Tema central
NUSO Nº 2019 / Dezembro 2019

Capitalismo democrático O fim de uma exceção histórica?

Capitalismo democrático  O fim de uma exceção histórica?

Por ocasião do bicentenário da Revolução Francesa e da queda do Muro de Berlim, François Furet e muitos outros celebraram o casamento eterno do capitalismo com os direitos humanos. Trinta anos depois, o casal encontra-se à beira do divórcio: partidos racistas e xenófobos estão às portas do poder ou já as atravessaram em muitos países da União Europeia; a Turquia experimenta um rumo autoritário que atropela as liberdades fundamentais; o Reino Unido é tomado por uma febre de fechamento sobre si mesmo e rejeição aos estrangeiros; os Estados Unidos, a democracia mais antiga do mundo, levaram à Presidência um homem ao qual o racismo não constrange e que parece pronto para violar todos os princípios escritos e não escritos de uma Constituição destinada a proteger as liberdades individuais do conjunto dos cidadãos1. O capitalismo funciona melhor do que nunca e o mercado jamais havia levado seu domínio tão longe nem anexado tantos setores da existência humana, mas tal expansão sem precedentes não beneficia nem os direitos humanos nem os princípios do liberalismo, que são atualmente objeto de um ceticismo cada vez mais comprovado.

A «desconsolidação» democrática

E o que é mais grave: os cientistas políticos Yasha Mounk e Roberto Stefan Foa demonstraram que boa parte dos habitantes dos países ricos manifestam uma «desconexão» com os valores democráticos, e que esse distanciamento ou indiferença leva a uma «desconsolidação» da democracia. Interrogados sobre o valor do regime democrático, os cidadão desses países – em particular os mais jovens – mostram-se cada vez menos apegados a essa forma de governo político e mais tentados por diversas formas de radicalismo. Se a eleição dos governantes ainda conserva parte de seu valor, os componentes liberais da democracia, notadamente o respeito pelos direitos individuais e a necessidade de conduzir as mudanças políticas dentro das formas institucionais previstas, parecem ser objeto de uma insatisfação ou, em todo caso, de menor apoio do que durante as décadas de 1950 e 1960. Quanto ao engajamento e à prática dos direitos políticos, eles não são percebidos como elementos essenciais de uma vida democrática, e o desinteresse que inspiram não parece ter sido compensado pela atração de formas novas e não convencionais de participação cívica. Finalmente, o recurso a soluções autoritárias para resolver os problemas mais prementes não gera mais uma rejeição tão sistemática. Nos eua, 24% dos cidadãos – de todas as idades – declaram, por exemplo, que seria bom para o seu país ter um líder forte que não tivesse que se preocupar nem com o Congresso nem com as eleições, enquanto uma proporção mais elevada ainda pensa que seria positivo confiar a gestão dos problemas mais complexos a especialistas2. Nesse país, propostas como a de adiar as eleições para permitir a elaboração de cadastros eleitorais confiáveis que excluam toda possibilidade de voto aos não cidadãos não soam escandalosas; nem as atitudes que, pouco tempo atrás, teriam ferido profundamente as regras não escritas do jogo político, como a da maioria republicana no Congresso que simplesmente se negou a examinar a nomeação para a Corte Suprema do magistrado proposto por Barack Obama no final de seu mandato para substituir o juiz Antonin Scalia.

Além disso, para muitos parece que a adesão aos valores «liberais» (os direitos dos indivíduos e os contrapesos institucionais) se baseou – durante o período de consolidação posterior à Segunda Guerra Mundial – em razões puramente instrumentais, ou seja, na capacidade dos regimes democráticos desse período de promover um aumento contínuo do nível de vida para a maioria. Foa e Mounk sustentam que «o apego tão amplamente generalizado à democracia pode ter dependido do rápido aumento dos níveis de vida para as pessoas comuns» e que «os ganhos do crescimento econômico estavam mais concentrados nas mãos dos mais ricos nas democracias que hoje vivem essa forma de desconsolidação do que naqueles países onde o consenso democrático perdura»3. Em outras palavras, não surpreende que o mundo anglo-americano – onde a distribuição equitativa dos frutos da prosperidade foi menos acentuada do que no resto da Europa – tenha sido o primeiro e o mais seriamente atingido pela onda de desconsolidação democrática.

A aliança supostamente inquebrantável entre, de um lado, um regime político de essência democrática fundado tanto no império da lei (rule of law) e nas liberdades individuais quanto na soberania da vontade coletiva e, do outro lado, um regime econômico assentado na propriedade privada e na livre contratação já não parece estar vigente. Embora cada um desses dois regimes devesse supostamente reforçar o outro e lhe dar uma base mais estável, percebemos atualmente que se trata de uma ilusão, e que esse fortalecimento mútuo não existiu mais do que em um momento histórico muito particular, ao longo do qual o primeiro mostrou sua capacidade de domesticar o segundo e controlar seus excessos. No longo prazo, o mercado gera tantas desigualdades que acaba minando os próprios fundamentos da democracia, isto é, o princípio igualitário que está no seu cerne.

A aliança de ambos os regimes pode certamente funcionar de maneira harmoniosa e equilibrar os dois elementos, desde que a democracia seja robusta e demonstre sua capacidade de controlar o capitalismo e de obrigar as forças do mercado a se submeterem às exigências do interesse geral, ou seja, a serem traduzidas em benefícios reais – que podem inclusive ser desiguais – para o conjunto dos grupos sociais. Quando esse círculo virtuoso está em marcha, o controle que a democracia é capaz de exercer sobre o mercado alavanca sua própria legitimidade e gera uma adesão dos cidadãos que é mais sólida na medida em que o regime democrático demonstra sua capacidade de manter as desigualdades dentro de limites aceitáveis e de distribuir de maneira equitativa – mediante transferências sociais e serviços públicos – os benefícios da cooperação social.No entanto, a «globalização desreguladora» – que é fruto de decisões políticas deliberadas e cuidadosamente ponderadas – priva os Estados nacionais da possibilidade de controlar eficazmente o mercado, dispondo tudo de modo a impedir a emergência de uma instância política supranacional que possa efetivamente se encarregar disso. Este dispositivo foi pensado para permitir que as desigualdades voltem a avançar e que os setores mais ricos monopolizem os frutos de um crescimento mais lento. A revogação ou o desaparecimento dos benefícios materiais para muitos – inclusive a piora da situação para setores inteiros da sociedade – provoca assim a insatisfação com a democracia que constatamos nos dias de hoje. Ao mesmo tempo, essa globalização desreguladora desloca o centro de gravidade do poder junto com a distribuição das riquezas4 e aumenta a influência das elites, que são cada vez mais difíceis de controlar em função da ausência de instituições políticas mundiais. Essas elites promovem uma desregulação que serve a seus interesses e produz uma concentração da renda no extremo superior da escala.

O círculo vicioso é então ativado: a maior desregulação – ou melhor, a remodelação deliberada das regulações a favor da concentração de riqueza e renda – gera um crescimento das desigualdades, que se traduz em níveis de vida mais baixos para as maiorias, reduzindo a legitimidade de um sistema político ao qual os cidadãos só aderem na medida em que lhes oferece benefícios materiais. O enfraquecimento da legitimidade leva à desconsolidação, a uma baixa atenção dada àquilo que é publico, a comportamentos e escolhas determinados pela superficialidade das questões mais do que pelos interesses verdadeiros e, consequentemente, a uma diminuição do controle público sobre a riqueza privada. Por sua vez, esse enfraquecimento do controle público sobre os atores privados se traduz em um aumento da globalização, um reforço da autonomia das elites, um salto adiante na «re-regulação» favorável à minoria mais rica e o correspondente enfraquecimento da legitimidade democrática já fortemente prejudicada. Quanto menos os regimes democráticos cumprem sua promessa de controle dos excessos do capitalismo e de distribuição justa do crescimento econômico, menos aparecem como legítimos; e quanto menos legítimos se mostram, mais são capturados por uma minoria que os coloca a seu serviço, acentuando ainda mais os efeitos da desconsolidação apontados por Mounk e Foa. Não são, portanto, o capitalismo e a economia de mercado os que reforçam a legitimidade da democracia, mas sim, pelo contrário, a capacidade desta última de controlar e limitar seus efeitos de desigualdade. Como afirma Robert Kuttner, um capitalismo sem limites fragiliza e desgasta a democracia, gerando assim a pulsão populista5.

O paradoxo, certamente, é que a democracia deve existir para que o capitalismo possa ser objeto dessa limitação, e sua força deve provir de outros fatores que não a capacidade de controlar o capitalismo, na medida em que o efeito não pode preceder a causa. Foi o que ocorreu após a Segunda Guerra Mundial, quando a lembrança da Grande Depressão e o combate ao nazismo trouxeram uma forte aspiração democrática em sentido próprio, isto é, uma forte aspiração igualitária junto com uma firme consciência de que os sobressaltos de desigualdade do capitalismo livrado à sua sorte estavam na raiz da catástrofe histórica que acabara de acontecer. Condições externas levaram, assim, à limitação do capitalismo que, por sua vez, reforçou a adesão aos regimes democráticos.

Desigualdades e insatisfação com os valores democráticos

Existe então uma relação causal entre a desconsolidação democrática e o fato de, no período mais recente, a apropriação da quase totalidade dos frutos do crescimento econômico pela pequena minoria dos mais favorecidos ser acompanhada de uma estagnação ou até de uma regressão do nível de vida da maioria. Em sua época, Alexis de Tocqueville também havia observado a existência de duas formas de adesão ao regime democrático – uma fundada na utilidade e outra no valor intrínseco de seus ideais. Em sua opinião, apenas a segunda podia realmente «consolidar» a democracia e ele frisava ainda que, ao dar seu apoio a esse regime por considerações puramente utilitárias e consequencialistas, os indivíduos modernos se arriscavam a perder nos dois terrenos, pois um regime no qual os cidadãos não oferecem uma adesão de princípios perde com o tempo as características que lhe permitem produzir a utilidade sobre a qual descansa seu poder de atração.

Ao longo dos últimos 30 anos, foi portanto a incapacidade (ou a negação?) dos países ricos de promover uma economia na qual os frutos fossem amplamente distribuídos, o que provoca hoje um refluxo, uma desconfiança que acarreta inclusive uma suspeita de que os valores democráticos – as liberdades pessoais e os mecanismos institucionais destinados a prevenir os abusos de poder e os desvios autoritários – poderiam não ser companheiros obrigatórios, e sim obstáculos a essa promoção de uma prosperidade largamente compartilhada. O exemplo de países como a China, que conheceram avanços econômicos inéditos sem sombra sequer de progresso em direção a um maior controle democrático do poder ou um maior respeito aos direitos individuais também alimenta essa suspeita6. Depois da Grande Depressão dos anos 30, a hipótese de Karl Polanyi parece assim encontrar uma segunda confirmação7: a extensão sem limites das relações de mercado, quando afeta os próprios fundamentos da sociedade, que são o homem e a natureza – como é o caso atual, após um período de pronunciada instalação institucional do mercado – provoca um efeito reativo sob a forma de um questionamento que atinge os fundamentos intelectuais em si dessa extensão. Nesse efeito reativo, os direitos das pessoas e as formas institucionais da democracia sofrem de uma desafeição ao menos tão forte – ou inclusive maior – quanto aquela que atinge os direitos propriamente econômicos de propriedade e de contrato cuja sacralização está na base da estagnação atual do nível de vida da maioria.

Tal assimetria é difícil de entender. Por que os direitos econômicos – principais responsáveis pela explosão das desigualdades – continuam sendo objeto de elevada adesão, enquanto os direitos pessoais e os mecanismos democráticos continuam sendo vítimas de um crescente ceticismo? Por que o efeito bumerangue assume uma forma conservadora (racismo, exclusões, fechamento de fronteiras, endurecimento da segurança, maior tolerância a uma estreita vigilância da vida privada pelo poder político, etc.), e não a forma progressista que busque limitar os direitos econômicos, regular o uso da propriedade e sua circulação, zelar pela equidade dos contratos e estabelecer, para além do esgotamento das formas clássicas do Estado social, novas modalidades de controle das desigualdades geradas pelo mercado? Sabe-se bem que, durante todo período de crise, os coletivos humanos tendem a um recuo identitário ligado a suas raízes históricas e que o estrangeiro cumpre então o clássico papel de bode expiatório. Mas essa explicação é um tanto limitada para dar conta da amplitude do fenômeno.

O equilíbrio entre a soberania popular e a proteção das liberdades individuais

Com as revoluções do final do século xviii veio a busca do equilíbrio adequado entre dois princípios que pareciam antitéticos: a soberania da vontade majoritária, de um lado, e a proteção das liberdades individuais contra os abusos dessa mesma maioria, do outro. Essa busca fez emergir a ideia de que cada um desses elementos não podia representar um valor se estivesse inteiramente dissociado do outro. Privada de seus contrapontos, que são os direitos dos indivíduos e os mecanismos de controle, a vontade majoritária pode se tornar a opressão das minorias. Mas, no sentido inverso, privados do peso da vontade coletiva, os dispositivos protetores dos direitos individuais podem igualmente se transformar em obstáculos à manutenção da igualdade na forma da reciprocidade dos benefícios, que é a única coisa que pode sustentar sua legitimidade.

Em meados do século xx, um regime que poderíamos chamar de «capitalismo democrático» parecia realizar a forma ideal desse equilíbrio. Por um lado, o mercado existia e os direitos de propriedade e de contrato estavam garantidos. Mas, por outro, a circulação de bens, serviços e capitais estava «embutida» em instituições que limitavam seus efeitos negativos e impediam que se pusesse em questão o caráter democrático da sociedade, ou seja, a possibilidade, para a maioria dos cidadãos, de promover a política de sua preferência e que consistia em um crescimento equitativamente – que não quer dizer igualmente – distribuído dos níveis de vida. Os direitos individuais eram respeitados, mas não considerados absolutos: os direitos de propriedade e de contrato, por exemplo, estavam sujeitos a uma série de obrigações sociais que lhes impediam de funcionar como um constrangimento radical. Os direitos das pessoas – e este é um aspecto bem espinhoso – não avançaram o suficiente para questionar o que para muitos era um enquadramento comum e estável indispensável. Não se tratava do direito das mulheres à igualdade ou das minorias culturais ao reconhecimento da legitimidade de suas práticas. Essa dimensão não pode ser ignorada nos dias de hoje, mesmo que alguns estejam convencidos de que as promessas democráticas só podem ser cumpridas em espaços políticos homogêneos e nos quais existe um grupo dominante dotado de uma identidade comum poderosa8. Em contrapartida, a democracia funcionava, o poder do dinheiro era limitado, as elites não eram todo-poderosas e uma boa parte delas era animada por uma consciência da necessidade de compromisso, mas a maioria reconhecia a legitimidade dos mecanismos institucionais e dos direitos fundamentais que limitavam seu poder e que tinham sido, afinal de contas, concebidos para esse fim.

A ruptura do equilíbrio

Para a geração seguinte, no entanto, esse equilíbrio foi abalado por dois elementos inéditos. Por um lado, a interpretação dos direitos e liberdades individuais sofreu o que poderíamos denominar um «enrijecimento», que os transformou em absolutos, enquanto, contrariamente, o princípio da soberania da vontade coletiva foi se erodindo até resultar na ideia de que não compete ao coletivo de cidadãos exercer sua vontade, e sim apenas escolher quem a exercerá em seu lugar.

A primeira dessas evoluções eleva a «livre» concorrência ao posto de princípio constitutivo da civilização, exime o direito de propriedade de qualquer limitação, alça a contratualidade «voluntária» à posição de paradigma da liberdade individual e introduz na ideia de supremacia do direito considerações substanciais que permitem precisamente outorgar um status constitucional a essa acepção «absolutizada» do direito de propriedade. Mais grave ainda, os próprios mecanismos dessa «absolutização», em particular a globalização e a concorrência fiscal e social dos Estados, parecem colocar deliberadamente essa acepção absoluta do conceito de propriedade fora do alcance de qualquer controle democrático9. A ue, em particular, foi concebida para confiar a proteção dessa concepção da liberdade e da propriedade a instituições em grande medida isoladas de todo controle coletivo, como se sua própria validez normativa não pudesse ser questionada ou discutida.

Essa concepção é, aliás, constantemente apresentada não só como fiel aos ensinamentos dos pais do liberalismo, mas também como a única versão possível do movimento de crítica das instituições aristocráticas e autoritárias que seria posteriormente identificado com o nome de «liberalismo» e que marcou o fim do século xviii. Assim, ninguém parece poder contestar hoje que, em um mundo de liberdade, um empresário tem o direito de deslocar suas atividades para onde ele julgar conveniente e que, se o exercício dessa liberdade acarreta certamente consequências para alguns, isso não é justificativa para questioná-la. Essa mesma liberdade supostamente dá ao empresário o direito de não vender sua empresa a um comprador que ofereça manter os empregos; é muito possível que ele seja motivado pelo desejo de não ter concorrentes em seu mercado, mas, novamente, o dogma estabelece que o exercício do direito de propriedade comporta o direito de vender ou não vender, e que toda barreira ao exercício desse direito conduzirá à reconstituição da sociedade de privilégios na qual o direito, em vez de ser uma regra imparcial de interação entre parceiros iguais, torna-se um meio de poder pelo qual alguns protegeriam seus interesses mediante barreiras artificiais.

Mas os fundadores da visão liberal não absolutizaram o direito de propriedade nem pretenderam que a capacidade de usá-lo de forma ilimitada fosse suficiente para definir a liberdade. Pelo contrário, eles construíram o conceito de um direito de propriedade livre das obrigações e restrições jurídicas que caracterizavam a sociedade estamental como um instrumento de desfeudalização da sociedade, isto é, como uma ferramenta adaptada à destruição de formas específicas de dependência pessoal transformadas em obstáculos legais10. Contudo, as formas de dependência pessoal e de não liberdade que se encontram no mundo do capitalismo desenvolvido já não constituem mais privilégios legais, e sim assimetrias de poder e capacidades desiguais de tirar partido de regras formalmente idênticas, ainda que essas assimetrias possuam uma forte tendência de se cristalizar em novos privilégios graças às disposições jurídicas que permitem sua reprodução. Consequentemente, se a liberação da propriedade dos obstáculos foi o meio adequado de destruir as hierarquias fundadas na lei e na diferença de status, ela já não serve para conter as assimetrias de poder material que hoje fundamentam as formas contemporâneas de dependência. Pelo contrário, é justamente essa liberação que leva hoje à refeudalização da economia e da sociedade, ao passo que só uma limitação do direito de propriedade que dê lugar à liberdade daqueles que, sem essa limitação, padecem de sua força coercitiva pode ser, nos nossos dias, a ferramenta pertinente para a liberdade individual.

Longe de ser a única via possível para criticar e desconstruir a realidade da dependência e da dominação, a concepção absolutizada da propriedade reforça essa realidade ao recusar qualquer possibilidade de analisar e de compreender como a apropriação privada dos recursos tem consequências negativas para a independência de terceiros, assim como as razões pelas quais essas consequências negativas deveriam justificar que, precisamente, o direito de propriedade seja despojado de seu caráter absoluto. Pode-se sugerir, por exemplo, que um empresário que decide fechar uma unidade de produção que ele julga não rentável tenha a obrigação de transferi-la a um comprador ou inclusive a seus empregados que apresentarem um projeto economicamente viável para fazê-la funcionar11.

Longe de preservar a liberdade de todos, o endurecimento deontológico da propriedade e do contrato volta a introduzir um regime de dominação no contexto completamente transformado do capitalismo contemporâneo. Por sua vez, esse novo regime de dominação – que é profundamente antidemocrático e ao mesmo tempo não liberal – aciona um movimento de rejeição que atinge o conjunto dos direitos individuais e que pode levar ao surgimento de regimes autoritários e à extinção da forma de regulação política que conhecemos como democracia, isto é, uma regulação fundada na ideia de que cada indivíduo possui tanto o mesmo valor quanto o mesmo direito à independência.

Aqueles que, no presente, não veem objeção ao questionamento dessa igualdade pelo poder privado e pela maneira em que o poder político é capturado pelo dinheiro assumem uma grande responsabilidade ao ativar um movimento que pode levar ao desaparecimento das formas políticas que possibilitaram essa igualdade e que só podem sobreviver se continuarem garantindo sua realidade. Pode-se temer, no entanto, que, se a democracia política continuar a tolerar o aumento da desigualdade, a captura dos frutos do trabalho comum por uma pequena minoria, e um funcionamento que faz do empobrecimento de alguns o meio de enriquecimento de outros, ela corre o risco de perder a adesão dos cidadãos que só desejariam preservá-la se ela respondesse à sua definição, que é, pelo contrário, a de sustentar a promessa de igualdade e manter a realidade do benefício mútuo. Como mostra Kuttner, o surgimento do populismo encontra-se, então, ligado à erosão do contrato que conseguira, após a Segunda Guerra Mundial, servir aos interesses do conjunto dos cidadãos; o motor desse surgimento é, para ele, a ressurreição de um capitalismo global desenfreado que serve aos interesses de uns poucos, prejudica a maioria e alimenta a política antissistema. A segunda evolução desloca progressivamente a definição da própria democracia para as noções de representação e de pluralismo em detrimento do que parecia ser seu centro, a saber, a ideia de que os cidadãos têm o mesmo valor e que, coletivamente, estão habilitados a aplicar os meios para garantir que essa igualdade seja mais real do que nominal. Mas o pluralismo e os dispositivos que protegem os indivíduos contra a tirania da maioria – trate-se de liberdades fundamentais ou de mecanismos institucionais que obriguem as decisões políticas a passarem pelo filtro da deliberação conflitante – não são um fim em si mesmos, contrariamente ao que quer fazer crer uma tendência atual de estudos democráticos12. São meios para alcançar determinados resultados, não a verdade ou a prevalência de uma vontade popular homogênea qualquer, e sim uma regulação política e social que honre a promessa de igualdade de valor e que, consequentemente, satisfaça a exigência essencial do benefício mútuo. Como se vê atualmente, o pluralismo perde sua legitimidade à medida que, em vez de promover a igual independência, entra no arsenal dos seus adversários.

Essas duas evoluções são antigas e experimentaram picos de intensidade no passado – notadamente no século xix – mas se radicalizaram no período recente e, é claro, são solidárias: porque os direitos são cada vez mais concebidos como restrições laterais intangíveis – segundo expressão de Robert Nozick –, enquanto a democracia é cada vez menos vista como a preeminência de uma vontade coletiva soberana.

Ambas as evoluções estão acompanhadas por outras duas, que se desempenham de uma forma menor, mas cujas consequências são ainda assim explosivas. Ao mesmo tempo em que os direitos individuais se tornaram mais rígidos, eles foram de tal maneira estendidos que as proteções outorgadas a novos setores da sociedade (as mulheres, as minorias, os imigrantes) parecem hoje ameaçar os privilégios daqueles que antes os desfrutavam de forma exclusiva (os homens brancos). Essa guinada revela uma falha ou debilidade estrutural na arquitetura do capitalismo democrático do pós-guerra: a igualdade de valor não era para todos, porque excluía as mulheres e os membros das minorias. É sabido, por exemplo, que nos eua os avanços sociais do New Deal excluíam os afro-americanos13, e Nancy Fraser indicou até que ponto as formas de integração institucional do mercado que predominaram no capitalismo do pós-guerra podiam acarretar formas de inéditas de dominação para as mulheres e para os povos do Sul14.

Por fim, ao mesmo tempo em que o princípio da soberania popular foi vítima de uma erosão conceitual (sua legitimidade é cada vez menos sólida à medida que lhe é oposta a possibilidade de desvios majoritários), ela foi atingida também pelo fato mais material da aparição dos meios de comunicação de massa, que incrementaram o poder do dinheiro no processo político e as possibilidades de fabricação dos consentimentos evocadas por Noam Chomsky.

As consequências da ruptura

A reação atual a essas evoluções assume a forma, nos eua e na Europa, de movimentos políticos que invocam o recurso ao povo contra as elites e contra as disposições liberais destinadas a filtrar e brecar o exercício da soberania popular. Uma das hipóteses mais frequentes de explicação dessa reação é que esta constitui, segundo a expressão do cientista político holandês Cas Mudde, «uma resposta democrática não liberal a décadas de política liberal não democrática»15. Em outras palavras, o enrijecimento dos direitos individuais e a consequente diminuição da soberania coletiva provocam uma espécie de efeito reativo que se afasta também do compromisso alcançado a meados do século xx, mas em outro sentido: por um lado, rejeitando o valor das liberdades pessoais e os direitos individuais e, por outro, supervalorizando a soberania popular como pura vontade.

Duas rupturas com o compromisso alcançado em meados do século xx se sucederam então, a primeira provocando a segunda como resposta. Primeiramente assistimos ao desenvolvimento de um liberalismo antidemocrático, isto é, de um governo de elite que tenta impor a supremacia de um regime de direitos absolutos – rapidamente batizando de rule of law – que promovia seus próprios interesses e negava aos povos a possibilidade de experimentar e fazer prevalecer sua aspiração a uma distribuição igual da riqueza. Mas essa desdemocratização, ou essa captura do poder pelo dinheiro, foi ela mesma possível graças a uma verdadeira revolução intelectual preparada durante longo tempo, que mistura o elogio a um liberalismo clássico em grande parte imaginário com a acusação do Estado social, apresentado como o algoz do direito e da liberdade dos indivíduos.

Vemos atualmente surgirem, como reação, partidários – e logo praticantes – de uma democracia não liberal, cujo conceito foi inicialmente introduzido por Fareed Zakaria16 e na que se reivindica um líder como Viktor Orbán17. Essa forma de regime político que supervaloriza a soberania popular seria portanto o símbolo de uma reação dos povos contra os direitos pessoais e os mecanismos constitucionais que, cada vez mais, são vistos como freios que lhes impedem fazer prevalecer sua aspiração, se não em nível de vida crescente, ao menos em uma distribuição equitativa dos frutos escassos desse crescimento, e os impede de controlar as elites que tentam impor seus interesses através de um crescimento fraco e de um processo de globalização no qual seriam os únicos beneficiários.

O compromisso do pós-guerra descansava numa dupla moderação entre um liberalismo que se abstinha de absolutizar os direitos – em particular, os direitos econômicos de propriedade e de contrato – e uma democracia controlada que aceitava o poder privado do capital na medida em que este aceitasse compartilhar seus benefícios. Mas, no final dos anos 70, os dois sócios começaram a se afastar um do outro e, ao romper os laços de compromisso que haviam construído baseados em concessões recíprocas, perderam-se os aspectos moderadores que resultavam de sua associação e que eles tornavan possíveis.

Como em todos os divórcios, cada uma das partes acusa a outra, evidentemente, de ter sido a primeira a cometer os excessos que levaram à ruptura. Os adeptos do liberalismo estavam convencidos de que, durante a década de 1970, a democracia, ao se tornar social, avançou sobre o direito de propriedade e sobre a faculdade de contratar livremente a ponto de impedir a concorrência de fazer seu trabalho e o mercado de entregar os sinais adequados. Já os partidários de uma democracia consolidada sobre bases sociais – os serviços públicos, o direito ao trabalho, o sistema previdenciário, a seguridade social – acusaram os liberais «neoclássicos» de aproveitarem as dificuldades estruturais do capitalismo democrático do pós-guerra (o alto preço da energia e os efeitos em cascata que resultaram), mas também o fracasso cada vez mais evidente dos países do «socialismo real», para romper o compromisso e lançar uma vasta ofensiva de reconstituição das desigualdades que poderia se apoiar em uma intensa preparação de artilharia intelectual prévia.

E, como em toda ruptura, cada um manifestou enfaticamente os aspectos de sua personalidade reprimida durante o tempo de casamento, mas que, uma vez trazidos à luz, evidenciaram a fragilidade de sua união. O liberalismo rejeita o Estado social, que considera como um ataque à supremacia da lei e como um questionamento da liberdade e da propriedade e tenta voltar ao que considera seus próprios fundamentos, ou seja, a uma forma de liberalismo clássico. Contrariamente, os povos soberanos se mostram cada vez mais reticentes para respeitar os princípios – direitos individuais e contrapesos institucionais – que percebem como ferramentas que as minorias mais favorecidas utilizaram para frustrar suas aspirações e ameaçam os níveis de vida e as perspectivas de futuro às quais eles pensavam que seus filhos tinham direito.

Por que o compromisso se rompeu? A dimensão intelectual cumpre sem dúvida um papel considerável, já que, ante a ofensiva multiforme para mostrar que o Estado social distorce a concorrência, obstaculiza o mercado, cria rendas diferenciadas e reconstitui os privilégios corporativos, os partidários da democracia social não foram capazes de provar que esta era a verdadeira herdeira do projeto liberal e que, sem o controle que ela permite das desigualdades e das dependências, o funcionamento sem restrições dos direitos de propriedade e de contrato carrega uma tendência inexorável de refeudalizar a sociedade.

Como reatar o compromisso? A ideia de tributar a riqueza adquirida no mercado para redistribuir uma parte dela sob a forma de transferências evidentemente está encontrando seu fim. O futuro pertence a outras formas de controlar o capitalismo: a tributação da riqueza transmitida, a desmercantilização do acesso a bens essenciais como a saúde e a educação, assim como a tentativa – que os anglo-americanos chamam de «pré-distribuição» para diferenciá-la da redistribuição – de modificar os rendimentos primários no sentido de uma igualdade muito maior18. Mas o purgatório das falsas soluções corre o risco de ser muito longo.


Nota: a versão original deste artigo foi publicada em francês em La Vie des Idées, 10/7/2018, com o título «Le capitalisme démocratique. La fin d’une exception historique?». Tradução de Celina Lagrutta.

  • 1.

    Ver S. Levitsky e D. Ziblatt: How Democracies Die, Viking Press, Nova York, 2018. [Há uma edição em português: Como as democracias morrem, Zahar, Rio de Janeiro, 2018].

  • 2.

    R. S. Foa e Y. Mounk: «The Danger of Deconsolidation» em Journal of Democracy Nº 3, 7/2016, pp. 5-17 ; v. tb R. S. Foa e Y. Mounk: «The End of the Consolidation Paradigm, A Response to Our Critics», Journal of Democracy Web exchange, 28/4/2017.

  • 3.

    R. S. Foa e Y. Mounk: «The End of The Consolidation Paradigm, A Response to Our Critics», cit., p. 6.

  • 4.

    Ver Quinn Slobodian: Globalists: The End of Empire and the Birth of Neoliberalism, Harvard UP, Cambridge, 2018.

  • 5.

    R. Kuttner: Can Democracy Survive Global Capitalism?, Norton, Nova York, 2018, p. XVII.

  • 6.

    Ver Jean-Pierre Cabestan: Demain la Chine, démocratie ou dictature?, Gallimard, Paris, 2018; Andrew J. Nathan: «China’s Challenge» en Larry Diamond, Marc F. Plattner y Christopher Walker (dirs.): Authoritarianism Goes Global: The Challenge to Democracy, Johns Hopkins up, Baltimore, 2016.

  • 7.

    K. Polanyi: A grande transformação. As origens da nossa época [1944], Campus, Rio de Janeiro, 1980.

  • 8.

    Ver Y. Mounk: The People v. Democracy: Why Our Freedom is in Danger and How to Save It, Harvard UP, Cambridge, 2018, capítulos 6 e 7.

  • 9.

    Ver D. Rodrik: The Globalization Paradox: Democracy and the Future of the World Economy, Norton, Nova York, 2012, e, sobretudo, Q. Slobodian: op. cit., em particular o capítulo 6, que estuda os fundamentos intelectuais da UE.

  • 10.

    Ver E. Rothschild: Economic Sentiments: Adam Smith, Condorcet and the Enlightenment, Harvard UP, Cambridge, 2001.

  • 11.

    Ver Joseph W. Singer: «The Reliance Interest in Property» em Stanford Law Review vol. 40, 1988.

  • 12.

    Nadia Urbinati: Democracy Disfigured: Opinion, Truth and the People, Harvard UP, Cambridge, 2014.

  • 13.

    Ver Jefferson Cowie: The Great Exception: The New Deal and the Limits of American Politics, Princeton UP, Princeton, 2017.

  • 14.

    N. Fraser: «Marketization, Social Protection, Emancipation: Toward a Neo-Polanyan Conception of Capital Crisis» em Craig Calhoun e Georgi Derluguian: Business as Usual: The Roots of the Global Financial Meltdown, NYU Press, Nova York, 2011.

  • 15.

    C. Mudde: Populism, A Very Short Introduction, Oxford UP, Oxford, 2017, p. 116; v. tb. C. Mudde: «The Problem With Populism» em The Guardian, 17/2/2015.

  • 16.

    F. Zakaria: «The Rise of Illiberal Democracy» em Foreign Affairs vol. 76 Nº 6, 11-12/1997.

  • 17.

    «Prime Minister Viktor Orbán’s Speech at the 25th Bálványos Summer Free University and Student Camp», Băile Tușnad, Rumania, 26/7/2014 em www.kormany.hu/en/the-prime-minister/%20the-prime-minister-s-speeches/prime-minister-viktor-orban-s-speech-at-the-25th-balvanyossummer-free-university-and-student-camp, 30/7/2014.

  • 18.

    Ver A. Thomas: Republic of Equals: Predistribution and Property-Owning Democracy, Oxford UP, Oxford, 2017.

Este artículo es copia fiel del publicado en la revista Nueva Sociedad 2019, Dezembro 2019, ISSN: 0251-3552


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