Estado e mercado no novo desenvolvimentismo
Nueva Sociedad Outubro 2007
Ao contrário do pensamento neoliberal dominante, segundo o qual a alternativa à ortodoxia é o populismo econômico ou o atraso, existe uma alternativa responsável e muito mais compatível com o desenvolvimento econômico. O novo desenvolvimentismo é um «terceiro discurso», entre o discurso do nacional-desenvolvimentismo (e das distorções populistas que sofreu) e o discurso da ortodoxia convencional. É um conjunto de propostas de reformas institucionais e de políticas econômicas através das quais as nações de desenvolvimento médio, como Brasil e Argentina, buscam alcançar os países desenvolvidos.
As políticas neoliberais implantadas na América Latina em conseqüência da grande crise da dívida externa dos anos 80 lograram controlar a inflação, mas fracassaram em promover a verdadeira estabilidade macroeconômica e o desenvolvimento. Dadas as vantagens que possuem, principalmente de mão-de-obra relativamente barata, os países latino-americanos deveriam estar se aproximando dos níveis de desenvolvimento dos países ricos (processo de catch up), mas vem ocorrendo o contrário. Em conseqüência, nota-se hoje em toda a América Latina uma forte reação à ortodoxia convencional, ou seja, ao conjunto de diagnósticos, recomendações e pressões que o Norte faz aos países em desenvolvimento. Significa isto que os países de renda média da região, com amplos mercados internos e democracias consolidadas, como é o caso do Brasil da Argentina e de vários outros, voltarão ao nacional-desenvolvimentismo dos anos 50 que tanto êxito teve em promover o desenvolvimento? Ou que podemos e devemos pensar em um «novo desenvolvimentismo» que seja um terceiro discurso – uma alternativa tanto à ortodoxia convencional quanto ao velho desenvolvimentismo?
Neste trabalho, depois de analisar a crise da estratégia nacional de desenvolvimento do antigo desenvolvimentismo, realizarei uma comparação entre este, a ortodoxia convencional e o novo desenvolvimentismo. O objetivo é mostrar que, ao contrário do que afirma o pensamento neoliberal dominante – segundo o qual a alternativa à ortodoxia é o populismo econômico ou o atraso – existe uma alternativa responsável e muito mais compatível com o desenvolvimento econômico. Ela supõe que países de renda média como o Brasil já realizaram sua revolução capitalista, já possuem uma classe empresarial competente e uma ampla classe média, e suas instituições já são razoavelmente modernas, de forma que a atividade econômica pode ser muito mais coordenada pelo mercado do que o foi nos anos 50 ou 70. É preciso, entretanto, que a política macroeconômica não seja frouxa no plano fiscal, não favoreça juros exorbitantes e não se conforme com taxas de câmbio apreciadas, não competitivas. Caso se tenha uma política macroeconômica desse tipo, haverá espaço ainda para uma política industrial, mas esta será estratégica, complementando as falhas de mercado em vez de substitui-lo.
Do nacional-desenvolvimentismo à ortodoxia convencional
Entre os anos 30 e 70, o Brasil e os demais países da América Latina cresceram a taxas extraordinariamente elevadas. Aproveitaram-se do enfraquecimento do centro para formular estratégias nacionais de desenvolvimento que, essencialmente, implicavam a proteção à industria nacional nascente e a promoção de poupança forçada através do Estado. Também envolviam uma aliança nacional entre empresários industriais, burocracia do Estado e trabalhadores. O nome que essa estratégia recebeu foi «desenvolvimentismo» ou «nacional-desenvolvimentismo». Com esse nome se queria salientar, primeiro, que o objetivo fundamental da política econômica era o de promover o desenvolvimento econômico e, segundo, que para isso era preciso que a Nação – os empresários, a burocracia do Estado, as classes médias e os trabalhadores, associados na competição internacional – definisse os meios que utilizaria para alcançar esse objetivo nos quadros do sistema capitalista, tendo como principal instrumento de ação coletiva o Estado. Os notáveis economistas que então estudaram o desenvolvimento e fizeram propostas de política econômica, e os políticos, técnicos do governo e empresários que mais diretamente se envolveram nesse processo foram chamados de «desenvolvimentistas» porque colocavam o desenvolvimento como objetivo de sua análise econômica e de sua ação política.
Os economistas latino-americanos que, em conjunto com um notável grupo de economistas internacionais, participaram da formulação da «teoria econômica do desenvolvimento» (development economics) eram ligados a três correntes que se somavam: a teoria econômica clássica de Smith e Marx, a macroeconomia keynesiana e a teoria estruturalista latino-americana. O desenvolvimentismo não era uma teoria econômica, mas uma estratégia nacional de desenvolvimento. Usava teorias econômicas disponíveis para formular a estratégia que permitisse a cada país da periferia capitalista alcançar gradualmente o nível de desenvolvimento dos países centrais. Baseava-se no mercado, porque não há teoria econômica que não parta dos mercados, mas atribuía ao Estado e a suas instituições um papel central na coordenação da economia. Ao desenvolvimentismo se opunham os economistas neoclássicos que praticavam a «ortodoxia convencional» – ou seja, o conjunto de diagnósticos e de políticas econômicas e reformas institucionais que os países ricos ou do Norte recomendam aos países em desenvolvimento ou do Sul. Eram então chamados de «monetaristas» devido à ênfase que davam ao controle da oferta de moeda para controlar a inflação.
Nos anos 40, 50 e 60, os desenvolvimentistas e keynesianos foram dominantes na América Latina: constituíram o mainstream. Os governos adotavam suas teorias principalmente ao fazer política econômica. A partir dos anos 70, porém, no contexto da grande onda ideológica neoliberal e conservadora que então se iniciava, a teoria keynesiana, a teoria econômica do desenvolvimento e o estruturalismo latino-americano passaram a ser desafiados de forma bem sucedida pelos economistas neoclássicos. Em sua grande maioria, eles começam a adotar uma ideologia neoliberal. A partir dos anos 80, no quadro da grande crise da dívida externa que fortalece politicamente os países ricos, esses economistas conseguem redefinir, em termos neoliberais, seus preceitos voltados os países em desenvolvimento. A ideologia neoliberal voltada para esses países torna-se hegemônica, expressando-se através do que ficou chamado de Consenso de Washington, mas que eu prefiro chamar de «ortodoxia convencional». Não apenas porque é uma expressão mais geral, mas também porque, se algum «consenso» existiu nos anos 90, ele desapareceu no início do século XXI. No entanto, independentemente de haver sido breve essa dominação, o desenvolvimentismo entrou em crise e foi substituído nos anos 90 por uma estratégia externa: a ortodoxia convencional.
Vinte anos depois, vemos o fracasso da ortodoxia convencional em promover o desenvolvimento econômico da América Latina. Enquanto a renda per capita no Brasil crescia quase 4% ao ano no período em que o desenvolvimentismo foi dominante (entre 1950 e 1980), a partir de então passou a crescer a uma taxa quatro vezes menor! Não foi muito diferente o desempenho nos demais países latino-americanos, com exceção do Chile. No mesmo período, porém, os países asiáticos dinâmicos, entre os quais a China a partir dos anos 80 e a Índia a partir dos anos 90, mantinham ou alcançavam taxas de crescimento extraordinárias.
Por que uma diferença tão grande? No plano mais imediato das políticas econômicas, o problema fundamental relacionou-se com a perda do controle do preço macroeconômico mais estratégico em uma economia aberta: a taxa de câmbio. Os países latino-americanos perderam esse controle através da abertura das contas financeiras e viram suas taxas de câmbio se apreciar como conseqüência da estratégia de crescimento com poupança externa proposta por Washington. Já os países asiáticos mantiveram superávits em conta corrente em boa parte do tempo e o controle de suas taxas de câmbio.
No plano das reformas, enquanto os países latino-americanos aceitavam indiscriminadamente todas as reformas liberalizantes, realizando de forma irresponsável privatizações de serviços monopolistas e abrindo sua conta capital, os asiáticos foram mais prudentes. Aos poucos, porém, ficou claro para mim que a principal diferença residiu em um fato novo fundamental: os países latino-americanos interromperam suas revoluções nacionais, viram suas nações se desorganizarem, perderem coesão e autonomia e, em conseqüência, ficaram sem uma estratégia nacional de desenvolvimento. Desde os anos 80, as elites locais deixaram de pensar com a própria cabeça e aceitaram os conselhos e as pressões vindas do Norte, levando os países ao estancamento.
A ortodoxia convencional, que substitui o nacional-desenvolvimentismo, não havia sido elaborada no país e não refletia as preocupações e os interesses nacionais, e sim as visões e os objetivos dos países ricos. Além disso, como é próprio da ideologia neoliberal, era uma proposta negativa que supunha a possibilidade de os mercados coordenarem tudo automaticamente. Propunha que o Estado deixasse de realizar o papel econômico que sempre realizou nos países desenvolvidos: o de complementar a coordenação do mercado para promover o desenvolvimento econômico e a eqüidade.
Critiquei-a desde que ela se tornou dominante na América Latina. Fui, provavelmente, o primeiro economista latino-americano a fazer a crítica do Consenso de Washington, na aula magna que proferi no congresso anual da Associação Nacional de Cursos de Pós-graduação em Economia, em 1990. Minha crítica, entretanto, ganhou nova dimensão a partir do primeiro semestre de 1999, depois de passar quatro anos e meio no governo Fernando Henrique Cardoso. Naquela época, escrevi em Oxford «Incompetência e confidence building por trás de 20 anos de quase-estagnação da América Latina». Logo depois, com Yoshiaki Nakano, escrevi «Uma estratégia de desenvolvimento com estabilidade» e «Crescimento econômico com poupança externa?». Fiéis ao espírito original do desenvolvimentismo e à nossa formação keynesiana e estruturalista, estávamos iniciando uma crítica sistemática e radicalmente não populista à ortodoxia convencional que se tornara dominante na América Latina, apresentando uma alternativa de política econômica. Nossa crítica mostrava que a proposta convencional, embora incluindo algumas políticas e reformas necessárias, não promovia o desenvolvimento do país. Na verdade, ela o mantinha semi-estagnado e incapaz de competir com os países mais ricos.
A alternativa de estratégia econômica, implícita ou explicita nesses trabalhos, inovava ao reconhecer fatos históricos novos que implicavam a necessidade de rever a estratégia nacional de desenvolvimento. Que nome dar a esta alternativa? Eu a chamo de «novo desenvolvimentismo».
O «terceiro discurso» e a estratégia nacional de desenvolvimento
O novo desenvolvimentismo é um «terceiro discurso» que se encontra entre o discurso do nacional-desenvolvimentismo (e das distorções populistas que sofreu, principalmente durante a crise da dívida externa dos anos 1980) e o discurso da ortodoxia convencional. É um conjunto de propostas de reformas institucionais e de políticas econômicas através das quais as nações de desenvolvimento médio buscam, no início do século XXI, alcançar os países desenvolvidos. Como o antigo desenvolvimentismo, não é uma teoria econômica: baseia-se principalmente na macroeconomia keynesiana e na teoria econômica do desenvolvimento, mas é uma estratégia nacional de desenvolvimento. É a maneira pela qual países como o Brasil podem competir com êxito com os países ricos, e gradualmente alcançá-los. É o conjunto de idéias que permite às nações em desenvolvimento rejeitar as propostas e pressões de reforma e de política econômica dos países ricos, como a abertura total da conta capital e o crescimento com poupança externa, na medida em que essas propostas representam a tentativa de neutralização neo-imperialista de seu desenvolvimento – a prática de «empurrar a escada». É a forma através da qual empresários, técnicos do governo, trabalhadores e intelectuais podem se constituir em nação real para promover o desenvolvimento econômico. Não incluo os países pobres no novo desenvolvimentismo, não porque eles não precisem de uma estratégia nacional de desenvolvimento, mas porque, tendo ainda que realizar sua acumulação primitiva e sua revolução industrial, os desafios que enfrentam e as estratégias que precisam adotar são diferentes.
Em termos de discurso ou ideologia, temos dois modelos distintos. De um lado, o discurso dominante, imperial e globalista, que tem origem em Washington e é adotado na América Latina pela direita neoliberal e cosmopolita formada principalmente pela classe rentista e o setor financeiro. Essa é a ortodoxia convencional: uma ideologia exportada para os países em desenvolvimento; uma anti-estratégia nacional, que, embora se proponha a generosamente promover a prosperidade dos países de desenvolvimento médio, na verdade atende aos interesses dos países ricos em neutralizar a capacidade competitiva de tais países. Esse discurso, na forma como foi aplicado ao Brasil desde os anos 90, diz quatro coisas: que o maior problema do país é a falta de reformas microeconômicas que permitam o livre funcionamento do mercado; que o controle da inflação continua a ser o principal objetivo da política econômica; que para realizar esse controle, os juros serão inevitavelmente altos devido ao risco-país e aos problemas fiscais; que «o desenvolvimento é uma grande competição entre os países para obter poupança externa», não sendo motivo de preocupação os déficits em conta corrente implícitos e a valorização do câmbio provocada pelos influxos de capital. É bem conhecido o desastre que esse discurso representou em termos de crises de balanço de pagamentos e baixo crescimento para os países latino-americanos que o adotaram a partir do final dos anos 80.
O discurso oposto é o do velho desenvolvimentismo e sua distorção, o desenvolvimentismo populista. Apresentarei as diferenças em relação ao velho desenvolvimentismo um pouco mais adiante. Quanto à distorção populista, não é preciso muita crítica. Segundo essa versão, os males enfrentados pela América Latina originam-se na globalização, que, dominada pelo «capital financeiro», imporia aos países alto endividamento externo e público; a solução seria renegociar a dívida externa e a dívida pública do país exigindo-se um grande desconto. O segundo mal estaria na insuficiência de demanda, que poderia ser resolvida com o aumento do gasto público. O mal maior – a distribuição de renda desigual – seria resolvido pela ampliação do sistema assistencialista do Estado brasileiro. Essa alternativa foi aplicada, por exemplo, no Peru de Alan Garcia. No Brasil, jamais foi realmente posta em prática.
O desenvolvimentismo populista provém da classe média profissional inferior e de setores sindicais, refletindo a perspectiva da velha esquerda burocrática. Assim, como o discurso da ortodoxia convencional, ele não tem a possibilidade de alcançar um razoável consenso, dada sua irracionalidade e seu caráter parcial. Nenhuma das duas ideologias reflete o interesse nacional.
Entre esses dois discursos existe um terceiro, o discurso do novo desenvolvimentismo, que começa a emergir em toda a região – principalmente na Argentina, onde está sendo aplicado. Ao contrário da ortodoxia convencional, que é uma simples proposta externa, o novo desenvolvimentismo só fará sentido se partir de um consenso interno e, dessa forma, se constituir em uma verdadeira estratégia nacional de desenvolvimento. Um consenso pleno é impossível, mas um consenso que una empresários do setor produtivo, trabalhadores, técnicos do governo e classes médias profissionais – um acordo nacional, portanto – está hoje em processo de formação.
Esse consenso em formação vê a globalização não como uma benesse ou maldição, mas como um sistema de intensa competição entre Estados nacionais através de suas empresas. Entende que é fundamental fortalecer o Estado fiscal, administrativa e politicamente, e dar condições às empresas nacionais para ser competitivas internacionalmente. Reconhece, como a Argentina o fez depois da crise de 2001, que o desenvolvimento é impedido por uma altíssima taxa de juros básica de curto prazo e por uma taxa de câmbio que em todos os países tende a ser sobre-apreciada. Supõe que para alcançar o desenvolvimento é essencial aumentar a taxa de investimento e orientar a economia para as exportações, e condiciona o aumento dos investimentos à diminuição da taxa de juros e à existência de uma taxa de câmbio competitiva. Existe, entretanto, uma tendência à sobre-apreciação da moeda devido à «doença holandesa» (quando países que produzem bens usando recursos naturais baratos vêem sua taxa de câmbio apreciar-se de forma tal que inviabiliza grande parte da indústria), à política de crescimento com poupança externa e às tentações do populismo cambial. Além de neutralizar a «doença holandesa», buscar o crescimento com a poupança interna e evitar os déficits em conta corrente que implicam populismo cambial, o Estado deve contribuir para uma maior taxa de investimento através de uma poupança pública positiva, fruto da contenção da despesa de custeio. Finalmente, em um plano mais geral, o novo desenvolvimentismo parte da convicção de que o desenvolvimento, além de ser impedido pela falta de nação, é também obstaculizado pela concentração de renda, que serve de caldo de cultura para todas as formas de populismo.
Nacional-desenvolvimentismo e novo desenvolvimentismo
O nacional-desenvolvimentismo dos anos 50 e o novo desenvolvimentismo de agora diferem em função de duas variáveis intervenientes neste meio século: de um lado, fatos históricos novos que mudaram o quadro do capitalismo mundial, que transitou dos «anos dourados» para a fase da «globalização»; de outro, países de desenvolvimento médio como o Brasil mudaram seu próprio estágio de desenvolvimento, deixando de se caracterizar por indústrias infantes.
A principal diferença no plano nacional diz respeito a que a indústria era infante naquela época; hoje, já é uma indústria madura. O modelo de substituição de importações foi efetivo, entre os anos 30 e 60, para estabelecer as bases industriais dos países da América Latina. A partir da crise dos anos 60, entretanto, esses países já deveriam ter começado a reduzir o protecionismo e orientar-se em direção a um modelo exportador, em que se revelassem capazes de exportar produtos manufaturados de maneira competitiva. Não o fizeram, porém, provavelmente devido ao pessimismo exportador que só começou a diminuir nos anos 70. Apenas no início dos anos 90 a liberalização comercial ocorreria, em meio a uma grande crise econômica – o que faz com que ela fosse apressada e mal planejada. Esse atraso de 20 anos na abertura comercial foi uma das maiores distorções que o desenvolvimentismo dos anos 50 sofreu.
O novo desenvolvimentismo não é protecionista: apenas enfatiza a necessidade de uma taxa de câmbio competitiva. Assume que países de desenvolvimento médio já ultrapassaram o estágio da indústria infante, mas ainda enfrentam o problema da «doença holandesa». Torna-se então necessário administrar a taxa de câmbio (sem prejuízo para a manutenção do regime de câmbio flutuante) de forma a neutralizar essa grave falha de mercado que é a «doença holandesa» (Bresser-Pereira 2007, cap. 4). Ao contrário do nacional-desenvolvimentismo, que adotou o pessimismo exportador da teoria econômica do desenvolvimento, o novo desenvolvimentismo não quer basear seu crescimento na exportação de produtos primários de baixo valor agregado, e sim nos manufaturados ou produtos primários de alto valor agregado. A experiência dos últimos 30 anos deixou claro que esse pessimismo foi um dos grandes equívocos teóricos da teoria econômica do desenvolvimento. Já no final dos anos 60 os países da América Latina deveriam ter começado a transitar decididamente do modelo substituidor para o exportador, como fizeram Coréia e Taiwan. Na América Latina, o Chile foi o primeiro país a fazer essa mudança, e por isso seu desenvolvimento é apontado como um exemplo de sucesso de uma estratégia neoliberal. Na verdade, o neoliberalismo só foi plenamente praticado no Chile entre 1973 e 1981, e terminou com uma grande crise de balanço de pagamentos em 1982. O modelo exportador não é especificamente neoliberal, inclusive porque, a rigor, a teoria econômica neoclássica – que está por trás dessa ideologia – não tem espaço para estratégias de desenvolvimento. Os países asiáticos dinâmicos adotaram uma estratégia desenvolvimentista desde os anos 50 já na década seguinte, deram a ela um caráter exportador de manufaturados. Pelo menos desde os anos 70, eles podem ser considerados países novo-desenvolvimentistas.
O modelo exportador apresenta duas grandes vantagens sobre o substituidor de importações. Em primeiro lugar, o mercado para as indústrias não fica limitado ao mercado interno. Isto é importante para os países pequenos, mas é também fundamental para um país com um mercado interno relativamente grande como o Brasil. Em segundo lugar, se o país adota essa estratégia, as autoridades econômicas passarão a ter um critério de eficiência em que se basear: só as empresas eficientes o bastante para exportar serão beneficiadas pela política industrial. No caso do modelo de substituição de importações, empresas muito ineficientes podem estar sendo protegidas; no caso do modelo exportador, essa possibilidade é substancialmente menor.
O novo desenvolvimentismo não é protecionista, mas isso não significa que os países devam estar dispostos a uma abertura indiscriminada. Devem negociar pragmaticamente, no âmbito da Organização Mundial do Comércio (OMC) e dos acordos regionais, aberturas com contrapartida. Também não significa que o país deva renunciar a políticas industriais. O espaço para essas políticas foi reduzido pelos acordos altamente desfavoráveis da Rodada do Uruguai da OMC, mas ainda há espaço para políticas dessa natureza.
O novo desenvolvimentismo rejeita as idéias equivocadas de crescimento com base na demanda e no déficit público. Esta foi uma das mais graves distorções que sofreu o desenvolvimentismo nas mãos de seus epígonos populistas. As bases teóricas dessa estratégia nacional de desenvolvimento estão na teoria macroeconômica keynesiana e na teoria econômica do desenvolvimento, que, por sua vez, se fundamenta sobretudo na teoria econômica clássica. Keynes assinalou a importância da demanda agregada e legitimou o recurso a déficits fiscais em momentos de recessão. Jamais, entretanto, defendeu déficits públicos crônicos. Seu pressuposto foi sempre o de que uma economia nacional equilibrada do ponto de vista fiscal poderia, por um breve período, sair do equilíbrio para restabelecer o nível de emprego. Notáveis economistas como Furtado, Presbisch e Rangel, que formularam a estratégia desenvolvimentista, eram keynesianos. Consideravam a administração da demanda agregada como uma ferramenta importante na promoção do desenvolvimento. Mas jamais defenderam o populismo econômico dos déficits crônicos. Seus epígonos, porém, o fizeram. Quando, diante da grave crise do início dos anos 60, Celso Furtado propôs o Plano Trienal (1963), sua atitude foi considerada por esses seguidores de segunda categoria como uma «recaída ortodoxa». Na verdade, Furtado já pensava no equilíbrio fiscal. O novo desenvolvimentismo o defende não por «ortodoxia», mas porque sabe que o Estado é o instrumento de ação coletiva por excelência da nação. Ora, se o Estado é tão estratégico, o aparelho do Estado precisa ser forte, sólido, ter capacidade. Por isso, suas finanças precisam estar equilibradas. Sua dívida precisa ser pequena e seus prazos, longos. A pior coisa que pode acontecer a um Estado enquanto organização (o Estado é também ordem jurídica) é ficar na mão de credores, sejam eles internos ou externos. Os credores externos são especialmente perigosos, porque a qualquer momento podem retirar seus capitais do país. Os internos, porém, transformados em rentistas e apoiados no sistema financeiro, podem impor ao país políticas econômicas desastrosas, como vem acontecendo no Brasil.A terceira e última diferença entre o desenvolvimentismo dos anos 50 e o novo desenvolvimentismo está no papel atribuído ao Estado na promoção da poupança forçada e na realização de investimentos na infra-estrutura econômica. Ambos atribuem um papel econômico fundamental ao Estado em garantir o bom funcionamento do mercado e em prover as condições gerais da acumulação de capital, como educação, saúde e infra-estrutura de transportes, comunicações e energia. Porém, no desenvolvimentismo dos anos 50 o Estado tinha um papel fundamental em promover a poupança forçada, contribuindo para que os países completassem seu processo de acumulação primitiva. O Estado também tinha o papel de investir diretamente nas áreas de infra-estrutura e indústria pesada, onde os investimentos necessários eram muito elevados, não havendo poupança suficiente no setor privado.
Este quadro mudou desde os anos 80. Para o novo desenvolvimentismo, o Estado ainda pode e deve promover poupança forçada e investir em certos setores estratégicos, mas agora o setor privado nacional tem recursos e capacidade empresarial para realizar boa parte dos investimentos necessários. O novo desenvolvimentismo rejeita a tese neoliberal de que o «Estado não tem mais recursos», porque ter ou não ter recursos depende da forma pela qual as finanças do aparelho do Estado forem administradas. Mas entende que o Estado não deve ser investidor, e sim tratar de defender e garantir a concorrência. Mesmo excluídos esses investimentos, sobram ainda muitos outros a serem realizados pelo Estado, financiados pela poupança pública, e não por endividamento.
Em síntese, o novo desenvolvimentismo vê o mercado como uma instituição mais eficiente, mais capaz de coordenar o sistema econômico do que viam os antigos desenvolvimentistas, embora esteja longe de ter a fé irracional da ortodoxia convencional no mercado. Novo desenvolvimentismo e ortodoxia convencional
A primeira e mais geral das diferenças entre o novo desenvolvimentismo e a ortodoxia convencional é que esta é fundamentalista de mercado. Ela acredita que «no princípio era o mercado...», uma entidade que tudo coordena de forma ótima se for livre. Já o novo desenvolvimentismo considera o mercado uma instituição extraordinariamente eficiente para coordenar sistemas econômicos, mas conhece suas limitações. A alocação dos fatores é a tarefa que melhor realiza, mas mesmo aí apresenta problemas. O estímulo ao investimento e à inovação deixa muito a desejar. E, no plano da distribuição de renda, é um mecanismo definitivamente insatisfatório, porque os mercados premiam os mais fortes e os mais capazes. Enquanto a ortodoxia convencional reconhece as falhas do mercado, mas afirma que piores são as falhas do Estado ao tentar supri-las, o novo desenvolvimentismo rejeita esse pessimismo sobre a capacidade de ação coletiva e quer um Estado forte – não à custa do mercado, mas para que o mercado seja forte. Se os homens são capazes de construir instituições para regulamentar as ações humanas, inclusive o mercado, não há razão por que não sejam capazes de fortalecer o Estado, tornando seu governo mais legítimo, suas finanças mais sólidas e sua administração mais eficiente.
Uma das bases do novo desenvolvimentismo é a economia política clássica, que era essencialmente uma teoria da «riqueza das nações» (Smith) ou da «acumulação de capital» (Marx). Portanto, as estruturas sociais e as instituições são fundamentais. Além disso, como adota uma perspectiva histórica do desenvolvimento, os ensinamentos institucionalistas da escola histórica alemã e do institucionalismo americano do início do século XX são parte essencial de sua visão do desenvolvimento. Portanto, instituições são fundamentais. Reformá-las é uma necessidade permanente na medida em que, nas sociedades complexas e dinâmicas em que vivemos, as atividades econômicas e o mercado precisam ser constantemente regulados. O novo desenvolvimentismo, portanto, é reformista. Já a ortodoxia convencional, baseada na teoria econômica neoclássica, só se deu conta da importância das instituições quando surgiu o «novo institucionalismo». Ao contrário do institucionalismo histórico, que vê nas instituições pré-capitalistas e nas distorções do capitalismo obstáculos ao desenvolvimento e procura desenvolver instituições que o promovam ativamente, o novo institucionalismo tem uma proposta simplista: basta que as instituições garantam a propriedade e os contratos ou, mais amplamente, o bom funcionamento dos mercados, que estes promoverão automaticamente o desenvolvimento. No jargão neoliberal – praticado, por exemplo, por The Economist – um governo é bom no plano econômico se for «reformista», e reformista significa fazer reformas orientadas para o mercado. Para o novo desenvolvimentismo, um governo será bom no plano econômico se for «desenvolvimentista» – se promover o desenvolvimento e a distribuição de renda através da adoção de políticas econômicas e de reformas institucionais orientadas, sempre que possível, para o mercado, mas corrigindo a ação automática desses mercados. Em outras palavras, se contar com uma estratégia nacional de desenvolvimento, porque esta não é outra coisa senão esse conjunto de instituições e de políticas econômicas voltadas para o bom funcionamento dos mercados. Para a ortodoxia convencional, as instituições devem se limitar quase exclusivamente às normas constitucionais; para o novo desenvolvimentismo, políticas econômicas e, mais amplamente, regimes de políticas econômicas e monetárias são instituições a ser permanentemente reformadas no quadro de uma estratégia mais geral.
Muitas reformas institucionais são comuns ao novo-desenvolvimentismo e à ortodoxia convencional. Mas os objetivos são freqüentemente diferentes. Tome-se, por exemplo, a reforma da gestão pública. O novo desenvolvimentismo a patrocina porque quer um Estado mais capaz e mais eficiente; a ortodoxia convencional, porque vê nela a oportunidade de reduzir a carga tributária. Para o novo desenvolvimentismo esta conseqüência pode ser desejável, mas trata-se de uma questão distinta. A carga tributária é uma questão política que depende, principalmente, das funções que as sociedades democráticas atribuem ao Estado e, secundariamente, da eficiência dos serviços públicos. Em outros casos, o problema é de medida. O novo desenvolvimentismo é favorável a uma economia comercialmente aberta, competitiva, mas não radicaliza a idéia e sabe usar as negociações internacionais para obter contrapartidas, já que os mercados mundiais estão longe de ser livres. Em outros casos, a diferença é de ênfase: tanto o novo desenvolvimentismo como a ortodoxia convencional são favoráveis a mercados de trabalho mais flexíveis. Mas o novo desenvolvimentismo, apoiado em experiências principalmente do norte da Europa, não confunde flexibilidade com falta de proteção, ao passo que a ortodoxia convencional flexibiliza o trabalho para precarizar a força de trabalho e viabilizar a baixa de salários.
Para compararmos o novo desenvolvimentismo com a ortodoxia convencional, podemos distinguir as estratégias de desenvolvimento das de estabilidade macroeconômica, embora as duas estejam intimamente relacionadas. Já vimos que não há desenvolvimento sem estabilidade. Comecemos, portanto, pela comparação das políticas macroeconômicas que resumo no quadro 2. As duas têm como pressuposto a necessidade de estabilidade macroeconômica, mas a ortodoxia convencional acaba resumindo estabilidade como controle da dívida pública e da inflação, enquanto o novo desenvolvimentismo condiciona essa estabilidade adicionalmente a taxas de juros e de câmbio que garantam, respectivamente, o equilíbrio intertemporal das contas públicas dos Estados e das contas externas do Estado-nação. A abordagem da ortodoxia convencional pode ser resumida da seguinte maneira: «Para garantir a estabilidade macroeconômica, o país deve manter um superávit primário que mantenha a relação dívida pública/PIB em nível aceitável para os credores; o Banco Central deve ter um único mandato – combater a inflação – já que dispõe de um único instrumento, a taxa de juros de curto prazo. Essa taxa é essencialmente endógena, ou seja, definida pelo mercado. Ela precisa ser alta para combater a inflação. A taxa de câmbio também é endógena e seu equilíbrio será assegurado pelo mercado.» O novo desenvolvimentismo apresenta propostas substancialmente diferentes: o ajuste fiscal não busca um mero superávit primário, mas uma poupança pública positiva e implica não apenas a redução das despesas correntes, mas também da taxa de juros. O Banco Central, em acordo com o Ministério da Fazenda, não tem apenas um mandato, mas três: controlar a inflação; manter a taxa de câmbio em nível compatível com a estabilidade do balanço de pagamentos e o necessário estímulo aos investimentos voltados para a exportação; e considerar também o nível de emprego. Além disso, não conta com apenas um instrumento (a taxa de juros contraditoriamente vista como endógena pela ortodoxia convencional), mas com vários. Entre eles, a compra de reservas e o estabelecimento de controles de entrada de capitais para evitar a tendência à manutenção da taxa de câmbio em nível relativamente apreciado. A taxa de juros é um instrumento para combater a inflação, mas pode ser muito mais baixa do que supõe a ortodoxia convencional. A taxa de câmbio deve ser mantida flutuante, mas administrada – não existe taxa de câmbio completamente livre. Nos países ricos em recursos naturais, como praticamente todos os latino-americanos, é necessário reconhecer que a taxa de câmbio aprecia artificialmente a moeda e inviabiliza a indústria, o que torna importante tomar medidas para sua neutralização. Essas medidas não devem ser feitas como no tempo do velho desenvolvimentismo, que impunha um imposto disfarçado sobre as exportações dos bens que dão origem à «doença holandesa». Isto era feito estabelecendo-se elevadas tarifas de importação de todos os bens e subsídios à exportação de manufaturados. Em vez disso, é necessário negociar um imposto sobre as exportações desses bens, que mantenha sua produção altamente lucrativa, mas logre deslocar sua curva de oferta para cima de forma a que deixem de pressionar a taxa de câmbio para baixo.
Vejamos, agora, a comparação das estratégias de desenvolvimento econômico que resumo no quadro 3. A abordagem (não se pode chamar de estratégia) da ortodoxia convencional parte da necessidade de reformas institucionais que reduzam o Estado e fortaleçam o mercado; atribui um papel mínimo ao Estado nos investimentos e na política industrial e não vê papel algum para a Nação, um conceito ausente.Não estabelece prioridade para nenhum setor da economia (o mercado resolverá). Propõe a abertura da conta de capitais e a política de crescimento com poupança externa. Por sua vez, o novo desenvolvimentismo quer reformas institucionais que, além de fortalecer o mercado, fortaleçam o Estado. Vê a Nação como o agente fundamental do desenvolvimento. Considera que a instituição fundamental para esse desenvolvimento não é apenas a garantia da propriedade e dos contratos, mas a existência de uma estratégia nacional de desenvolvimento que estimule os empresários a investir. Atribui prioridade às exportações e aos setores econômicos dotados de elevado valor adicionado per capita – ou seja, para setores com alta intensidade tecnológica ou de conhecimento. Entende que não apenas é possível, mas necessário, crescer com a própria poupança, tal como fizeram todos os países que se desenvolveram. A política de crescimento com poupança externa é mais um fator a causar a apreciação da taxa de câmbio, o que deve ser sempre evitado: uma taxa de câmbio competitiva, relativamente depreciada, é condição do crescimento.
Não posso discutir neste espaço cada um desses itens. Isto foi feito em meu livro Macroeconomia da estagnação (2007). Com estes dois quadros, porém, fica clara não apenas a crítica à ortodoxia convencional, mas também a existência de uma alternativa novo-desenvolvimentista que, mais do que compatível com a estabilidade macroeconômica, é a única que realmente garante o desenvolvimento econômico e o catch up.
Referências bibliográficas
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