticos e empresários, e onde a lei não é vista pela população como justa e equânime»14. Trata-se de um país em que a informalidade e os mercados ilícitos, incluindo a sonegação fiscal e a corrupção, são muito significativos, o que reforça essa cultura da ilegalidade, na qual o tráfico de drogas está inserido.

O Brasil não figura como grande produtor de drogas na geopolítica internacional, mas deixou de ser um país de trânsito para se tornar um grande país consumidor de drogas ilícitas, seguindo fielmente a cartilha proibicionista da repressão. Mais recentemente, verificou-se no Brasil um grande aumento do consumo do crack (pasta base), notadamente pela população marginalizada que vive nas ruas, em razão de sua alta potência e do seu baixo preço15.

Em relação à oferta, não há como negar que o mercado brasileiro da droga está plenamente operante, ainda que as autoridades vez por outra consigam apreender parte da carga circulante. Nos grandes centros urbanos, o negócio mais lucrativo é a distribuição de drogas aos consumidores, atividade que absorve grande parte dos excluídos do sistema econômico, ou seja, de trabalhadores informais à margem da atividade lícita. Para exemplificar, analisaremos a situação da cidade do Rio de Janeiro.

Os jovens pertencentes às classes baixas moradores de favela são hoje a mão-de-obra mais utilizada pelo tráfico do Rio para fazer chegar ao consumidor a mercadoria e, como veremos depois, são eles que estão lotando as penitenciárias. O salário pago aos «soldados do tráfico», que exercem funções desde «soltadores de foguetes»16 a gerentes da «boca», passando pelos «aviões», são os mais altos do mercado para quem não tem estudo ou profissão, apesar dos riscos inerentes à atividade ilícita, e da violência17. Para Túlio Kahn, no tráfico de drogas a situação está ligada ao desemprego estrutural, ou seja, de uma massa de excluídos, em sua maioria jovens, que constituem um «contingente de reserva que jamais entrou ou entrará no mercado de trabalho, o que tenderá a acentuar a relação entre desemprego e criminalidade»18.

Desta forma, a atividade econômica ligada ao tráfico de drogas se alimenta da pobreza e da exclusão social, pois dá oportunidades de renda. E inclusive se fortaleceu bastante nos últimos anos com a venda do crack, ao oferecer um produto de baixo preço e grande potência àqueles que não tinham condições de consumir substâncias psicoativas de maior pureza (por seu maior custo).

Na análise dos lucros dos traficantes de droga no Brasil, há que se diferenciar entre os diversos setores do tráfico, pois, obviamente, quanto mais alta a posição, maiores os lucros. O fato é que as redes se organizam de acordo com o meio onde atuam, e reagem de forma flexível às mudanças19. Aponta Mingardi para a existência, no Rio de Janeiro, de um modelo organizacional em grande escala como ponto mais marcante do tráfico carioca20, ou seja, de um mercado verticalizado de vendas de droga.O mercado do Rio é fragmentado e violento21. A reduzida idade dos traficantes22 e as disputas sangrentas pelos «territórios comerciais», além da instável organização interna das facções, sem acordos de divisão do mercado, somadas à repressiva e corrupta intervenção policial, são fatores que contribuíram para o aumento da violência decorrente do tráfico de drogas na cidade nas últimas décadas. Há uso excessivo da força pela polícia carioca e alto índice de letalidade das ações repressivas23.

Mesmo que o exemplo do Rio não configure um modelo único de tráfico de drogas no Brasil, a situação da cidade é emblemática pela maior visibilidade do problema. Diferentemente de outros locais, onde as áreas mais pobres se concentram em periferias afastadas do centro, a localização da concentração urbana desfavorecida carioca reforça o contraste entre exclusão social e a riqueza.

Os moradores das favelas vivem em áreas de risco e sofrem com os confrontos entre policiais e traficantes. Nesse aspecto, o movimento (termo que designa no Rio o mercado informal ilegal de drogas – principalmente maconha e cocaína – que se espalha, no varejo, nas aglomerações urbanas de baixa renda (favelas, conjuntos habitacionais de baixa renda e bairros da periferia24) é facilitado pela localização estratégica nos morros, que, por constituírem um espaço social onde o Estado não chega, de urbanização precária e sem assistência social, abrigam as redes de distribuição e a moradia dos traficantes do varejo, protegidos da ação policial. Além disso, ficam próximos das zonas de consumo, onde vivem os usuários de poder aquisitivo mais alto. Outro incentivo é a ampla disponibilidade de recrutamento da mão-de-obra de jovens excluídos do mercado de trabalho formal, feito na própria favela.

Por outro lado, é importante desmitificar a relação entre pobreza e criminalidade, pois tal consideração, além de preconceituosa, não corresponde à realidade. Apenas uma pequena minoria dos pobres comete crimes, apesar de sua alta representatividade nas estatísticas penitenciárias25.

Na rede de tráfico, no limite entre a simples quadrilha e uma forma mais organizada de crime, atuariam os pequenos traficantes, varejistas, que trabalham com quantidades inferiores a 10 quilos, que podem ser autônomos ou gerentes de «boca». Eles muitas vezes têm antecedentes criminais por tráfico ou crimes contra o patrimônio. Já os médios traficantes trabalham tanto no atacado como no varejo, conseguindo lidar com até 250 quilos, e normalmente compram diretamente dos traficantes internacionais. Pouco se sabe sobre os grandes traficantes, a não ser que a maioria deles se dedica ao tráfico internacional, na qualidade de atacadistas26.

Nesse sentido, o mercado ilícito da droga fortalece o tráfico, e os traficantes só aumentam seus lucros, beneficiados por vários fatores decorrentes dessa ilegalidade: ausência de controle sobre a mercadoria, inexistência de burocracia, «isenção» de impostos e facilidade de contratação de funcionários, que são submetidos a condições arriscadas de trabalho, mas são mais bem pagos do que no mercado de trabalho formal.

Além desses efeitos já apontados, Luiz Eduardo Soares ainda acrescenta outras dinâmicas criminais perversas, que devem ser consideradas no estudo do modelo proibicionista, a saber: a desorganização da vida associativa e política das comunidades, e das estruturas familiares; a imposição de um regime despótico às favelas e bairros populares; o recrutamento de força de trabalho infantil e adolescente, depois descartados pela morte prematura; a disseminação de valores belicistas contrários ao universalismo democrático; e o estímulo à estigmatização da pobreza e dos pobres27.

Desta forma, percebe-se a estreita ligação entre a situação socioeconômica do Brasil e a criação de condições favoráveis à manutenção dos mercados ilícitos. O círculo vicioso se fecha: consumidores compram drogas, traficantes vendem, os excluídos do sistema se empregam na indústria ilícita com salários melhores; traficantes precisam comprar armas, o comércio ilegal quer vender armas; os lucros dos tráficos (de drogas e de armas) são exorbitantes; as altas esferas do poder têm sua representação na indústria, e absorvem parte do lucro; o dinheiro sujo circula e precisa ser lavado; as instituições financeiras lavam o dinheiro; a indústria do controle do crime quer vender segurança, a população aterrorizada quer comprar segurança; a «guerra às drogas» é cara, mas os lucros são enormes.Todos lucram de alguma forma com a criminalização desse mercado, menos a saúde pública, que sai ainda mais prejudicada, não por mortes decorrentes de overdose de drogas, aparente justificativa da punição, mas sim pela violência e pelas mortes que envolvem o exercício da atividade ilegal do tráfico de drogas.

A partir dessa realidade, veremos a seguir como se estrutura a repressão penal sobre esse mercado no Brasil.

Controle penal sobre as drogas ilícitas no Brasil

O Brasil sempre seguiu todas as estratégias punitivas estabelecidas nos tratados internacionais de controle de drogas, sendo signatário de todos eles28. Nesse sentido, a cultura repressiva do país incorporou facilmente os compromissos punitivos pela criminalização das drogas liderados pelos eua. A norma atualmente em vigor, Lei 11.343/06, representa na sua parte penal a reafirmação da opção legislativa pela intensificação da repressão penal em relação ao tráfico, embora tenha de certa forma avançado em relação à lei anterior, ao despenalizar a conduta da posse de drogas para uso pessoal em seu artigo 28, crime que hoje está sujeito apenas a medidas alternativas. Por outro lado, houve um significativo aumento da pena mínima para o delito de tráfico, que passou de tres para cinco anos, segundo o artigo 33, sem que a lei previsse critérios objetivos de distinção entre tais categorias.

Por tal razão, a lei de 2006 marca o reforço do endurecimento intencional da resposta penal ao comércio de drogas, o que constitui um dos principais fatores do aumento da população carcerária brasileira nos últimos anos. O contingente de presos por tráfico é o que mais cresce. Segundo dados oficiais de 2013, alcançariam cerca de 30% do total29. A maioria dos presos são jovens, pobres, negros ou mulatos. Sessenta por cento das mulheres presas no Brasil são acusados do crime de tráfico30.

Diante do quadro traçado da realidade do tráfico no Brasil, como atua a repressão? Poderia-se pensar que esse aumento da punição teria se refletido na desarticulação das redes criminosas pela prisão de grandes traficantes. Na prática, porém, o que se verifica é um reforço da seletividade penal, com intensificação da criminalização da pobreza.

A partir do estudo de caso do Rio de Janeiro, sabe-se que o perfil dos condenados por tráfico de drogas é de primários (66,4%), ou seja, sem envolvimento anterior com a Justiça: presos em flagrante (91,9%) e sozinhos (60,8%), sendo que 65,4% respondem somente por tráfico (artigo 33, sem associação ou quadrilha), e 15,8% em concurso com associação. Destes, 14,1% foram condenados em concurso com posse de arma, sendo 83,9% do sexo masculino, e 71,1% dos casos foram presos com cocaína. Destes, 36,9% receberam penas acima de cinco anos de prisão31. Perfil semelhante foi encontrado nas condenações por tráfico em Brasília. Pesquisas recentes realizadas em São Paulo identificaram o mesmo destinatário das condenações judiciais por tráfico de drogas.

Outra característica da aplicação da pena por tráfico no Rio é a ausência de controle judicial efetivo sobre a tipificação, pois é a polícia, no momento da prisão em flagrante, que define quem é traficante. São raros os casos em que há desclassificação para o delito de posse de drogas. Ou seja, tanto o Ministério Público como os juízes chancelam a atuação policial, embora, pelas características encontradas nos processos, possamos afirmar que muitos dos condenados como traficantes devem ser, na realidade, usuários pobres moradores de favelas confundidos como traficantes. Foi o caso de um preso entrevistado que era usuário e ficou mais de quatro anos preso, acusado de tráfico por portar cerca de 26 gramas de maconha, mas que acabou absolvido32. Nesse sentido, o sistema penal, que já é seletivo em geral, mostra-se ainda mais seletivo no caso do tráfico. Destaque-se que, mesmo nos países centrais, é sempre mais fácil para os agentes da lei capturar os revendedores das ruas, varejistas, mais numerosos e fáceis de serem alcançados, do que os traficantes (atacadistas). Mas a atuação concreta da Justiça criminal no Brasil e nos países periféricos se mostra ainda mais repressiva e seletiva no que se refere à criminalização da pobreza.

De acordo com a análise qualitativa de sentenças, os policiais são os responsáveis pela montagem das provas a serem apresentadas nos processos, e quase nunca são questionados em juízo. São eles as únicas testemunhas dos fatos delituosos arroladas na denúncia. Por outro lado, os juízes, de forma repetitiva, baseiam-se apenas nas palavras do policial para condenar o acusado. O baixo número de absolvições em primeira instância também comprova essa tese.

Portanto, a atuação concreta do controle penal repressivo no Brasil, fortalecido nos últimos anos pela repressiva aplicação da lei de drogas, constitui o retrato do superencarceramento em condições absolutamente desumanas dos presos. A grande maioria dos pequenos traficantes encarcerados serve como bode expiatório para o discurso simbólico e autoritário da repressão às drogas no Brasil, sem que nenhum resultado efetivo tenha sido verificado em termos de proteção da saúde pública, base da legitimação da intervenção punitiva.

Ao contrário dos eua, onde há sinais recentes de mudanças, no Brasil, mesmo reconhecido o superencarceramento, vem sendo mantida a opção pela via repressiva mesmo por governos ditos de esquerda (como os de Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff), sem que se tenha alcançado, por meio repressão a traficantes, qualquer redução do consumo ou da venda de drogas.

Considerações finais

Entende-se que não há como refletir sobre a opção por uma política criminal de drogas sem levar em conta dados reais, pois é justamente esse distanciamento entre o discurso punitivo e a realidade que permite a manutenção do modelo atual. A pretexto de proteger a saúde pública, deixa-se de proteger a vida e ignoram-se os efeitos perversos que atingem a sociedade na aplicação da lei de drogas. Desta forma, a intervenção do Estado na questão das drogas é quase nenhuma – contabilizando-se o percentual das apreensões e prisões dentro do universo grandioso e milionário da droga –, mas ao mesmo tempo intensa, considerando-se os crescentes conflitos armados e o alto nível de encarceramento por drogas. Percebe-se claramente, no Brasil, a estreita ligação entre a situação socioeconômica e a criação de condições favoráveis à manutenção dos mercados ilícitos que se sustentam no controle penal da pobreza.

O resultado da política criminal de drogas brasileira atual é o aumento do consumo e a manutenção da ampla oferta de substâncias ilícitas no mercado, de qualidade cada vez pior, como é o caso do crack, ao mesmo tempo em que o tradicional encarceramento de pobres, negros e mulatos é potencializado pela ampla criminalização de condutas, fortalecido pela ausência de controle judicial e de amplos poderes concedidos à polícia na repressão e no uso da violência.

A resposta oficial proibicionista não só foi incapaz de deter a produção e o consumo, como acabou fortalecendo o mercado das drogas ilícitas, que se beneficia da ilegalidade. Como afirma Rosa del Olmo, deu-se prioridade a uma concepção moralista e criminalizante nas representações construídas sobre o fenômeno da droga, mas deixou-se de lado a questão sociopolítica e a importante dimensão econômica da droga33.

  • 1.

    Luciana Boiteux: mestre e doutora em Direito Penal. Professora adjunta de Direito Penal e coordenadora do Grupo de Pesquisas em Política de Drogas e Direitos Humanos da Universidade Federal do Rio de Janeiro (ufrj).Palavras-chave: drogas ilícitas, proibicionismo, superencarceramento, violência, Brasil. Nota: Tradução de Luiz Barucke. Uma versão deste artigo em espanhol foi publicada em Nueva Sociedad No 255, 1-2/2015, disponível em www.nuso.org.. D.J. Nutt, Leslie A. King e Lawrence D. Phillips [em nome do Independent Scientific Committee on Drugs]: «Drug Harms in the uk: A Multicriteria Decision Analysis» em Lancet, 1/11/2010, disponível em www.sg.unimaas.nl/_old/oudelezingen/dddsd.pdf.

  • 2.

    Pierre Kopp: A economia da droga, edusc, Bauru, 1998, p. 8.

  • 3.

    Ibid., p. 58.

  • 4.

    Ibid., p. 16.

  • 5.

    Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (unodc): World Drug Report 2014, onu, Nova Iorque, 2014, disponível em www.unodc.org/wdr2014/.

  • 6.

    François-Xavier Dudouet: «La formation du contrôle international des drogues» em Déviance et Société vol. 23 No 4, pp. 395-419.

  • 7.

    P. Kopp: op. cit., p. 125.

  • 8.

    Peter Reuter: Rand Corporation: Cross National Comparison, Santa Mónica, 1993, citado em P. Kopp: op. cit., p. 126.

  • 9.

    Os chamados «autos de resistência» são o registro oficial de mortes de pessoas pela polícia, que são arquivados pelo Ministério Público e pela Justiça sem qualquer investigação. A indicação de que o «oponente» é um traficante legitima a execução praticada pelo policial.

  • 10.

    unodc: World Drug Report 2014, Executive Summary, p. 1, disponível em www.unodc.org/wdr2014/.

  • 11.

    P. Kopp: op. cit. p. 89.

  • 12.

    Ibid., p. 128.

  • 13.

    Eugenio Raúl Zaffaroni e José Henrique Pierangeli: Manual de direito penal brasileiro, rt, São Paulo, 1997, p. 63.

  • 14.

    Alba Zaluar: Integração perversa: pobreza e tráfico de drogas, fgv, Rio de Janeiro, 2004, p. 49

  • 15.

    Fundação Oswaldo Cruz e icict: Estimativa do número de usuários de crack e/ou similares nas capitais do país, icict / fiocruz, 2014, disponível em www.icict.fiocruz.br/sites/www.icict.fiocruz.br/files/Pesquisa%20Nacional%20sobre%20o%20Uso%20de%20Crack.pdf.

  • 16.

    Meninos que soltam foguetes para avisar que a polícia está chegando.

  • 17.

    A. Zaluar: op. cit, p. 30

  • 18.

    T. Kahn: Cidades blindadas. Ensaios de criminologia, Sicurezza, San Pablo, 2002, p. 13.

  • 19.

    P. Kopp: op. cit., p. 128

  • 20.

    G. Mingardi: O Estado e o crime organizado, Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (ibccrim), São Paulo, 1998, p. 132.

  • 21.

    Luiz Eduardo Soarez: Meu casaco de general: 500 dias no front da Segurança Pública do Rio de Janeiro, Companhia das Letras, São Paulo, 2000, p. 267.

  • 22.

    Helio de Araújo Evangelista: Rio de Janeiro: violência, jogo do bicho e narcotráfico segundo uma interpretação, Revan, Rio de Janeiro, p. 58.

  • 23.

    Ignácio Cano: The Use of Lethal Force by Police in Rio de Janeiro, iser, Rio de Janeiro, 1997, pp. 79-81.

  • 24.

    Michel Misse: «Malandros, marginais e vagabundos: a acumulação social da violência no Rio de Janeiro», tese de doutorado, iuperj, 1999.

  • 25.

    A. Zaluar: op. cit., p. 30

  • 26.

    G. Mingardi e Sandra Goulart: As drogas ilícitas em São Paulo: o caso da cracolândia, ilanud, São Paulo, 2001, p. 17.

  • 27.

    L.E. Soares: op. cit., pp. 267-269.

  • 28.

    L. Boiteux de Figueiredo Rodrigues: «Drogas y prisión: la represión contra las drogas y el aumento de la población penitenciaria en Brasil» em Pien Metaal e Coletta Youngers (eds): Sistemas sobrecargados. Leyes de drogas y cárceles en América Latina, Transnational Institute / Washington Office on Latin America, Amsterdam-Washington, dc, 2010, pp. 30-39.

  • 29.

    Departamento Penitenciário Nacional (depen), 2013.

  • 30.

    L. Boiteux e João Pedro Padua: «La desproporción de la Ley de Drogas: los costes humanos y económicos de la actual política en Brasil» em Catalina Pérez Correa (coord.): Justicia desmedida, Proporcionalidad y delitos de drogas en América Latina, Fontamara / Coletivo de Estudos Drogas e Direito, México, df, 2012, pp. 71-101.

  • 31.

    L. Boiteux, Ela Wiecko Volkmer et al. (coord.): Tráfico de drogas e Constituição, Ministerio da Justiça, Brasília, 2009; Maria Gorete Marques de Jesus, Amanda Hildebrando Oi, Thiago Thadeu da Rocha e Pedro Lagatta: Prisão provisória e lei de drogas: um estudo sobre os flagrantes de tráfico de drogas na cidade de São Paulo, nev / fusp, São Paulo, 2011, disponível em www.nevusp.org/downloads/down254.pdf; Instituto Sou da Paz: «Relatório da pesquisa: prisões em flagrante na cidade de São Paulo», São Paulo, 2012, disponível em www.soudapaz.org/upload/pdf/justica_prisoesflagran...

  • 32.

    L. Boiteux e J.P. Padua: op. cit.

  • 33.

    R. del Olmo: «A legislação no contexto das intervenções globais sobre drogas» en Discursos Sediciosos. Crime, Direito e Sociedade vol. 7 No 12, 2002, p. 70

Este artículo es copia fiel del publicado en la revista Nueva Sociedad , Novembro 2015, ISSN: 0251-3552


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